O antropocentrismo da tutela ambiental: resquícios de uma cultura exploratória

Resumo: As controvérsias sobre ser a satisfação das necessidades humanas a finalidade de todas as normas ganharam destaque com a valorização do meio ambiente e do Direito Ambiental na última metade do século XX. Nesse cenário, podem-se verificar dois caminhos possíveis: o homem como centro de todas as normas, e a proteção do meio ambiente como um mero recurso para se atingirem os interesses do homem; ou o meio ambiente, em sua integralidade – aqui inclusos os seres humanos –, como alvo da proteção legal. O artigo retoma essa discussão à luz dos novos contornos do Direito Ambiental, sugerindo novas visões para a tutela legal do meio ambiente.

Palavras-chave: Antropocentrismo. Tutela Legal. Proteção integral. Meio Ambiente.

Abstract: Controversies about the satisfaction of human needs as the only law purpose become relevant when the world started to value nature and Environmental Law in the second half of the 20th century. In this scenario, two paths may be recognized: the man as the ruler of the universe, and the environment protection as a mere resource to achieving human interests; or the environment, in its integrity – here including human being –, as the target of legal protection. This article revive this discussion illuminated by the Environmental Law contours, suggesting new visions for the nature legal guardianship.

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Keywords: Anthropocentrism. Legal Guardianship. Complete Protection. Environmental.

Sumário: Introdução. 1. A visão antropocêntrica do Direito Ambiental. 2. A sensciência dos animais e a proteção autônoma de seus interesses. 3. O que diz o ordenamento jurídico?. Conclusão. Referências.

Introdução

As encíclicas papais constituem importante elemento para a construção da opinião pública. Dirigem-se não só aos fiéis da Igreja Católica, mas a todos aqueles que convivam com os temas apresentados pelo Sumo Pontífice.

A recentemente lançada “Lautado si”, também chamada encíclica verde, seguiu uma linha de cartas encíclicas de alcance global. A “Rerum novarum”, publicada por Leão XIII, em 1891, denunciou as precárias condições de trabalho dos operários, e a “Populorum progressio”, de Paulo VI, em 1967, externou a posição da Igreja Católica em defesa do progresso social como o único meio de alcançar a paz entre os povos.

Em 2015, foi o meio ambiente o alvo dos holofotes da encíclica papal. A “Laudato si” chama a atenção para a urgente necessidade de mudança cultural e política a fim de que possamos aprimorar a proteção do meio ambiente. Logo no início da carta, o Papa Francisco ressalta que deve ser abandonada a visão do homem como dominador, consumidor, mero explorador de recursos, de forma que se sinta intimamente unido a tudo o que existe, e não um corpo estranho ao ecossistema.

Suas palavras são sábias:

“Si nos acercamos a la naturaleza y al ambiente sin esta apertura al estupor y a la maravilla, si ya no hablamos el lenguaje de la fraternidad y de la belleza en nuestra relación con el mundo, nuestras actitudes serán las del dominador, del consumidor o del mero explotador de recursos, incapaz de poner un límite a sus intereses inmediatos. En cambio, si nos sentimos íntimamente unidos a todo lo que existe, la sobriedad y el cuidado brotarán de modo espontáneo. La pobreza y la austeridad de san Francisco no eran un ascetismo meramente exterior, sino algo más radical: una renuncia a convertir la realidad en mero objeto de uso y de dominio.” [1]

A linguagem deve ser a da fraternidade, e não de consumo e dominação. O mundo deve renunciar a conversão da realidade em mero objeto de uso ou de domínio do homem.

1. A visão antropocêntrica do Direito Ambiental

Esse debate nos remete a uma clássica controvérsia doutrinária do Direito Ambiental, que é o antropocentrismo (ou não) das normas que protegem o meio ambiente. Estaria a legislação ambiental destinada à tutela sempre do homem, em última instância, ou é possível considerar a proteção do meio ambiente em si, independentemente dos seres humanos?

O processo histórico de proteção do meio ambiente é recente, e a tendência é valorizá-lo e protegê-lo cada vez mais. Enquanto o bem ambiental, até a primeira metade do século XX, era visto como propriedade, hoje é considerado um objeto de gerenciamento por parte do homem, e não de disposição, fruição e gozo. Quando a Constituição fala que são bens da União os lagos e rios, pressupõe-se não um bem público, mas um terceiro gênero de bem, que destina ao Estado somente a gestão dos recursos ambientais.

O ministro Herman Benjamin lista três fases da acepção da proteção do meio ambiente: a fase do descobrimento, que durou até a metade do século XX, quando havia pouca preocupação com o meio ambiente; a fase fragmentária, quando se preocupava com a conservação dos recursos naturais, mas não com o meio ambiente em si mesmo; e a chamada “fase holística” – hoje vigente –, quando o Direito Ambiental “passa a ser protegido de maneira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado” [2].

É essa proteção integral que se defende em uma visão não antropocêntrica do Direito Ambiental. É a proteção do meio ambiente com foco não apenas no homem, como defendido por parte da doutrina[3], mas no conjunto do qual ele faz parte.

Nesse sentido é também o entendimento do teólogo e professor universitário Leonardo Boff, ao pregar a Ecologia Integral, corrente segundo a qual “Terra e seres humanos emergem como uma única entidade. O ser humano é a própria Terra enquanto sente, pensa, ama, chora e venera” [4].

 De acordo com a visão antropocêntrica, o direito ao meio ambiente seria voltado, unicamente, para a satisfação das necessidades humanas. A vida que não seja humana, portanto, só poderia ser tutelada pelo Direito Ambiental na medida em que sua existência garantisse a qualidade de vida do homem, sendo este o destinatário de toda e qualquer norma.

2. A sensciência dos animais e a proteção autônoma de seus interesses

O mundo, porém, está outra linha de progresso ambiental. A sensciência em animais, por exemplo, vem sendo reconhecida ao redor do globo, como na Nova Zelândia[5], na França[6] e no próprio Brasil, a exemplo do caso julgado em junho de 2015, no Foro Criminal da Barra Funda, interior de São Paulo. Na ocasião, a autora foi condenada como incursa, por trinta e sete vezes, nas penas do crime de maus tratos contra animais, com resultado morte, nos termos do art. 32, § 2º, da Lei 9.605/98, que trata das sanções penais e administrativas às condutas lesivas ao meio ambiente.

A sentença, com mais de 80 páginas, faz um apanhado da discussão sobre a sensciência dos animais, sem colocar, em qualquer momento, a violação dos interesses humanos como um requisito para que houvesse a violação do meio ambiente. Foi reconhecida, inclusive, a agravante de tortura, nos termos do art. 61, inciso II, alínea d, do Código Penal, o que destaca a independência da proteção dos animais, em detrimento da visão antropocêntrica. Ainda cabe recurso da decisão.[7]

Os interesses do meio ambiente são independentes e harmônicos, na medida em que a violação a uma parte ou aspecto do meio ambiente prejudica a sua proteção como um todo.

3. O que diz o ordenamento jurídico?

O art. 3º, § 1º, da Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n. 6.938/81), considera como parte do meio ambiente a vida em todas as suas formas, sem fazer qualquer ressalva de que o fim último dessa proteção concerne à proteção do ser humano. Essa é a visão da proteção integral do meio ambiente, considerado como um conjunto e não como fragmento.

A Constituição, igualmente, faz expressa referência à própria natureza como alvo da proteção legal. O direito fundamental constitucionalmente previsto é ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, nos termos do art. 225, e não a um meio ambiente que satisfaça as necessidades humanas, embora a preservação do meio ambiente não afaste a proteção da sadia qualidade de vida do homem. O patrimônio ambiental é uno, composto por seres humanos, águas, animais, florestas etc., que convivem com independência e harmonia.

Conclusão

O Direito Ambiental, portanto, deve ser pensado como a proteção legal da integralidade, e não da fragmentariedade. A visão de que meio ambiente e sua proteção legal viveriam em função dos seres humanos é um resquício da cultura exploratória que vigeu até a primeira metade do século XX. Hoje se sabe que o homem não transcende o ecossistema, mas é sua parte integrante.

Não se pode desprezar o todo em benefício da parte, sob pena de se violar o equilíbrio ecológico. Se a encíclica é verde, deve o Direito fazer, deste, um país verde, pautado pela solidariedade e fraternidade interbiológica.

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Referências
Encíclica “Laudato si”, de autoria do Papa Francisco, publicada em 2015, p. 11. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/1802790-el-texto-completo-de-laudato-si-la-enciclica-verde-del-papa-francisco>. Acesso em: 17 jun. 2015.
BENJAMIN, Antonio Herman de V.. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. In: A Proteção Jurídica das Florestas, Vol. I, BENJAMIN, Antonio Herman (org.). São Paulo: IMESP, 1999. pp. 75 e seguintes.
FIORILLO, Celso A. P.. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 14a. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 45-47.
BOFF, Leonardo. Ecologia integral. Disponível em: <http://leonardoboff.com/site/eco/eco_int.htm>. Acesso em: 18 jun. 2015.
 
Notas:

[1] Encíclica “Laudato si”, de autoria do Papa Francisco, publicada em 2015, p. 11. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/1802790-el-texto-completo-de-laudato-si-la-enciclica-verde-del-papa-francisco>. Acesso em: 17 jun. 2015.

[2] BENJAMIN, Antonio Herman de V.. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. In: A Proteção Jurídica das Florestas, Vol. I, BENJAMIN, Antonio Herman (org.). São Paulo: IMESP, 1999. pp. 75 e seguintes.

[3] FIORILLO, Celso A. P.. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 14a. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, pp. 45-47.

[4] BOFF, Leonardo. Ecologia integral. Disponível em: <http://leonardoboff.com/site/eco/eco_int.htm>. Acesso em: 18 jun. 2015.

[7] Ação Penal. Processo nº 0017247-24.2012.8.26.0050. Crimes contra a fauna. 9ª Vara Criminal – Foro Central Criminal Barra Funda. Julgado em 18.06.2015.


Informações Sobre o Autor

Thiago Fhilipe Rodrigues de Carvalho

Graduado em Direito. Graduado em Letras-Português. Pós-graduando em Direito Imobiliário e Urbanístico. Analista Jurídico no Conselho Federal da OAB


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