Resumo: O presente trabalho se debruça sobre o caso da obrigatoriedade de inclusão de criança em creche, almejando comprovar que as teorias dos sociólogos Luhmann, Habermas e Beck não se tornaram obsoletas. Diante da aproximação entre o direito e a sociologia, busca-se comprovar o ponto de vista dos autores supracitados na prática social e na aplicação de suas teorias ao caso concreto.[1]
Palavras-chave: Luhmann; Beck; Habermas; Sociologia; Direito.
Abstract: This article focuses on the case of mandatory inclusion of children in nursery school, aiming to prove that the theories of the sociologists Luhmann, Habermas and Beck didn’t become obsolete. Facing the approach between Law and Sociology, seeks to prove the point of view of these authors in today’s reality and the application of his theories to the factual case.
Key words: Luhmann; Beck; Habermas; Sociology; Law.
Sumário: 1. Introdução. 2. Descrição do caso. 3. Luhmann e a Teoria dos Sistemas. 4. Beck e a Teoria do Risco. 5. Habermas – Direito entre faticidade e validade. 6. Conclusão.
1. Introdução
O presente trabalho se debruça sobre o caso concreto da obrigatoriedade – ou não – de o Estado prover o acesso de crianças a estabelecimentos de educação infantil de modo tal a comprovar que as teorias cunhadas pelos sociólogos Luhmman, Habermas e Beck não ficaram obsoletas. Pelo contrário, a hodiernidade de tais teorias pode ser perfeitamente comprovada quando correlacionadas ao caso em questão.
Nesse sentido, a decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, a favor da matrícula da criança C. S. L. em uma creche, foi analisada sob a ótica da Teoria de Sistemas de Luhmann, de modo tal a contrariar a alegação do Município de Criciúma no que tange à ofensa aos princípios da legalidade e da separação dos poderes e a mostrar que os problemas adentram o sistema do Direito como incertezas, porém, saem na forma de certezas dadas de acordo com as competências jurídicas.
Não obstante, o caso foi também submetido à ótica de Habermas, tendo sido definido na perspectiva de que o Direito absorve os riscos que escapam das instituições. Para tanto, esta produção ressaltou a aproximação manifesta entre a teoria e a prática, destacando que o Direito não só pode – como deve – tentar resolver os conflitos da sociedade, mesmo que aparentemente não sejam de sua competência, de modo tal a promover a integração social nas sociedades modernas.
Por fim, destacou-se a produção intelectual de Beck. Tomando por base a Teoria do Risco, mostrou-se que o risco é uma característica iminente de qualquer sistema. Partindo dessa prerrogativa, Beck concebe que o risco do Direito é o de produzir a decisão incorreta, contudo, a sociedade moderna encontra meios para lidar com ele e, em certo grau, tenta prevê-lo. Essa concepção é facilmente retratada na possibilidade das partes recorrerem às instâncias superiores, tal qual ocorreu com a apelação do Município.
2. Descrição do caso
O caso em questão discute se a Constituição Federal de 1988 garante ou não acesso obrigatório de crianças a estabelecimentos de educação infantil – sendo, inclusive, tema com repercussão geral no Supremo Tribunal Federal. Na origem, refere-se a um mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público catarinense contra Jadna Mara Dandolini Tasca, Secretária Municipal de Educação de Criciúma, requerendo o fornecimento de vaga em estabelecimento de ensino infantil para a criança C.S.L, isto é, com o objetivo de que a criança fosse matriculada em uma creche. A primeira instância da justiça catarinense determinou que a autoridade coatora promovesse a inclusão da referida criança na instituição de educação infantil, decisão posteriormente confirmada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC) sob o fundamento de que a educação é direito fundamental e social, tendo o poder público dever de garanti-la.
Inconformado, o Município de Criciúma recorreu, alegando que a sentença proferida em primeiro grau ofendia os princípios da legalidade e da separação dos poderes, uma vez que o administrador está adstrito ao cumprimento da lei, não podendo o Poder Judiciário intervir, impondo-lhe gastos que não estão incluídos no planejamento orçamentário. Arguiu, outrossim, que somente o ensino fundamental é imposição intangenciável – direito público subjetivo -, sendo a promoção do ensino infantil mera norma programática, que deverá ser cumprida dentro dos limites e possibilidades do Poder Público.
A Terceira Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de Santa Catarina apreciou o recurso interposto pelo Município de Criciúma e, por unanimidade, negou-lhe provimento, confirmando a sentença proferida em primeira instância. O relator, Desembargador Luiz Cézar Medeiros, justificou seu voto dizendo que se curvava ao entendimento sufragado pelo Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, conforme as razões sintetizadas pela eminente Desembargadora Sônia Maria Schmitz no voto proferido na Apelação Cívil em Mandado de Segurança n.2006.026360-0, de Criciúma:
“A educação infantil representa prerrogativa constitucional indisponível, que, deferida às crianças, a estas assegura, para efeito de seu desenvolvimento integral, e como primeira etapa do processo de educação básica, o atendimento em creche e o acesso à pré-escola. (CF, art. 208, IV). Essa prerrogativa jurídica, em consequência, impõe, ao Estado, por efeito da alta significação social de que se reveste a educação infantil, a obrigação constitucional de criar condições objetivas que possibilitem, de maneira concreta, em favor das ‘crianças de zero a seis anos de idade’ (CF, art. 208, IV), o efetivo acesso e atendimento em creches e unidades de pré-escola, sob pena de configurar-se inaceitável omissão governamental, apta a frustrar, injustamente, por inércia, o integral adimplemento, pelo Poder Público, de prestação estatal que lhe impôs o próprio texto da Constituição Federal.”
Não obstante, o voto do relator ainda encontra fundamentação no fato de que os direitos fundamentais – como à educação – expressam a vontade maior dos cidadãos, que os erigiram a esta qualidade, almejando uma satisfação ao interesse social. Desta forma, esses direitos constituem um leque de garantias que impõem limitações ao poder concedido pelo povo a seu governante. Assim, direitos dessa magnitude não podem se sujeitar à discricionariedade dos agentes políticos, nem sequer às razões de disponibilidade dos governantes.
3. Luhmann e a Teoria dos Sistemas
Niklas Luhmann (1927-1998) foi professor da Universidade de Bielefeld entre 1966 e 1993, sendo considerado, hoje, junto com Jürgen Habermas, o mais famoso representante da sociologia alemã. Sua contribuição mais significativa diz respeito à interpretação da sociedade como um sistema, partindo da descrição de sociedade do autor em questão como um sistema social mais abrangente, que inclui todos os outros sistemas sociais. (LUHMANN, 1997, P. 78).
Para o sociólogo alemão, a realidade toda é um sistema que, por sua vez, é composta por diversos outros subsistemas autopoiéticos. Luhmann faz, portanto, uma adaptação da teoria biológica (Teoria Sistêmica) para o Direito. Visando corroborar tal teoria, ele afirma que para Durkheim a sociedade é um corpo social, isto é, formada por seres humanos, contudo, faz essa menção com o objetivo de retificá-la. Luhmann concebe que a sociedade tem seu pilar não no homem, mas sim nos sistemas. Dessa forma, ela deixa de ser vista como um conjunto de pessoas e instituições, sendo concebida como um conjunto de subsistemas, no qual o homem participa como uma parcela do arranjo social, isto é, como um sistema psíquico.
Outra comparação é feita com relação a Hans Kelsen (no que tange à sua Teoria Pura do Direito), no que Niklas Luhmann introduz uma novidade: cada sistema é autopoiético (autoprodutivo), todavia, eles se comunicam cognitivamente. A lógica por ele abordada é a de que a Teoria dos Sistemas simplifica a vida social, na medida em que cada um deles apresenta um código binário específico (por exemplo, ao direito cabe oferecer resposta à pergunta: é lícito ou ilícito? à ecologia o questionamento seria: é sustentável ou não?). Assim, cada sistema reduz os problemas a uma indagação que poderá ser respondida com “sim” ou “não” – por isso a noção de código binário -, questionamento esse que se refere à natureza do sistema.
O caso em questão, tal qual prevê Luhmann, aborda exatamente o aspecto do código binário. Ao impetrar a ação contra o município, o requerente (Ministério Público) instiga o juiz a questionar-se: é lícito que o Estado seja obrigado a prover a inclusão de crianças em creches? Ou tal obrigação é ilícita? A autoridade jurídica em questão, por sua vez, avalia se o assunto supracitado é de sua competência, chegando a uma conclusão positiva, já que consta no artigo 208, inciso IV, da nossa Carta Magna que “o dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de educação infantil, em creche e pré-escola, às crianças até 5 (cinco) anos de idade; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº53, de 2006)”. Assim, o juiz seguiu os princípios básicos da Teoria Sistêmica respondendo à litigância de acordo com o código binário e as competências do Direito. Em outras palavras, a decisão judicial de determinar que a criança fosse matriculada em uma creche significa que é lícita a obrigatoriedade de inclusão de criança em estabelecimento de educação infantil por parte do Estado. Vale destacar também, que esse modelo binário de decisão ratifica a noção de que os sistemas promovem a simplificação da sociedade, reduzindo a sua complexidade – assunto que será tratado a seguir.
Para corroborar a sua teoria, o sociólogo discorre ainda sobre duas categorias: complexidade e contingência. O termo complexidade faz referência à divisão social do trabalho, isto é, complexidade é a presença de diversas possibilidades ou funções em um mesmo campo. Dentro do Direito, por exemplo, á diversas possibilidades (áreas) para o trabalho jurídico. Já a expressão contingência se refere às restrições, às incertezas, aos imprevistos que podem adentrar um sistema. Elas são respaldadas pelo acaso, não podendo ser previstas. Ressalta, contudo, que mesmo que um sistema seja alimentado de incertezas, ele produzirá certezas – respostas dadas de acordo com sua competência. Ora, uma ação só é impetrada caso haja dúvida em seu resultado, como ocorreu com a peça abordada neste trabalho. A incerteza a cerca da garantia constitucional do acesso obrigatório de crianças a estabelecimentos de educação infantil, por sua vez, teve fim com a decisão judicial que, como dito outrora, assegurou esse direito público subjetivo às crianças.
Cabe destacar também a noção de que cada sistema apresenta um processo formal que lhe permite estabelecer restrições. Em outras palavras, o Direito, a Economia, a Psicologia, etc. são dotados de estruturas que lhes permitem fazer uma seleção daquilo que pode ou não adentrar o sistema, isto é, daquilo que é da competência do sistema ou não, restringindo-o caso isso se faça necessário. Novamente é evidenciada a relação existente entre a teoria de Luhmann e o caso concreto, ressaltando que, em hipótese alguma, ela se tornou antiquada. Para que a segurança fosse impetrada, o Ministério Público em Criciúma precisou seguir uma série de critérios formais, tais como averiguar a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade do Ministério Público para ajuizar a ação e se o Mandado de Segurança era ação cabível para a resolução do direito supostamente violado, o que, por fim, comprovou que o sistema do Direito tem competência para solucioná-la.
4. Beck e a Teoria do Risco
Ulrich Beck é um sociólogo alemão nascido em 1944 que leciona na Universidade de Munique e na London School of Economics. Esse autor deixou grande contribuição à sociologia – mas também ao Direito – no que tange à sua Teoria do Risco. Nesse sentido, pode-se estabelecer um novo e importante papel para as instituições jurídicas: o da produção de certezas em uma sociedade invadida pelo risco, considerando como pré-existente o risco do erro humano na produção da decisão, agregado ao risco do erro técnico de especialistas absorvidos pelos próprios procedimentos adotados judicialmente.
A prerrogativa inicial de Beck é a de que a certeza só será certeza se for tomada em conjunto com o risco. Cabe destacar aqui, que a concepção de “risco” para este sociólogo reside em não ter meios de enfrentar a racionalidade moderna. Em outras palavras, riscos são os efeitos que não podem ser enfrentados, nem previstos, uma espécie de erros de cálculo da racionalidade moderna. Ora, se é impossível prevê-los, é fácil conceber que eles permeiam a sociedade em todas as suas entranhas, culminando na definição de que somos uma “Sociedade do Risco”. Nesse sentido, como não sabemos como lidar com eles, concebemos que eles são, em certo grau, certezas eminentes. Isto é, há o entendimento de que os riscos são permanentes.
Essa teoria é corroborada com o auxílio de duas categorias analíticas: (1) possibilidade de autodestruição criativa da era industrial e (2) desincorporação e reincorporação das formas sociais industriais por outra modernidade. A primeira implica em afirmar que as certezas da era industrial precisam ser destruídas, tendo em vista que elas eram “certezas ingênuas” – concebiam o resultado como certo, ou seja, usando-se determinado método o resultado seria óbvio. Contudo, esse enfrentamento e conseguinte destruição devem ocorrer concomitantes à criação de novas certezas, as quais admitem a existência de falhas, erros e riscos. São certezas flexíveis, caracterizando o chamado incremento do risco. A segunda categoria faz menção à modernidade reflexiva, a qual obriga a atuar olhando para todos os lados, mesmo tendo certeza do que está na frente. Assim, a sociedade de risco representa uma fase do desenvolvimento da sociedade moderna em que os riscos sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições para o controle e a proteção da sociedade industrial.
Cabe aqui, fazer um parêntesis para correlacionar Luhmann e Beck, almejando esclarecer a diferença existente entre eles. Niklas Luhmann acredita que tudo está dentro do sistema, no entanto, Beck alega que essa é uma utopia. Como dito anteriormente, os riscos, por serem uma questão epistemológica, falhas da racionalidade moderna, tendem a escapar das instituições. Essa diferenciação serve como base para contrariar a alegação do município de que o acórdão do TJ-SC violou o princípio da separação, interdependência e harmonia entre os Poderes, uma vez que o administrador está adstrito ao cumprimento da lei, não podendo o Poder Judiciário intervir, impondo-lhe gastos que não estão incluídos no planejamento orçamentário. Ora, tal argumento demonstra claramente que o município não considerou a tendência dos riscos de escapar das instituições. É fato que a interferência do judiciário no planejamento de programas e projetos não é da alçada do Direito, pelo menos não inicialmente. Contudo, na medida em que se constatou que a disposição legal acerca de um programa que deveria ser estabelecido pelo Estado (vide artigo 208, inciso IV, da Constituição Federal) não fora cumprida, denotou-se que o risco escapara das instituições políticas e adentrara na esfera jurídica. Assim, coube ao judiciário intervir, assegurando que a norma constitucional fosse cumprida.
Ulrich Beck defende ainda a tese de que há dois estágios da sociedade do risco. No primeiro deles, os problemas são tratados como fruto de falhas. O risco, aqui, encontra-se protegido. Quando ele aparece é tido como infortúnio, falha humana. Nesse contexto, prevalecia a crença de que a comunidade deveria desenvolver tecnologias capazes de conter o risco. Assim, os problemas eram tratados como acidentes, frutos do baixo grau de desenvolvimento social. Já no segundo estágio, o problema é tido como certo. Desenvolvem-se estratégias para prevê-los, ou lidar com eles, mesmo que isso nem sempre seja possível. Há o monitoramento e os riscos agora são equivalentes a problemas públicos. Um exemplo bastante claro e satisfatório para retratar esses estágios é o do semáforo de trânsito. O abrir do sinal (sinal verde que significa que os condutores podem atravessá-lo) na sociedade 1 resultaria em motoristas passando indistintamente, sem preocupações. Já na sociedade 2, eles atravessariam com cautela, avaliando se há algum condutor cometendo infrações que possam colocá-lo em perigo, ou seja, pressupondo que pode haver algum problema – incremento do risco.
Essa concepção também pode ser naturalmente vista no âmbito jurídico. A atuação do Direito na produção de certezas numa sociedade de riscos, como já mencionado, traz como pré-existente o risco do erro humano da produção da decisão, associado ao risco do erro técnico de especialistas absorvidos pelos próprios procedimentos adotados judicialmente. Dessa forma, estabeleceu-se no Direito a possibilidade de recurso, isto é, um caso julgado em primeira instância poderá ser novamente apreciado por uma instância superior, pressupondo-se a ocorrência de um erro na decisão. O incremento do risco decisório pôde ser explicitado no caso em questão já que na origem se refere a um mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público catarinense, o qual, tendo sido julgado precedente, culminou na recorrência do município ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Aí, outra vez, a decisão de que o dever de promover o acesso de crianças a estabelecimentos de educação infantil restou confirmada, ratificando que esta era sim uma obrigação do município. Insatisfeito e pressupondo ainda que a decisão judicial não fora acertada, o município recorreu, fazendo com que o caso chegasse à última instância: O Supremo Tribunal Federal, onde tivera a repercussão geral reconhecida pelo relator ministro Luiz Fux. Evidente é, portanto, a alegação de que os riscos são certezas eminentes. Como expressão do seu reconhecimento como tal, o Judiciário foi estruturado em uma ordem hierárquica de instâncias em três graus, implicando que um mesmo caso pode ser julgado e passar por três degraus do Poder Judiciário até que esbarre em uma decisão final, à qual não cabe mais recurso.
5. Habermas – Direito entre faticidade e validade
Filósofo e sociólogo alemão, Jürgen Habermas, nascido em 1929, é responsável por introduzir uma nova visão a respeito das relações entre a linguagem e a sociedade, a qual culminou em sua Teoria da Ação Comunicativa. Outra de suas grandes contribuições, que aqui receberá mais destaque, concerne na perspectiva de que o Direito evolui em virtude da permanente tensão entre faticidade e validade.
Inicialmente, para compreender a ótica habermasiana, é necessário conceituar as categorias faticidade e validade. A primeira delas faz referência ao fato social definido por Durkheim, isto é, é coercitiva e externa ao indivíduo. Assim, pode abranger tanto a norma social quanto a norma positivada. No geral, Habermas usa a terminologia “faticidade” para fazer menção ao direito positivado. Já a segunda diz respeito aos valores incutidos na sociedade analisada. Quando o referido autor diz que há uma tensão permanente entre faticidade e validade, ele dialoga com Hans Kelsen. Kelsen defende que a norma é fruto de fatos e, no momento em que é positivada, acaba a tensão entre eles, tendo em vista que a norma jamais se encontrará com aquele fato novamente – Direito não retroage. Contudo, Jürgen Habermas acredita que, mesmo que o direito positivado jamais interaja com os fatos que lhe deram origem, ele sempre irá dialogar com outros fatos, culminando na renovabilidade da própria tensão. De acordo com essa concepção, os valores da sociedade sempre se modificam, provocando novas tensões e/ou intensificando aquelas já existentes. É justamente em função dessa mudança de valores (validade) que o Direito evolui. É válido ressaltar aqui, que os valores em questão são aqueles presentes na cabeça do intérprete da norma.
Portanto, é no contexto da alteração dos valores vigentes que o Direito sofre alterações e evolui. Nesse sentido, a concepção de que todos os indivíduos são iguais perante a lei, sendo dotados de direitos e deveres, só surgiu porque a sociedade teve suas representações modificadas. A alteração da validade, por sua vez, constitui-se em um fato marcante para a promulgação de leis nesse sentido. No Brasil escravocrata, por exemplo, a noção de igualdade pouco tinha destaque, contudo, diante da democracia essa passou a ser uma das questões de mais enfoque. Isso justifica, portanto, o motivo de a ação (base da presente produção) ter sido impetrada. A igualdade de direitos, regida pelo Estado, guiou os mais pobres à busca de educação tal qual aquela que os cidadãos mais ricos podem bancar. Nesse sentido, diante da não verificação de tal direito, o Ministério Público teve que intervir, almejando prover iguais condições aos cidadãos, ressaltando o papel do Direito de promotor da integração social nas sociedades modernas. De suma importância é destacar nesse contexto a abordagem de Habermas da noção de historicidade – introduzida e tematizada por Karl Marx – para demonstrar que as classes possuem suas especificidades, cabendo ao Direito respeitá-las (tal qual com o caso, ressaltando a especificidade da classe menos favorecida, a qual recebe o impulso Estatal e jurídico com a promoção da integração social).
Cabe destacar também que dentro desse ordenamento jurídico – que deve se mostrar coerente e coeso em si quando vislumbrado pelo juiz -, a autoridade jurídica deve partir dos seus fundamentos para julgar o caso na busca da única resposta correta admitida a partir dos discursos de aplicação. Tais discursos, por sua vez, devem ser dotados de um enfoque pragmático e não simplesmente lógico-semânticos. Nesse sentido, compete ao juiz projetar-se nas pretensões controversas das partes litigantes, almejando obter uma decisão juridicamente válida. É exatamente sob essa ótica que Habermas concebe a função do Direito. Para Jürgen Habermas, as pessoas procuram o Direito almejando obter a pacificação social e assim, promover a integração social.
O filósofo e sociólogo alemão discorre ainda a respeito da sua Teoria da Ação Comunicativa. Para entendê-la, entretanto, é preciso compreender a categoria “mundo da vida”, ponto de diferenciação entre ele e Luhmann. Essa terminologia é usada para designar temas que não foram tematizados ainda ou que, se o foram, já são tidos como uma espécie de verdades universais. Niklas Luhmann concebe que a racionalidade moderna teria, através da sistematização, extinguido o “mundo da vida” – tido, nesse contexto, como sinônimo de atraso. Habermas, por sua vez, alega que essa categoria não está extinta, sendo acionada apenas para a comunicação. É, portanto, algo permanente, estando, inclusive, presente nos sistemas.
Dessa forma, o “mundo da vida” não é extinto, sendo sempre um pano de fundo e um horizonte para os sistemas. Tal categoria não é racional e, quando resolvemos questioná-la, ocorre uma pausa na comunicação, introduzindo-a nos sistemas. Sob essa ótica, concebe-se que a racionalidade é alimentada pelos processos de irracionalidade, isto é, coisas que não temos a necessidade de questionar (“Bom dia” é um exemplo desta terminologia, já que é acionada com única finalidade de manter a comunicação e quando um indivíduo a utiliza o receptor da mensagem não irá questionar o por que daquilo). Nesse sentido, o sistema não é só uma máquina, mas também comunicação.
A linguagem, pressuposto comunicativo básico, por sua vez, fora construída coletivamente, abrindo múltiplas possibilidades a serem exploradas pelo indivíduo. Assim, a razão comunicativa não é mais adstrita ao ator individual ou a um macrossujeito ao nível do Estado e de toda a sociedade. Por apresentar um conteúdo normativo – o consenso -, a linguagem assemelha-se ao Direito, tendo em vista a atribuição de idênticos significados aos termos, com vocábulos vinculados às pretensões de validade que ultrapassem o contexto, além da pressuposição de responsabilidade e sinceridade. O mesmo ocorre no âmbito jurídico. Esse sistema é dotado de uma linguagem própria (código), havendo a pressuposição de que aquilo que os falantes dizem é verdadeiro, sendo exatamente esse o guia para a promoção da integração social. A lei é, portanto, legítima para o sistema do Direito.
Habermas, assim como Beck, também aborda o risco como parte do sistema, sendo a ação comunicativa, de posse dos seus próprios recursos, a responsável pelo controle do risco de dissenso construído em seu interior mediante o incremento do risco, ou seja, tornando o discurso permanente. Sob esse enfoque do Direito, o concebemos como um mecanismo que, sem excluir o fim irrestrito de comunicação, retira as tarefas de integração social de atores já sobrecarregados por seus esforços no sentido de alcançarem o entendimento, então as duas faces do Direito tornam-se compreensíveis: a face em que se mostra a sua positividade e a face em que se revela a sua pretensão à aceitabilidade social. Nesse âmbito, o Direito seria responsável pela principal carga de integração social nas sociedades modernas, surgindo sob a pressão secular dos imperativos funcionais de reprodução social. Não obstante, a integração sistêmica alcançada através do dinheiro e do poder pela economia e pelo aparato estatal, há de ser conjugada com o processo socialmente integrador de autodeterminação física.
Ora, sob essa ótica, notamos a semelhança entre Habermas e o caso da menina C.S.L. se mostra evidente quando se tem em mente as duas faces do Direito. A face em que se mostra a sua positividade está intimamente relacionada com a necessidade de o juiz justificar sua decisão pautado no aparato legal, isto é, não basta o convencimento próprio do juiz, ela precisa fundamentar-se no Direito já positivado (como a exemplo do sustentáculo encontrado no artigo 208, inciso IV da Constituição Federal). Não obstante, a face em que se revela a sua pretensão à aceitabilidade social é evidente quanto ao próprio propósito do Direito: a busca pela pacificação social, bem como pela integração social. Como supracitado, o autor em questão concebe a semelhança entre a linguagem e o Direito, a qual culmina na própria aceitabilidade da decisão. Ambos são constituídos por um código previamente aceito, dentre o qual as pessoas escolherão as possibilidades (para a comunicação a escolha será das palavras; para o Direito a escolha será a das leis, na busca daquela que abrange o caso concreto); além de haver a pressuposição da veracidade daquilo que é exposto associado às pretensões resultantes de um consenso.
Outra relação pode ser feita com o caso em se tratando do fato que Habermas, tal qual Beck, também admite a importância das instâncias decisórias, pois farão o operador do Direito ter mais cuidado com a sua interpretação. Nesse sentido, a possibilidade de recurso da decisão faz com que os juízes procurem fundamentos mais claros dos motivos que culminaram no seu convencimento. Contudo, tal qual no caso em questão, há a possibilidade da dúvida quanto à decisão, a qual culminou na recorrência ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina e, posteriormente, ao Supremo Tribunal Federal. Mesmo não havendo claramente a ideia de sistema em Habermas, o ordenamento atuante nos juristas fez com que o dano de uma correção injusta pudesse ser reparado a partir da correção dos juízos normativos.
6. Conclusão
Diante do exposto, pode-se concluir que, de fato, as teorias sociológicas de Luhmann, Beck e Habermas não se tornaram obsoletas, em que pese o fato de terem sido produzidas décadas atrás. Nesse sentido, podemos perceber a evidente importância dessas teorias mediante a comparação destas ao caso concreto e hodierno da obrigatoriedade ou não do Estado de prover o acesso de crianças a estabelecimentos de educação infantil.
Informações Sobre o Autor
Viviane Coutinho Leal
Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Piauí