Resumo: O presente artigo inspirou-se nos debates promovidos nas aulas de Mestrado, na disciplina “A Teoria Geral e os Fundamentos dos Direitos Difusos e Coletivos e a Pós-Modernidade: Diálogo das Fontes”, que pertence à linha de pesquisa “A efetividade dos Direitos de Terceira Dimensão e a Tutela da Coletividade, dos Povos e da Humanidade”, que acontecem às quartas-feiras, pela manhã, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Aborda a temática do bem comum, partindo do pressuposto de que é emergente e notória a transformação cultural que vem acontecendo na sociedade pós-moderna, a qual instiga estudos e compreensão contemporânea sobre a jornada de conquista dos interesses e direitos humanos e dos direitos fundamentais, buscando reflexionar sobre a proteção e efetividade destes interesses e direitos, notadamente no que diz respeito à compreensão e interpretação dos bens valorados pelos homens, como é o caso, notadamente do bem comum que concretiza a justiça, efetivando interesses e direitos da coletividade, e de cada um, individualmente.
Palavras-chave: bem comum – sociedade contemporânea – interesses e direitos humanos – justiça – boa-fé objetiva
Abstract: This paper was based on the discussions held during the Master’s Degree classes on "General Theory and Grounds of Diffuse and Collective Rights and Postmodernity: Dialogue of the Sources," which follows the line of study “Effectiveness of Third-Dimension Rights and Protection of Collectivity, People and Mankind”. Such discussions were held on Wednesday mornings at Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. It addresses the subject of common good, based on the premise that the cultural change in the post-modern society is evident and clear, and stimulates studies and contemporary understanding of the path followed to affirm the human interests and rights and fundamental rights. The purpose is a reflection on the protection and effectiveness of such interests and rights, especially the understanding and interpretation of goods valued by men, as it is the case of the common good, which serves justice and the interests of all and everyone.
Keywords: common good – contemporary society – human interests and rights – justice – objective good faith
Sumário: I. Reflexões introdutórias: o bem comum no contexto da sociedade civil contemporânea; II. O bem comum e os princípios da solidariedade e da subsidiariedade; III. A boa-fé objetiva e o exercício do bem comum; IV. Considerações finais. Referências.
Há momento certo para tudo debaixo do céu e tempo certo para cada coisa: tempo para nascer e tempo para morrer, tempo para plantar e tempo para colher. (Eclesiastes 3:1-2)
I – REFLEXÕES INTRODUTÓRIAS: O BEM COMUM NO CONTEXTO DA SOCIEDADE CIVIL CONTEMPORÂNEA
Edgar Morin afirma[1] que cada termo que designa realidade distinta contém em si: um estado de “ser uno”, alguns antagonismos e algumas concorrências; e que é nas origens deste estado que se encontra a “unidade”, ou seja, na aspiração a um melhor mundo, que abrange a universalidade dos direitos humanos, a emancipação dos explorados, dos humilhados e dos oprimidos, entre outros.
O cenário contemporâneo coloca, de um lado, um homem que sonha com um mundo melhor, almeja ser plenamente feliz, livre e independente, podendo sair da condição de oprimido e, de outro lado, coloca um homem devastador, turbulento, selvagem, que destrói todo este cenário da vida, destruindo o ambiente e, com ele, os recursos ambientais, que poderiam garantir a presente e as futuras gerações.
A sociedade enfrenta impactos sociais, ambientais e ecológicos, que integram as pautas dos grandes debates mundiais, abrangentes das esferas social, econômica, jurídica, ambiental, ecológica, entre outras. Os debates colocam em uma mesma mesa, profissionais das mais variadas formações, abrangendo desde líderes comunitários e religiosos; profissionais da medicina e dos grandes laboratórios de remédios; professores, pesquisadores científicos e tecnólogos; juristas, economistas e políticos, e também aqueles que se identificam como, exclusivamente, curiosos.
Os homens sonham com um bem comum de todos e para todos. Tal conquista requer, hodiernamente, que se preste a atenção à divisão, à repartição e ao destino do bem que deveria ser comum a todos, bem que floresce permeando o enzaigado capitalismo global, cuja continuidade, a cada dia, tem se demonstrado mais e mais hostil à concretização da sociedade sustentável. A valoração dos bens da vida, neste cenário contemporâneo turbulento, exige do homem um maior conhecimento das realidades complexas da vida, além da adoção de postura ativa, em proveito da garantia e efetivação dos interesses e direitos conquistados, salvaguardando o bem comum que é de todos e de cada um.
Compõem a estrutura básica da sociedade democrática contemporânea, os elementos essenciais da ordem política, econômica, jurídica e ambiental, todos eles prevendo entre os seus ideiais, à realização do bem comum, o qual todas as ordens de conhecimentos deveriam ter respeito.
Também, os direitos fundamentais individuais, sociais, coletivos e difusos, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil, se preocupam com a realização do bem comum, o qual vem sendo discutido e interpretado nas mais variadas esferas de interesses do homem, notadamente nas esferas ecológica e ambiental, que se preocupam com a proteção, preservação e garantia dos bens naturais que garantem a vida no planeta, e sob a perspectitiva da sua sustentabilidade, sempre buscando respeitar a dignidade dos seres, humanos ou não.O bem comum pode ser refletido a partir do entendimento de que o direito público, o direito privado, e/ou direitos difusos e coletivos agregam conceitos que podem ser distintos, de acordo com a época em que foram escritos e o momento em que são apreciados e/ou aplicados. Porém, sejam quais forem os conceitos, todos buscam a concretização do “justo”, entre as suas diferentes finalidades. As doutrinas e a jurisprudência traçam conceitos distintos do bem comum, os quais, também, variam conforme a época em que foram firmados e/ou aplicados, respeitando as linhas filosóficas que os refletem. Nesse sentido, afirma a doutrina de Wambert Gomes Di Lorenzo[2] que o princípio do bem comum é
"o princípio personalista de justiça política, decorrendo diretamente e imediatamente do princípio da dignidade da pessoa humana. Numa brevíssima composição, podemos afirmá-lo como o conjunto das condições necessárias para que a pessoa humana realize sua dignidade."
No latim está a origem do vocábulo “bem” – bene –, que pode significar vantagem, conveniente, próspero, bom, ventura, favor, benefício; ou então, qualidade atribuída às ações humanas que lhe confere um caráter moral (sentimento de aprovação ou de dever); ou, ainda, disposição inata para o bem (austeridade moral, virtude). E, o vocábulo “comum” – commune, também originário do latim, apresenta os significados: pertencente a todos ou a muitos; feito em sociedade ou em comunidade [3].
Pois bem, integrados os vocábulos “bem” e “comum”, tem-se a expressão “bem comum”, que pode designar a “virtude moral dos homens”; a “felicidade almejada/conquistada pelos homens ou pelas comunidades de homens”; a “prosperidade, a ventura, o benefício almejado/conquistado pelos homens ou pelas comunidades de homens”.
E os vocábulos felicidade, prosperidade, ventura, virtude expressam a plenitude, a alegria, o atingimento da autossuficiência dos seres humanos; referem-se às expressões que designam a dignidade humana, que é assim interpretada pelo direito, filosofia, política, economia, entre outras disciplinas. A realização desses valores concretiza, simultaneamente, o bem comum experimentado por todos, conjuntamente e, por cada um, per se.
Di Lorenzo se refere à obra de Aristóteles “Ética de Nicômaco” afirmando que na visão do grande filósofo “a felicidade é princípio que orienta toda a ação humana e que, ‘sendo o último na execução, é também o primeiro na intenção’"[4]. Ora, o que é, então a felicidade senão o bem universal buscado por todos os seres humanos (ou não)? A felicidade se refere ao sumo bem da vida, àquilo para o qual todas as coisas convergem, abrangendo desde à satisfação do exercício da política, às variadas funções exercidas pelo homem na sociedade. O homem experimenta o sentimento da felicidade, realizando e aperfeiçoando, individualmente, a sua existência, o que acontece, simultaneamente, com todos os participantes da sociedade. Todos eles provam o bem comum, que ocupa um lugar comum, visitado por todos aqueles que conseguem experimentar a felicidade, per se, ou no espaço coletivo.
É nesse sentido a lição de Maria Helena Câmara, que afirma que "a ideia de bem comum refere-se à existência humana e diz respeito à vida do homem em sociedade"[5].
A maioria das atitudes do homem, em sociedade, busca a realização da felicidade individual e coletiva, assim como: a convivência harmoniosa da família; o desenvolvimento intelectual do homem e o progresso da sociedade; o alimento material e espiritual do ser; a utilização da tecnologia para a descoberta de instrumentos da cura de doenças e novos confortos para o homem. Tudo no sentido de concretizar a dignidade humana no seu melhor sentido, o qual, inevitavelmente, é atingido na vida em sociedade.
A felicidade pode ser percebida como um estado de autossuficiência, que é atributo próprio do absoluto, o que torna a vida desejável e carente de nada[6]. Tal autossuficiência está no âmbito da vida comunitária, ou seja, em sociedade, revelando que é muito difícil alguém se sentir feliz, sozinho.
De fato, a felicidade de um ser, se completa em palco que mostra várias pessoas contracenando felizes. Contrário senso pode-se concluir que a hipossuficiência é o estado de quem não experimenta a felicidade, porque vive carente dos bens necessários à vida. Cada vez mais, a sociedade revela multidões de pessoas e de grupos de pessoas infelizes.
John Finjis conceitua o bem comum como um conjunto de condições que capacita os membros de uma comunidade a alcançarem, por si mesmos, objetivos razoáveis e que os motivam a colaborar mutuamente em uma comunidade[7].
Jacques Maritain[8] ensina que o bem comum se refere às situações que vão além daquelas relacionadas ao bem-estar público, porque se relacionam, pela própria natureza, à boa vida humana e da comunidade, complementando a parte e o todo, além de que não se referem apenas à coleção de haveres públicos, mas também, à integração sociológica da consciência cívica. E, continua ensinando que "o bem comum não exige que os membros de uma comunidade tenham os mesmos valores e objetivos, ele é o lugar comum de bens próprios da natureza humana, bens individuais comuns a todas as pessoas."
O Papa João Paulo II, relaciona o bem individual com o bem comum, referindo-se ao "princípio da correlação entre o bem da pessoa e o bem comum"[9]. Por este princípio, a natureza social da pessoa a conduz à interação com os outros seres humanos, lhe conferindo uma inclinação anterior à criação da sociedade e da comunidade. A corrupção de referido princípio pode subordinar o bem comum a um bem individual, sendo que o aniquilamento do bem pessoal em face do bem coletivo pode se dar de maneira total[10]. Bento XVI afirma que:
"(…) em tal mundo autoconstruído bebemos em segredo e igualmente nos “recursos” de Deus, que transformamos em produtos nossos. É preciso tornar a abrir as janelas, devemos olhar de novo a vastidão do mundo, o céu e a terra e aprender a usar tudo isto de modo justo.
(…) O homem não se cria a si mesmo. Ele é espírito e vontade, mas é também natureza, e a sua vontade é justa quando respeita a natureza e a escuta e quando se aceita a si mesmo por aquilo que é e que não se criou por si mesmo. Assim mesmo, e só assim, é que se realiza a verdadeira liberdade humana.
(…) ao jovem rei Salomão, na hora de assumir o poder, foi concedido formular um seu pedido. Que sucederia se nos fosse concedido a nós, legisladores de hoje, fazer um pedido? O que é que pediríamos? Penso que também hoje, em última análise, nada mais poderíamos desejar que um coração dócil, a capacidade de distinguir o bem do mal e, deste modo, estabelecer um direito verdadeiro, servir a justiça e a paz".[11]
Das palavras do Papa Bento XVI pode-se extrair que os bens/valores necessários ao homem devem ser utilizados de maneira equilibrada, consciente, respeitando-se a natureza, que é garantidora da continuidade da existência desses recursos naturais, que alimentam os seres vivos, humanos ou não. Extrai-se, também, que o homem é possuidor da consciência e da capacidade de distinguir o bem do mal, o correto do incorreto, o certo do errado, para poder agir com retidão e corroborar a concretização do justo.
O homem experimenta valores, que são trazidos ao mundo jurídico, no tempo e na medida da necessidade e/ou interesse demonstrado por ele (homem) por tais valores. Esses valores são expressos, normalmente, por bens da vida humana. Assim, quanto maior a necessidade e/ou interesse do homem em utilizar referidos bens da vida, mais rapidamente busca a sua proteção e garantia jurídica.
Usufruir, propagar e distribuir referidos bens da vida implica a necessidade de se ter, entre outros, o conhecimento, o cuidado, o equilíbrio e a equidade, ao se lidar com referidos bens. Todas essas atitudes almejam e perseguem o estabelecimento de um direito que caminha ao encontro do verdadeiro, à realização do justo, propiciando o experimentar do bem comum.
O bem comum é o bem experimentado por cada um (cada parte), que pertence e está orientado pelo (ao) todo, havendo, assim uma correlação permanente entre o todo e as partes que compõem o todo, de tal maneira que cada um e o todo somente se sentem realizados, quando o todo e cada parte se encontram satisfeitos, experimentando todos o referido bem comum.
II – O BEM COMUM E OS PRINCÍPIOS DA SOLIDARIEDADE E DA SUBSIDIARIEDADE
O bem comum pode ser melhor percebido, quando se realiza nas sociedades democráticas. Alguns estudiosos argumentam que somente as sociedades que desenvolvem modelo personalista de democracia conseguem efetivar politicamente o bem comum, concretizando os princípios da solidariedade e, também, da subsidiariedade em prol da efetividade da dignidade humana.
E porque é necessária a presença da democracia? Porque ela é forma de governo que exige que as decisões políticas sejam tomadas em proveito do povo. Ela (democracia) exige que a ordem soberana seja exercida em nome do povo e para o povo, respeitando os princípios que protegem a liberdade do homem, baseando-se em governo da maioria, que respeita os direitos individuais, coletivos e das minorias, e que se realiza por meio de eleições justas, que sempre levam em conta a opinião comum do povo.
Di Lorenzo, ao desenvolver as lições de Tomás de Aquino, afirma que as matérias de justiça política, que são intrínsecas à justiça social:
"requerem categorias de justiça distributiva, como a regulação da economia, por exemplo.
Por conseguinte, há uma manifestação do princípio da subsidiariedade a qual chamaremos de regulativa.
Tomás de Aquino afirma que a justiça distributiva regula e modera a distribuição dos bens comuns, refutando a objeção por ele levantada de que distribuir os bens comuns entre muitos prejudicaria o bem comum da coletividade. Ainda, quando se distribuem bens comuns aos membros da comunidade, de certa forma, cada um já recebe o que é seu, pois de certo modo, o todo e a parte são idênticos. Como ainda explica, enquanto compete à justiça legal ordenar o bem privado ao bem comum, compete à justiça distributiva ordenar o bem comum ao bem privado.(…)
Se a justiça distributiva partia de critérios de diferenciação tais como mérito, herança, nascimento, o bem comum político passou a ser distribuído segundo os critérios da solidariedade, princípio no qual a pessoa é reconhecida como tal a partir da constatação de que participa da natureza comum das demais pessoas, tendo, portanto, a mesma dignidade das demais."
Com base nas lições de Di Lorenzo[12], tratar dos princípios da solidariedade e da subsidiariedade impõe, antes, entender que a relação entre “a parte e o todo e o todo e a parte” é regida por tais princípios, na medida em que: a) pelo princípio da subsidiariedade a ação da ordem maior (o todo), no que é alcançável pela ordem menor (cada parte) deve ser realizada em favor desta ordem menor, que necessita de ser favorecida no caminho do atingimento dos seus fins; b) pelo princípio da solidariedade – do latim solidus (compacto, seguro) e in solidus (exprime a ideia de totalidade) o bem comum é distribuído de maneira segura e equânime entre a totalidade das pessoas, cada uma delas podendo se perceber participando da natureza comum de todas as pessoas – as demais pessoas que compõem o todo -, e entender que cada uma destas pessoas possui a mesma dignidade. E, mais: presente uma postura social que diz respeito ao empenho de cada uma das pessoas com relação ao desfrutar por todos do bem comum (bem-estar), sendo assim, todos responsáveis pelo bem-estar de cada um, e cada um responsável pelo bem-estar do outro, e do outro, e do outro, enfim, de todos.
Ora, o que é o bem comum, senão o estado de satisfação quase que plena de cada pessoa (cada parte do todo), todas completando o todo (a coletividade das pessoas). O bem comum impõe a todos e a cada ser uma sensação de tranquilidade, de segurança, de agradabilidade, de experimentar os cuidados, que são devidos a todos.
Comenta, ainda, o autor[13] sobre a “Sollicitudo rei socialis” de João Paulo II, pela qual a solidariedade tem uma dupla natureza: a) a de virtude moral em que a virtude significa um hábito, uma atitude perene, diante do semelhante, que deve ser considerado como um ser individual e, também, como parte de um todo; b) e a de princípio social que impõe sejam as ações de todos dirigidas ao bem comum, de maneira a efetivar a dignidade de cada um. E sobre a filosofia aristotélica afirma que a amizade (philia) pode ser considerada uma forma de amor experimentada pelas pessoas e o maior dos bens para as cidades, porque resulta uma unidade da comunidade em torno do bem comum, que se concretiza em variados graus de amizade e de amor.
III – A BOA-FÉ OBJETIVA E O EXERCÍCIO DO BEM COMUM
No campo das normas jurídicas que regem as relações humanas privadas, pode-se correlacionar a boa-fé objetiva (dever de agir de boa-fé) – presente na intenção humana e, disposto na legislação como um mecanismo em prol dessas relações e situações jurídicas – com a realização do bem comum que busca o bem-estar e a felicidade das pessoas, concretizando a dignidade humana?
Por primeiro, entende-se que a boa-fé objetiva tem suas origens no direito alemão, especificamente no § 242 do BGB, que expressamente estabelece que “O devedor está adstrito a realizar a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego”. Leia-se a lição de Judith-Martins Costa sobre o significado do termo:
“Já por boa-fé objetiva se quer significar – segundo a conotação que veio da interpretação conferida ao § 242 do Código Civil Alemão, de larga força expansionista em outros ordenamentos e, bem assim, daquela que lhe é atribuída nos países da common law – modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual cada pessoa deve ajustar a própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto: com honestidade, lealdade e probidade. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como o status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjetivo”.[14]
O Código de Defesa do Consumidor, de conteúdo protetivo do consumidor vulnerável, acabou unindo o princípio da boa-fé objetiva à vulnerabilidade do consumidor, de modo que tal efetivação somente acontecia como medida protetiva especial da parte mais fraca da relação jurídica, o que ocasionou a imputação ao fornecedor, da responsabilidade pelo dever de indenizar danos sofridos na relação de consumo, na maioria esmagadora dos casos concretos apreciados
Pensa-se na existência de uma vontade humana que aspira ao equilíbrio das pessoas, notadamente daquelas que participam das relações privadas, com a finalidade de concretizar o bem comum de cada pessoa e da coletividade das pessoas, que se relacionam socialmente, a partir de relações e situações fáticas e jurídicas.
A Constituição da República Federativa do Brasil vigente – promulgada sob a influência dos resquícios da ditadura militar – impunha, no momento da sua promulgação, a mudança de paradigmas nacionais, imprescindíveis, tanto na esfera do direito privado, como também, do público e dos difusos e coletivos, ao dispor de maneira sistemática sobre a proteção do cidadão, em face dos abusos que originários das relações com o Estado e/ou das relações entre particulares. Referido momento histórico impôs nova valoração ao bem comum, eis que o anseio das pessoas e da sociedade (comunidades, grupos de pessoas, etc.) modificava-se, conforme os valores revelados pelo legislador constituinte.
Claudia Lima Marques afirma que a Constituição da República Federativa do Brasil permitiu a transformação do direito privado, e que estão corretos aqueles que consideraram
“a Constituição República Federativa do Brasil como centro irradiador e o marco de reconstrução de um direito privado brasileiro mais social e preocupado com os vulneráveis de nossa sociedade, um direito privado solidário. A Constituição seria a garantia e o limite de um direito privado construído sob seu sistema de valores e incluindo a defesa do consumidor””[15].
Com iluminação nessa Constituição garantista e protetiva dos direitos humanos é que surgem os novos mecanismos de proteção aos mais vulneráveis, regulando as relações de consumo, a situação da criança e adolescente, a do idoso, entre outros.
Nesse sentido, o legislador infraconstitucional, em 1990, cria o Código de Defesa do Consumidor, diploma legal e de cunho principiológico que, pela primeira vez, expressamente, insere na esfera do direito privado, os ideais da boa-fé objetiva e da limitação ao exercício pleno das liberdades individuais, impondo novos paradigmas tanto à esfera do direito privado, como à esfera dos direitos coletivos e difusos.
Naquele momento, em que ainda vigia o Código Civil de 1916, as relações de consumo passaram a ser reguladas especialmente pelo Código de Defesa do Consumidor, estabelecendo-se, então o microssistema normativo das relações de consumo e de defesa do consumidor. As normas do Código Civil ou do Código Comercial passaram a ser utilizadas nas relações de consumo, somente nas circunstâncias lacunosas e desde que fossem compatíveis com os princípios reguladores do Código de Defesa do Consumidor. [16]
O Código de Defesa do Consumidor, de conteúdo protetivo do consumidor vulnerável, acabou unindo o princípio da boa-fé objetiva à vulnerabilidade do consumidor, de modo que tal efetivação somente acontecia como medida protetiva especial da parte mais fraca da relação jurídica, o que ocasionou a imputação ao fornecedor, da responsabilidade pelo dever de indenizar danos sofridos na relação de consumo, na maioria esmagadora dos casos concretos apreciados.
Com o advento do Código Civil de 2002, fundamentado nos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade[17], a cláusula geral da boa-fé objetiva surge como dever de conduta das partes, a ser observada em quaisquer relações e/ou situações obrigacionais, extrapolando a esfera somente do consumidor e atingindo a esfera coletiva.
O Código Civil vigente passa a destacar a função social do contrato, traz a ideia de que a sua aplicação significa a manutenção do equilíbrio contratual e o atendimento dos interesses da sociedade, e não somente e necessariamente as situações de proteção do mais fraco na relação.
Observa-se a manifestação da necessidade e do interesse social de garantir o equilíbrio das relações privadas, de maneira a ostentar a proteção e a garantia do exercício da dignidade da pessoa como o bem comum mais valioso a ser protegido na esfera jurídica.
Também, o incremento da produção, as economias de escala, o aumento do consumo e o surgimento da sociedade de massa passam a exigir a revisão das antigas pilastras do direito privado, especialmente no campo das relações obrigacionais, relativamente à autonomia da vontade e à relativização do contrato.
A mudança que mais interessa à sociedade é aquela relativa à “justiça além da regra”, em oposição ao dogma do positivismo e da chegada dos Estados Democráticos de Direito como legitimadores das regras.[18]
Em quase todo o mundo iniciou-se a proteção jurídica do consumidor e das relações de consumo, admitindo-se, além da tutela individual, também, a tutela coletiva e difusa dos interesses e direitos do consumidor, reconhecendo-se a vulnerabilidade como uma de suas características intrínsecas.
Observa-se, assim, que no Brasil a primeira legislação – Lei nº 7.347, Lei da Ação Civil Pública -, a possibilitar a defesa de interesses e direitos difusos e coletivos, surge em 1985. E, que com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil são inseridos no sistema jurídico, de maneira robusta, os princípios gerais da boa-fé, da função social, e das limitações do exercício pleno das liberdades individuais. Alteram-se, então, pontos cruciais da esfera jurídica privada, ocorrendo mudança de paradigmas interpretativos do mundo jurídico, que passa por grandes transformações sociais.
Veja-se que o artigo 5º, XXXII da Carta Magna consagra o direito do consumidor, elevando-o a direito fundamental “inerente a qualquer pessoa humana e exigente da proteção do Estado”.[19] E, ao fazê-lo, reconhece a necessidade de proteção do consumidor, admitindo, portanto, a sua vulnerabilidade, como regra. Demonstra, também, as regras jurídicas aplicadas até então – as se referiam às relações entre iguais -, já eram consideradas insuficientes à proteção e garantia das relações de consumo, que se desenvolviam entre desiguais.
Neste contexto, o princípio geral da boa-fé objetiva vem reforçar, ainda mais, a proteção do consumidor, o qual participa como aderente do contrato de consumo, é considerado vulnerável econômica e tecnicamente na relação jurídica de consumo, além de que se valer das regras do Código Civil, somente, mesmo que de maneira subsidiária, e das disposições do Código de Defesa do Consumidor que entra em vigor, abraçando todas as relações e situações de consumo.
Giovanni Ettore Nanni afirma que as relações de consumo ocupam espaço na ordem privada, explicando que elas
“são firmadas entre particulares (leia-se consumidor e fornecedor), subsumindo-se ao Direito Civil.
Neste contexto, apesar do ambiente em que o Código de Defesa do Consumidor foi idealizado, a fim de regrar o fenômeno da massificação dos contratos, em que se exigia a proteção da vulnerabilidade do polo mais fraco na relação consumerista, as bases teóricas negociais se encontram presentes.
A relação de consumo, a despeito de suas particularidades, especialmente vulnerabilidade do consumidor (art. 4º, I, CDC), deve ser considerada um negócio jurídico.
É sabido que “a liberdade de contratar e o princípio da autonomia da vontade, que fundamentavam o direito civil clássico, tornam-se insuficientes para assegurar a justiça e o equilíbrio nestas relações contratuais, determinando a necessidade da proteção dos mais fracos na sociedade de consumo de massas”.
Entretanto, é também assente que as “bases e fundamentos do direito do consumidor, sua base conceitual, e a lógica em matéria de direito material do consumidor (contratos e responsabilidade civil) tem sua sede no Código Civil”.
Há, portanto, que se reconhecer o negócio jurídico consumerista,”
Com a expressa positivação da constitucionalização do direito privado, a vigência do Código e Defesa do Consumidor e do atual Código Civil, pode-se concluir pela ampliação da proteção da parte vulnerável da relação, estendendo-se referida proteção para todas as relações obrigacionais.
Com efeito, no campo dos negócios jurídicos em geral compreendidas as relações de consumo), os artigos 113, 421 e 422 do Código Civil são claros e expressos ao estabelecer que todo contrato deve estar subordinado à sua função social e que a boa-fé objetiva é dever objetivo de conduta das partes contratantes.
Nessa esteira, há que se considerar, relativamente ao legislador civilista, que: a) a socialidade, a operabilidade e a eticidade expostas por ele, como princípios norteadores do Código Civil vigente; os instrumentos de abertura do sistema jurídico, como as cláusulas gerais e os conceitos legais indeterminados, entre outros, ampliam a garantia e a proteção das relações e situações jurídicas firmadas nos âmbitos jurídicos. A função social e a boa-fé objetiva, entre outras, reforçam a possibilidade de proteção das relações que acontecem na esfera privada, alcançando as esferas coletiva e difusa, ao mesmo tempo que abre espaço para a ampliação da proteção do bem de todos, do bem comum, que permite a realização da dignidade humana.
IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com o advento do Código Civil de 2002, fundamentado nos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade[20], a cláusula geral da boa-fé objetiva surge como dever de conduta das partes, a ser observada em quaisquer relações e/ou situações obrigacionais, extrapolando a esfera somente do consumidor e atingindo a esfera coletiva.
A boa-fé objetiva reside na conduta do sujeito de direito, e o impede de agir de forma desleal ou egoística. Exige que todos aqueles que participam da relação jurídica atuem com retidão, não frustrando as expectativas da contraparte.
Sua aplicabilidade não está vinculada somente à proteção do ente mais fraco da relação, mas deve se estender a todas as relações, inclusive as paritárias. Não se pode falar em relações obrigacionais, sejam elas de consumo, sejam contratos ou quaisquer outras, que estejam imunes à boa-fé objetiva.[21]
As normas que visam equilibrar as relações entre as partes da relação jurídica obrigacional, quer seja de consumo, quer da esfera essencialmente privada, ou da coletiva ou difusa, devem ser apreciadas, tanto pelo legislador ou julgador, quanto pela própria sociedade, como forma de atingimento do sumo bem, o bem comum da sociedade para que se possa atingir experimentar o bem comum de todos e de cada um.
Informações Sobre os Autores
Regina Vera Villas Bôas
Pós-doutora em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra/Ius Gentium Conimbrigae. Graduada, Mestre e Doutora em Direito Civil pela PUC/SP. Doutora em Direito Difusos e Coletivos pela PUC/SP. Professora e Pesquisadora nos Programas de Graduação e de Pós-graduação lato e stricto sensu na PUC/SP. Pesquisadora do Projeto de Pesquisas de Direito Minerário (convênio PUC/SP e VALE), coordenando as Pesquisas sobre as “cavidades naturais subterrâneas”. Professora e Pesquisadora no Programa de Mestrado em Concretização dos Direitos Sociais, Difusos e Coletivos no Centro Universitário Salesiano/SP, integrando o Grupo de Pesquisas “Minorias, discriminação e efetividade de direitos” e o Observatório de Violência nas Escolas (UNESCO/UNISAL). Avaliadora do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Vanessa Estephan Maluf
Formou-se em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Cursando Mestrado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) com Bolsa Integral de Estudos fornecida pelo Ministério da Educação para Pesquisa em Direitos Difusos e Coletivos. Cursou como ouvinte a disciplina “Análise Processual e Constitucional dos Direitos Difusos e Coletivos. Exame comparativo dos Institutos Constitucionais e do Processo Coletivo”, ministrada no curso de Mestrado em Direito das Relações Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Realiza atualmente Estágio Supervisionado em Docência na disciplina de Direito Civil I da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) ministrada pela Professora Regina Vera Villas Bôas. Atua como Advogada no escritório Demarest Advogados na área de Contencioso Cível e Arbitragem