O Baralho do Crime da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia: Uma Crítica Criminológica e Constitucional

Natassia Thamizy Araújo Lima Mendonça ([email protected]) – Advogada Criminalista; Pós-graduanda em Ciências Criminais e Criminologia

 

RESUMO: A utilização do Baralho do Crime como ferramenta (in)apta a servir de atalho à Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia e seus agentes, quanto á localização de indivíduos nas diversas situações jurídico-processual estabelecidas pelas Polícias e/ou Poder Judiciário, viola frontalmente o princípio da presunção de inocência, realiza uma condenação moral daqueles que o integram e criam um verdadeiro álbum de figurinhas etiquetadas, enfeitadas com “vulgos” e selecionadas de acordo o grau de competência na suposta escala da vida criminal.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

PALAVRAS CHAVE: baralho; atalho; polícias; poder judiciário; presunção; inocência; condenação; moral; etiquetadas; “vulgos”; criminal.

 

ABSTRACT: The use of the Crime Deck as a tool (in)able to serve as a shortcut to the Secretariat of Public Security of the State of Bahia and yours agentes, regardin the locations of individuals in the various different procedural situations estabelished by the Police and/or Judiciary, violates The principle of the presumption of innocence is straightforwardly condemning a moral condemnations of this members and creating a veritable álbum of labeled stickers adorned with “vulgos” and selected according to be degree of competence on the supposed scale of criminal life.

KEYWORDS: deck; shortcut; police; judicial; power; presumption; innocence; conviction; moral; labeled; criminal; life.

 

Sumário: Introdução. 1. Surgimento do Baralho do Crime no Estado da Bahia. 2. Mais do que simples relativização do Direito de Imagem. 3. Baralho do Crime, in dubio pro societate e a Garantia Constitucional de Presunção de Inocência.4. Caso Real: A integrante do Baralho do Crime como a carta 10 de Copas. 5. O Baralho do Crime e sua filiação com a Teoria do Etiquetamento. 6. Considerações Finais. Referências Bibliográficas.

 

 INTRODUÇÃO

O baralho, as cartas de jogo mais conhecidas no mundo inteiro, foi criado por um Francês de nome Jacquemin Gringonneur, tendo sido encomendada pelo Rei Carlos VI de França. O baralho teria sido criado para representar as divisões sociais na França através dos naipes. Copas representaria o clero, o Ouro representaria a burguesia; a Espada representando os militares e os Paus representando os camponeses.

Os jogos de baralho ficaram famosos na Idade Média quando os Senhores Feudais começaram a fazer apostas com suas terras e escravos, promovendo riqueza de uns e pobreza de outros.

Atravessando a ideia dos jogos de azar, com a jogatina dos Senhores Feudais fazendo apostas dos seus “bens”, o baralho passou a ser muito utilizado como jogos de distração e lazer mundo a fora.

Um jogo completo de cartas do baralho possui cinquenta e duas cartas, sendo divididas nos quatro naipes, cada naipe contendo treze cartas. Todas as cartas possuem valores, de 2 a 10, contendo ainda um “As” como sendo a maior carta de todo o jogo, um Valete representado pela carta “J” de valor 11, uma Rainha representada pela carta “Q” de valor 12 e um Rei representado pela carta “K” de valor 13.

Mas indo além e passando de jogatina e lazer, no ano de 2008, no Estado da Bahia, as famosas cartas do baralho passaram a integrar o sistema da Secretaria de Segurança Pública, formando um jogo muito mais sério, com a utilização e veiculação de fotografias pessoais de indivíduos, rotulando-os aos valores determinados de cada carta, formando assim o Baralho do Crime, ferramenta do Disque Denúncia.

Num primeiro aspecto, o presente texto fará uma abordagem em torno de garantia constitucional frontalmente violada quando da utilização deste mecanismo pelos agentes de segurança pública, que se complementa na geração de um grupo com estigma de delinquência. A Problemática trará os seguintes questionamentos: Aonde se encontra a garantia constitucional de presunção de inocência? Estaria pois os interesses da Secretaria de Segurança Pública acima das garantias constitucionais da CF de 1988? Tal seleção de cartas gera uma rotulagem àqueles que integram o referido “jogo”? Além de trazer uma reflexão sobre a estigmatização de indivíduos nas diversas situações de um processo penal e as consequências posteriores.

Como objetivo geral, o presente artigo pretende elaborar a discussão acerca da (i)legalidade que circula em torno da utilização do baralho do crime, desde a utilização da imagem de alguém, direitos este que não pode ser violado e devidamente garantido pela CF/88; passando pela violação à presunção de inocência (não culpabilidade) e chegando ao ponto crucial que demonstra que tal invenção fortalece os rótulos sociais, abraçando a Teoria do Etiquetamento e rotulando indivíduos.

 

1 SURGIMENTO DO BARALHO DO CRIME NO ESTADO DA BAHIA

No ano de 2004 a Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia começou a estudar uma forma de dar mais eficiência no combate à criminalidade, realizando análise de como funcionavam os sistemas de investigação e operações em outros Estados do país, tendo chegado ao que hoje conhecemos por “Disque Denúncia”.

No final de 2005 começaram os trabalhos de convencimento dos delegados do Estado para que fosse possível se utilizar dos bancos de dados que estava então sendo formado por uma Equipe da referida Secretaria e no ano de 2007 o Disque Denúncia já estava consolidado, com possibilidade de disponibilidade perante a polícia.

Já com a utilização do Disque Denúncia, com recebimento de “denúncias” vinda de pessoas anônimas, começou a utilização de cartazes contendo fotografias daqueles que haviam sido alcance de denúncias anônimas. Tais cartazes eram distribuídos nos hospitais, delegacias, rodoviárias, terminais marítimos, entre outros locais de grande circulação, possuindo o número do Disque Denúncia.

Assim, acompanhando o novo Secretário de Segurança Pública, em 2008 foi necessário inovar os meios para facilitar a atividade policial no Estado, formando o Baralho do Crime, ferramenta do disque Denúncia, utilizada para veicular na internet as fotos de sujeitos procurados pela polícia e judiciário, contendo fotografia, nome e apelido na parte da frente e, qual o crime cometido e situação pessoal, se evadido, se em local incerto.

O Baralho do Crime se construiu com o ponta pé inicial sendo solicitada à POLINTER um banco de dados, onde seria informada a Secretaria de Segurança Pública alguns indivíduos tidos como “alvo”. O Baralho somente foi exposto quando a Secretaria de Segurança Pública conseguiu reunir 52 nomes de pessoas procuradas.

Mas para que o mecanismo funcionasse, a criadora, Dayse Dantas Oliveira, determinou que as cartas fossem numeradas conforme o jogo do baralho original, do menor para o maior, sendo que o “As” seria sempre o indivíduo procurado supostamente mais perigoso; todo e qualquer nome recebido passava por uma análise direta com juízes, desembargadores, nas unidades prisionais, para saber se, de fato, àquele possuía condenação.

Quando criado o Baralho, somente poderia ser integrante àquele que tivesse sido julgado e condenado, para que não houvesse violação da garantia da presunção da inocência.

Hoje a funcionalidade do baralho abrange uma escala muito maior de situações jurídicas, podendo ser integrante do “jogo” aqueles que nem mesmo foram condenados, ou até mesmo aqueles que sequer foram julgados, passando por cima da garantia legal da presunção de inocência e in dubio pro reo, vivendo o Estado a realidade do direito penal do inimigo e tendo como base o in dubio pro societate.

Na atualidade as Cartas do Baralho do Crime compõem na frente a fotografia e o apelido (vulgo) e na parte traseira o nome completo, o suposto delito cometido pela pessoa procurada e a área de atuação. São publicadas para pessoas com mandado de prisão (por condenação, poucas vezes; em grande número por prisão provisória) e não localizadas.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

 

2 MAIS DO QUE SIMPLES RELATIVIZAÇÃO DO DIREITO DE IMAGEM

O art. 5º, inciso X da Constituição Federal/88 determina que a imagem de uma pessoa é inviolável. No mesmo seguimento o Código Civil tem a imagem de um indivíduo como um direito de personalidade autônomo, sendo a projeção da personalidade física da pessoa.

A doutrina moderna consagra três tipos de Direito de Imagem: imagem retrato, imagem autoral e imagem social. Aqui, importa destacar apenas duas:

A “imagem retrato” se traduz como sendo a imagem física de um determinado indivíduo, sua fisionomia, corpo, gesto, etc., que pode de alguma forma ser captada, seja por fotografia, filmagem ou outro.

A “imagem social” se resume nas qualidades exteriores da pessoa, baseando no que ela demonstra na vida em sociedade. Em geral, os agentes causadores de danos a esta imagem social são os meios de comunicação em massa, como televisão, rádio, jornais, internet – que se emparelha com o caso do presente estudo.

As cartas do Baralho do Crime trazem uma violação direta a imagem física do sujeito, a sua fisionomia retratada; como também imbui ao mesmo uma imagem social de delinquência.

Poucas são as exceções para que este direito seja relativizado. A permissão para a utilização da imagem de alguém sem autorização somente poderá ocorrer quando necessária à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública.

Aqui talvez seja o ponto legal a que a Secretaria de Segurança Pública se apoia para a utilização de imagens dos rostos de indivíduos procurados pelas Polícias, em meio de veiculação nacional e totalmente irrestrito: uso da imagem sem autorização para a administração da justiça ou manutenção da ordem pública.

A Ordem Pública é conceituada como o estado de legalidade normal, em que as autoridades conseguem exercer suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam. Do ponto de vista mais formal, ordem pública seria o conjunto de valores, de princípios e de normas que se pretende sejam observados em uma sociedade.

A ordem pública também está presente dentre os requisitos essenciais e necessários para a decretação de uma prisão preventiva, no sentido de tal prisão se fazer necessária para assegurar a ordem e sossego da sociedade, frente ao perigo que a liberdade daquela pessoa possa oferecer.

Entretanto, não há que se falar em liame entre a utilização do Baralho do Crime com a necessidade de administração da justiça ou à manutenção da ordem pública. Pelo menos não em todos os casos.

Conforme dito acima, no início o Baralho do Crime somente integrava àqueles que já tivessem sido julgados e condenados, sendo feita uma pesquisa de campo pelas unidades prisionais, fórum e Tribunal, afim de garantir a execução da medida de forma certeira, sem equívocos, erros. Somente estaria entre as 52 cartas aquele que, com sentença penal condenatória, estivesse evadido.

Neste cenário talvez fosse possível pensar em administração da justiça.

Ocorre que, hodiernamente, o Baralho integra, também, investigados, pessoas que sequer foram citadas para apresentar resposta a acusação, outros que estão ainda com processo em curso, nos levando não a uma relativização do direito de imagem (exceção), mas a uma verdadeira violação.

Um grande problema trazido pelo Baralho do Crime se traduz no contexto concreto da sua própria existência: a exposição e violação da imagem de alguém não julgado pelo cometimento de um suposto crime, violando o seu direito a presunção de inocência, o seu direito de um julgamento amparado no devido processo legal.

E assim é feita a exposição no site do Disque Denúncia, 52 cartas, 4 naipes diferentes, contendo fotografias, os nomes completos e a associação à um delito não julgado. Viola-se o Direito de Imagem daquela pessoa com a desculpa de que tal feito foi necessário para garantir a administração da justiça ou ordem pública.

Não se pode falar em simples relativização do Direito de Imagem quando a atuação da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia se confunde com a função jornalística.

Sim, é o que acontece neste caso. Trata-se de uma Secretaria voltada a Segurança Pública que, tem como objetivo a investigação e elucidação de delitos praticados no Estado da Bahia. Entretanto, a utilização do Baralho do Crime se configura como meio de comunicação com intenção máxima de poder direta com o espectador, capaz de construir ideias e estigmas.

Vivemos a era digital, recebemos a revolução da internet e da propagação mais feroz e mais veloz das notícias. O mundo inteiro acessa a internet de todos os cantos do planeta – de casa, do trabalho, nos ônibus, nas ruas, através de celulares, tablets, notebooks, aparelhos televisores.

Assim, o Baralho do Crime está situado no meio digital, site aberto na internet, com alcance mundial, rápida circulação, configurando-se um jogo de atividade midiática com intuito único de possivelmente facilitar uma atuação da polícia, ainda que pretérita.

 

3 BARALHO DO CRIME, IN DUBIO PRO SOCIETATE E A GARANTIA CONSTITUCIONAL DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O in dubio pro societate é um princípio (ficto) que carrega conceito contrário ao in dubio pro reo. No in dubio pro societate, não prospera a ideia de que “na dúvida a lei deve favorecer o réu”, mas que mesmo que haja dúvida quando a autoria e materialidade de determinado fato delituoso, a dúvida deve favorecer a sociedade – ou seja, vale mais acalmar os anseios da sociedade.

Isto porque, Segundo Batista (2003, p. 26), “sociedades assombradas produzem políticas histéricas de perseguição e aniquilamento”.

Juristas como Juarez Tavares e Geraldo Prado expõe o entendimento da não recepção deste princípio no Ordenamento Jurídico Brasileiro.

“Não existe esse princípio na ordem jurídica. O princípio ‘in dúbio pro reo’ é uma consequência do princípio da presunção de inocência, que deixou de ser um princípio procedimental para se constituir numa pilastra do Estado de direito democrático. Nesse estado, o que se pretende é justamente limitar o poder de punir e não ampliar suas bases. Afirmar-se o ‘in dúbio pro societate’ é regressar ao estado despótico. Quando a Constituição do Brasil instituiu a proteção da dignidade humana como fundamento do Estado democrático já estabeleceu, nas relações jurídicas, o primado do sujeito sobre a sociedade. Essa opção do direito positivo não encampa outra interpretação. Mesmo ao dizer que compete ao Estado zelar pela segurança pública, tal programa político-jurídico tem como pressuposto a proteção da pessoa individual. A chamada proteção do estado e da sociedade é, na verdade, uma extensão da proteção do sujeito. Nesse sentido, na dúvida, a opção deve ser pela pessoa e não pelo estado ou pela sociedade.” (Juarez Tavares, Professor Titular de Direito Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e na Universidade de Frankfurt am Main, na Alemanha)

“Em teoria o direito processual penal brasileiro não reconhece o in dubio pro societate como critério de resolução da incerteza. O critério vigente, que decorre da presunção de inocência, é o in dubio pro reo. Convém ressaltar que cada etapa do processo tem seu específico âmbito de conhecimento. Assim, no início do processo, por exemplo, a dúvida somente se refere à existência de indícios de autoria e materialidade. Se há dúvida quanto à existência desses indícios, a acusação deve ser rejeitada.

O caso é outro se na mesma etapa a dúvida versa sobre a inocência ou culpa do acusado, reconhecendo-se a existência de indícios. Se os indícios estão presentes, estar em dúvida sobre culpa ou inocência é algo que não se coloca na etapa inicial, cabendo acolher a denúncia para que as provas aí sim sejam produzidas. Isso nada tem a ver com o ‘in dubio pro societate’, também denominado ‘in dubio contra reum’, resquício de modelos autoritários de processo penal. Não é raro os tribunais confundirem a cognição sumária inicial com situações de ‘in dubio pro societate’ e acertarem no resultado, errando, porém, quanto ao fundamento.”  (Geraldo Prado, Professor de Direito Processual Penal na Universidade Federal do Rio de Janeiro)

O Baralho do Crime se iniciou como uma ferramenta apta a ajudar na localização de fugitivos judiciais, àqueles que possuíam sentença condenatória devidamente justificada através de toda uma instrução probatória, mas que haviam se evadido do endereço constante dos autos ou de unidade prisional a fim de não cumprir pena imposta.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!

Em uma análise, ainda que superficial, podemos enxergar o quanto o aparato do baralho do crime está intimamente ligado ao princípio do in dubio pro societate. Se misturam quando o baralho entrega à sociedade os rostos de pessoas a quem lhe implicam o cometimento de supostos crimes, impondo mais poder à dúvida da coletividade do que as normas trazidas na nossa Lei Maior, a Carta Magna.

Atualmente, o “jogo” da Secretaria de Segurança Pública do Estado da Bahia inclui indivíduo que sequer foram citados devidamente no processo, levando em consideração tão somente os elementos constitutivos de uma operação investigativa ou inquérito policial, a fim de fazer valer um status triunfal da polícia frente as críticas sobre a deficiência do sistema de segurança pública.

Fica escondida a presunção de inocência, utiliza-se do meio mais fácil, publica a imagem de um indivíduo não condenado, não julgado, que às vezes sequer foi citado no processo para apresentação de defesa inicial. Prende primeiro, julga depois e anula a disposição do princípio da presunção de inocência.

O supramencionado princípio é trazido na Constituição da República Federativa em seu art. 5º, inciso LVII, determinando que ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Tal princípio garante ao indivíduo um julgamento justo, conforme o espírito de um Estado Democrático de Direito.

Em relação a esse princípio, Júlio Fabbrini Mirabete (2005, p. 46) assim expõe:

Com a adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), conforme Decreto nº 678, de 6-11-1992, vige no país a regra de que ‘toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente a sua culpa’ (art. 8º, 2, da Convenção).

Para Aury Lopes Jr (2019), a presunção de inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento (na medida em que exige que o réu seja tratado como inocente), que atua em duas dimensões: interna ao processo e exterior a ele.

Na dimensão interna, a presunção de inocência é um dever de tratamento imposto, inicialmente, ao juiz, determinando que a carga da prova seja conduzida inexoravelmente à absolvição. Já na dimensão externa tem-se uma exigência de proteção contra a publicidade abusiva e estigmatização (precoce) do réu. Ou seja, significa que a presunção de inocência (e demais garantias constitucionais como da imagem, dignidade e privacidade) deve ser utilizada como verdadeiro limite à abusiva exploração midiática.

Totalmente alinhada ao presente trabalho, a dimensão externa da presunção de inocência visa proteger exatamente o mesmo bem que a Secretaria de Segurança Pública da Bahia desprotege com a utilização, veiculação do baralho do crime. Desprotege o direito à imagem, à privacidade, à não culpabilidade e define de forma precoce um status de culpa.

Conforme Alexandre de Moraes (2007), em regra, direitos constitucionais definidos como direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade imediata.  E a própria Constituição Federal, em uma norma síntese, determina esse fato, expressando que as normas definidoras e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

A utilização das cartas do Baralho do Crime trabalha a contrassenso imediato, trazendo, ao invés de aplicabilidade imediata à não culpabilidade, ao expor aquele indivíduo retira a possibilidade de aplicação do princípio da presunção de inocência.

A Declaração Universal do Direitos Humanos também traz a presunção de inocência como direito garantido, em seu artigo XI, determinando que:

“Toda pessoa acusada de um ato delituoso tem o direito de ser presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”

Um juiz que atua num processo onde o acusado é integrante do baralho do crime, inclusive porque este possui uma característica vulgarmente pública, inicia uma persecução criminal estigmatizada na periculosidade do mesmo, posto que em termos práticos incluir o baralho do crime e ter um grau de periculosidade elevado, são a mesma coisa. O livre convencimento motivado se perde na medida que se inicia a publicação de um novo integrante no jogo de cartas do Disque Denúncia, sendo a presunção de inocência daquele totalmente anulada.

O que se verifica é uma manipulação do direito penal, utilizado como um instrumento de perseguição, com expedição de mandados de prisão fundamentados em boatos, exploração da imagem pessoal de um indivíduo sem que tenha qualquer relevância a sua real situação jurídico-processual.

 

4 CASO REAL: A INTEGRANTE DO BARALHO DO CRIME COMO A CARTA 10 DE COPAS

Em 3 de novembro de 2017, o site “Bocão News” apresentou matéria sobre duas cartas constantes no Baralho do Crime à época, denominando a ferramenta do Disque Denúncia como tendo sido “criada para estimular a participação da população na busca dos bandidos mais perigosos da Bahia”.

A reportagem fala sobre duas mulheres que haviam herdado o tráfico de drogas, vindo a se tornar liderança após as mortes dos referidos companheiros em confronto com a polícia.

Uma das cartas, 10 de Copas, trazia a imagem de “Mari”. Segundo investigações a mesma era procurada por tráfico de drogas na cidade de Salvador, por ser viúva de um suposto traficante morto em confronto com a polícia.

Em toda a reportagem noticiada no referido site, não existe qualquer menção a situação jurídico-processual da integrante do Baralho do Crime. Mesmo porque com a simples análise dos autos em sistema eletrônico de consultas processuais, que é público, verifica-se que, mesmo integrando o jogo da Secretaria de Segurança Pública e já tendo sido caracterizada como uma pessoa “perigosa” – primária e sem antecedentes, “Mari” sequer tinha sido encontrada para apresentar defesa escrita ao processo.

Sua prisão havia sido decretada por erro judiciário, posteriormente revogada por fundamentos justificáveis considerando a nulidade da citação e em seguida sua carta do Baralho do Crime substituída.

Moral da história: criou-se um estigma de periculosidade sobre a pessoa daquela mulher que nem mesmo havia passado por uma percussão criminal, quanto mais uma condenação e que hoje, após quase 2 (dois) anos da publicação da referida matéria, não houve condenação transitada em julgada, ou seja, legalmente não existe qualquer notícia de que a mesma tenha de fato praticado qualquer conduta ilícita, nos moldes do Código Penal ou Legislação Extravagante.

No Baralho do Crime o princípio da presunção de inocência, garantia constitucional exaustivamente abordado, se encontra abaixo dos interesses da Secretaria de Segurança Pública ao fazer valer um princípio fictício, nem mesmo amparado pela nossa constituição, o in dubio pro societate.

Aumenta o poder estatal em detrimento do cidadão caracterizado como o inimigo da sociedade, desprezando a sua essência humana e trazendo um reflexo do populismo penal.

 

5 O BARALHO DO CRIME E SUA FILIAÇÃO COM A TEORIA DO ETIQUETAMENTO

Etiqueta no sentindo mais literal da palavra, significa o conjunto de regras de conduta. Vinculado ao sentido literal da palavra etiqueta, acomoda-se a Teoria do Etiquetamento Social ou Labeling Approach, uma das mais importantes teorias, nasceu na década de 60, nos Estado Unidos, decorrente de movimentos de construção e radicalização no campo social e de algumas ciências humanas – Criminologia.

Essa teoria dispõe que a criminalidade não é uma qualidade da conduta humana, mas a consequência de um processo em que se atribui tal “qualidade”, ou seja, uma estigmatização social.

O criminoso então somente se diferencia do homem comum em razão de um rótulo que recebe.

Segundo Alessandro Baratta (2019, p. 86), “a Labeling Approach tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de acusação pública e dos juízes.”

É neste sentido que atua o Baralho do Crime. Quando se utiliza de um jogo, faz uma brincadeira séria com a imagem de uma determinada pessoa e lhe impõe um rótulo de “delinquência”, “bandidagem”, “marginalização”.

Conforme expõe a Secretaria de Segurança Pública e todos os meios de circulação de notícias sobre o Baralho do crime, notícias essas que seriam inexistentes se tal artefato também fosse inexistente, somente integram o Baralho do Crime os “bandidos mais perigosos da Bahia”.

Não existe sequer uma apuração prática de situação jurídica-processual de quem passa a integrar o rol de cartas do jogo de gente grande da SSP/BA, tão somente lhe impõe a certeza de um crime supostamente praticado e o rotula na qualidade de inimigo da sociedade.

Não pesa qualquer dúvida quanto a esta afirmação. Os processos são públicos, se for feita uma breve averiguação dos integrantes do Baralho do Crime com os processos relativos, estará lá a situação processual em curso, sem condenação transitada em julgado.

A Teoria do Etiquetamento é o bullying que alcança indivíduos de uma determinada posição social, e não menos importante, na maioria das vezes atuando como um preconceito de raça, cor, etnia. Etiqueta-se como marginal o mais pobre, o negro, o morador da favela.

E sobre isto, Alessandro Baratta (2019, p. 165) expõe:

“As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da ‘população criminosa’ aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social – subproletariados e grupos marginais. A posição precária no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de qualificação profissional) e os defeitos de socialização familiar e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos, e que na criminologia positiva e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes, conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.”

Se for analisar todos que integraram, integram e até mesmo aqueles que futuramente venham a integrar o baralho do crime, sem sobra de dúvidas a sua maioria são indivíduos moradores das periferias e classes mais baixas da sociedade, sem índice de escolaridade ou em situação de desemprego.

Segundo Alessandro Baratta (2002, p. 89), o Etiquetamento se configura na sustentação de um processo de interpretação, definição e tratamento, de forma que alguns indivíduos pertencentes à determinada classe interpretam uma conduta como desviante, definem as pessoas praticantes dessa mesma conduta como desviantes e empregam um tratamento que entendem apropriados em face dessas pessoas, onde acaba estigmatizando determinadas pessoas.

Essa teoria demonstra que os mecanismos usados para o controle da criminalidade não a detém, e sim, a causam, isto porque no momento em que os mecanismos que controlam a sociedade atuam, automaticamente geram uma espécie de rotulagem dos criminosos, ou seja, etiquetar do resto da sociedade, correndo um processo de discriminação. E talvez essa seja uma desculpa da Secretária de Segurança Pública para a utilização do Baralho: controle de criminalidade. Mecanismo falho!

A simples atribuição aos integrantes do baralho do crime numa definição de criminoso, ou seja, a atribuição a estes da qualificação de criminoso, e de um status social correspondente, tem sobre o comportamento final destes indivíduos uma eventual consolidação do papel de criminoso – ainda que na prática não o seja – moralmente já são. O que se vê são os efeitos da estigmatização penal sobre a identidade social do indivíduo, ou seja, sobre a definição que os outros lhe dão.

Assim, um integrante do supramencionado jogo, já figura numa exordial acusatória e durante toda uma instrução processual, além dos meios midiáticos como uma pessoa de alta periculosidade.

 

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A problemática que envolve o Baralho do Crime se configura não só com a violação de garantias constitucionais de afronta ao direito de imagem, presunção de inocência, mas causa um aumento de pessoas que trazem consigo e levaram para sempre a qualidade de “inimigos da sociedade”.

O Baralho do Crime se torna a sociedade que exclui toda possibilidade, inclusive de ressocialização em casos de superveniente condenação, já que a maioria dos integrantes atuais do baralho não possuem condenação – enquanto que o próprio integrante do jogo fica na posição de excluído, posto que já definido como marginal e, nesta perspectiva não podemos enxergar a inclusão e exclusão ao mesmo tempo.

Não só a rotulagem se faz prejudicial, mas principalmente a rotulagem sem um devido processo legal, sem um julgamento e posterior condenação. A verdadeira caracterização de uma antecipação de pena condenatória.

A estigmatização de uma pessoa condenada já gera dificuldades na vida posterior ao cárcere, sem que o permita o direito ao esquecimento; a veiculação da imagem de referências de um indivíduo que não teve ao menos o direito a ampla defesa e contraditório, lhe tira a chance de dúvida, lhe impõe a certeza de marginalização.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

MORAES; Alexandre de. Direito Constitucional. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2007

LOPES; Aury. Direito Processual Penal. 16. Ed. São Paulo: Saraiva, 2019

BNEWS. Bnews.com.br., 2017. Mulheres integrantes do Baralho do Crime herdam lideranças do tráfico, afirma SSP. Disponível em: <https://www.bnews.com.br/noticias/policia/policia/190459,mulheres-integrantes-do-baralho-do-crime-herdaram-liderancas-do-trafico-afirma-ssp.html>. Acesso em: 20 de junho de 2019.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Critica e Critica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.   ^

Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.

História e Criação do Baralho do Crime: entrevista concedida pela criadora do mecanismo, Dayse Dantas Oliveira.

MIRABETE, Júlio Fabbrini. Execução penal. São Paulo: Atlas, 1996.

JUSTIFICANDO. Justificando.com., 2017. Não existe o princípio “in dubio pro societate” na ordem jurídica, apontam juristas. Disponível em <http://www.justificando.com/2017/07/17/nao-existe-esse-principio-in-dubio-pro-societate-na-ordem-juridica-apontam-juristas/>. Acesso em: 20 de setembro de 2019.

Está com um problema jurídico e precisa de uma solução rápida? Clique aqui e fale agora mesmo conosco pelo WhatsApp!
logo Âmbito Jurídico