O caso Hosanna-Tabor na Suprema Corte norte-americana

Resumo: Será analisado o famoso caso “Hosanna-Tabor” da Suprema Corte norte-americana, no qual foi abordado o direito de liberdade religiosa e a cláusula do estabelecimento, a “exceção ministerial” e os limites da intervenção do Estado em assuntos internos da Igreja.

1. Introdução:

"Hosanna-Tabor", ou " Hosanna-Tabor Evangelical Lutheran Church and School v. Equal Employment Opportunity Comission et al" nº. 10-553 (Igreja Evangélica Luterana e  Escola Hosanna-Tabor v. Comissão para Igualdade de Oportunidades de Emprego-CIOE) é um famoso caso decidido em janeiro de 2012 pela Suprema Corte dos Estados Unidos, de grande importância seja nos Estados Unidos, seja nos outros países; inclusive existem opiniões de que este é o caso mais importante sobre liberdade religiosa a chegar à Suprema Corte nos últimos 20 anos.

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Uma professora de uma escola religiosa, que proferia aulas de matérias comuns, bem como religiosas, foi acometida por uma doença durante o seu contrato de trabalho e, depois de uma sucessão de eventos, foi demitida de seu cargo: assim sendo, recorreu ao Poder Judiciário até que o caso chegou à Suprema Corte. Não se trata de uma simples disputa entre uma igreja e um empregado, mas sim de um caso em que a Suprema Corte estabeleceu um marco no entendimento de casos que envolvem relações laborais e religiosas, especialmente sobre o alcance da expressão "exceção ministerial",  bem como da “cláusula do estabelecimento e livre exercício", trazida pela primeira emenda à Constituição norte-americana.

A exceção ministerial pode ser definida como :

"Sob a ‘exceção ministerial’, as organizações religiosas estão isentas de demandas estaduais e federais por discriminação no emprego, apresentadas pelos funcionários ministeriais. Esta isenção garante o direito das instituições religiosas de selecionar seu clero livres da interferência do governo.”[1],[2]

A cláusula do estabelecimento e livre exercício foi instituída pela primeira emenda à Constituição dos Estados Unidos, e traz os seguintes termos: "O Congresso não fará nenhuma lei relacionada ao estabelecimento de religião, ou proibindo o seu livre exercício."
A Suprema Corte faz, no caso, um raciocínio entre a interpretação da norma constitucional e a Lei dos direitos dos americanos deficientes (“Americans With Disabilities Act – ADA”, de 1990), que protege as pessoas com deficiência na contratação e contra a demissão sem justa causa. As questões levantadas são as seguintes: Pode uma pessoa com deficiência ser demitida de seu trabalho, mesmo que se trate de uma organização religiosa? Qual é o limite e o alcance da "exceção ministerial" e da "cláusula do livre exercício", especialmente quando há um conflito com outros valores? As questões centrais do caso foram devidamente delimitadas pelo mestre espanhol Rafael Navarro Walls:

"Mais especificamente, o que foi discutido foi se a igreja Hosanna-Tabor, de Redford (Michigan) -um braço da Igreja Luterana Americana- está sujeita às leis contra a discriminação no emprego em relação aos professores da sua escola anexa, embora também sejam ministros do culto. A igreja alegou que deveria ser aplicada a "exceção ministerial", que reconhece plena autonomia às instituições religiosas para selecionar seus ministros. Essa exceção é reconhecida na jurisprudência norte-americana como decorrente da Primeira Emenda à Constituição (liberdade de religião, expressão e associação). A Suprema Corte manteve, por unanimidade, o direito conferido à Igreja de demitir a professora."[3]

Segundo a doutrina norte-americana, "Durante mais de vinte anos após a decisão do Tribunal em ‘Divisão de Emprego v. Smith’, conhecido como o ‘caso peiote’, os tribunais inferiores e observadores acadêmicos têm se perguntado como lidar com a questão da contratação pelo clero."[4]

Assim, o julgamento veio esclarecer uma incerteza no direito norte-americano sobre a aplicação dos princípios constitucionais e infraconstitucionais conflitantes no caso. Em apertada síntese, a Suprema Corte americana decidiu, por unanimidade, que as leis federais contra a discriminação no trabalho não se aplicam à contratação de líderes religiosos por organizações religiosas.

2. Análise da sentença

Cheryl Perich foi contratada como professora secular, em 1999, pela escola e igreja estadunidense  Hosanna-Tabor, na cidade de Redford (Michigan), membro da congregação da Igreja Luterana (sínodo de Missouri).

Para compreender o caso, é necessário ter em conta que o Sínodo distingue os professores entre "called" e "layed" (que podem ser traduzidos como “chamados” e "seculares”, respectivamente). Os professores “chamados” (ou ainda ”encarregados”, tradução aproximada do termo “comissioned”) são aqueles que a congregação entende que  receberam a vocação de Deus, e devem adequar-se a certos requisitos. Uma das formas é  concluir um programa de estudos em uma escola ou faculdade luteranas, no qual o candidato é submetido a oito cursos de estudos teológicos, para então obter a aprovação do sínodo local, bem como passar por um exame oral realizado por uma comissão de professores. Depois de todo esse procedimento, o professor pode ser considerado como “chamado”, e receberá o título de "Ministro Encarregado de Religião"; na escola Hosanna-Tabor, um professor “chamado” tem um contrato de duração indeterminada, só pode ser demitido por justa causa e por maioria de votos da congregação.

Como bem explicado por Douglas Laycock,

"O ministro encarregado é uma figura que os luteranos aproveitaram de uma passagem no Livro dos Atos, onde os apóstolos nomearam assistentes para ajudá-los. O ministro encarregado é claramente distinguível dos leigos por um lado e, por outro, dos pastores ordenados. O ministro encarregado é entendido como aquele que realiza parte das responsabilidades do pastor ordenado. O pastor tem a responsabilidade de ensinar a fé a todos os fiéis, incluindo crianças, e pode delegar algumas das suas responsabilidades aos ministros encarregados. No entendimento luterano '(um) professor cristão, por exemplo, não é apenas um cristão que ensina, mas um servo de Cristo e da Igreja que, no chamado da igreja, está ajudando o pastor a cumprir com seu mandamento de ensinar o Evangelho’."[5]

Por outro lado, o professor laico é o que não recebeu treinamento formal pelo Sínodo, tampouco se exige que seja luterano. Na escola Hosanna-Tabor é contratado após a aprovação do conselho escolar (sem necessidade do voto da congregação) por 1 ano, renovável. A contratação de professores laicos tem caráter suplementar, ou seja, somente são contratados esses professores quando não há professores “chamados” disponíveis, apesar de exercerem basicamente as mesmas funções.

A professora Cheryl Perich, como dito anteriormente, foi contratada em 1999 por Hosanna-Tabor, e naquele mesmo ano completou a sua formação em estudos religiosos, por isso fui convidada pela escola para ocupar o cargo de professora “chamada”. Em seguida, Perich recebeu o diploma de vocação e aceitou o “chamado”, tornando-se professora “chamada”.

Consta da sentença que Perich lecionou no jardim de infância durante os 4 primeiros anos na escola até 2003 e, depois, na quarta série. Além de matemática, estudos sociais, ciências, educação esportiva, arte e música, Perich também ministrava aulas de religião quatro dias por semana, bem como conduzia suas aulas com orações e exercícios devocionais por cerca de 45 minutos. Em sistema de rotação com seis outros professores da escola, planejava e dirigia os serviços da capela algumas vezes por ano. Nessas ocasiões, ela lecionava pequenas passagens da Bíblia, o que para os leigos foi tratado como sermões curtos, mas os luteranos fazem uma distinção entre estes pequenos ensinamentos e a pregação dos cultos, sendo esta última função reservada a um pastor.

A professor ficou doente em 2004, sendo diagnosticada com narcolepsia, que se configurava como repentinas e profundas crises de sono das quais não conseguia ser despertada. Devido a esta doença, Perich obteve uma licença para deficientes no ano letivo de 2004/2005. Em janeiro de 2005, a professora –licenciada- notificou a escola que seria possível ministrar aulas para o próximo mês e recebeu resposta, do diretor da escola, de que já havia sido contratado um professor substituto para o resto do ano acadêmico.

Ainda em janeiro, a congregação da escola se reuniu e por entender que a professora seria incapaz de retornar às suas funções naquele ano ou no próximo, decidiu reduzi-la de “chamada” a laica, e em troca ela seria parcialmente indenizada em relação ao pagamentos com seguro de saúde. Perish rejeitou a oferta e afirmou, apresentando documento médico, que estaria apta para trabalhar no início de fevereiro. Em seguida, a diretoria da escola informou que não seria possível que ela retomasse seu posto. Além disso, em fevereiro, assim que obteve a alta médica, Perish apresentou-se para trabalhar e solicitou, por escrito, um documento que comprovasse a sua presença. Mais tarde, a professora foi informada de que a escola estava planejando demiti-la, quando então Perish ameaçou processar a escola por discriminação sob a "Lei dos direitos dos americanos deficientes". Em abril, a congregação da escola e igreja decidiu retirar-lhe o caráter de professora “chamada”, por comportamento irracional, e por ameaçar a escola com processo judicial, de tal sorte que lhe foi comunicada a rescisão  do contrato.

Depois disso, Perish apresentou uma denúncia à Comissão de Igualdade de Oportunidades de Emprego (CIOE), que tem legitimidade para demandar em nome de funcionários que acreditem serem vítimas de discriminação. Assim, a CIOE ingressou com demanda judicial  na justiça federal e Perish interveio como co-demandante, solicitando a reintegração ao seu cargo, salários atrasados, danos compensatórios e punitivos. O juízo competente julgou improcedentes os pedidos sob a alegação de que a demissão estaria coberta pela "exceção ministerial". Os requerentes interpuseram recurso para o Tribunal de Apelações do Sexto Circuito, que reverteu o julgado, por entender que as funções da professora “chamada” tinham as mesmas características de uma professora laica, de modo que a exceção ministerial não se aplicava.

O Fundo Becket para a Liberdade Religiosa, interessado na defesa de Hosanna-Tabor, apelou para a Suprema Corte norteamericana, que decidiu que:

"Hoje, a posição deste Tribunal é de que a exceção ‘ministerial’ aplica-se a Cheryl Perich (doravante recorrida), que é considerada pela Igreja Luterana-Sínodo de Missouri como ministra encarregada.( … )

A exceção ministerial aplica-se à recorrida porque, como observa o Tribunal, ela teve um papel importante em ‘espalhar a mensagem da Igreja e no cumprimento de sua missão’.( … )

Não importa se a recorrida também ensinou assuntos seculares. Enquanto a um professor puramente secular não seria aplicável a exceção ‘ministerial’, a proteção constitucional dos professores religiosos não é de forma alguma diminuída quando assumem funções seculares, além das religiosas.( … )

O que importa neste caso é que Hosanna-Tabor considera que a função religiosa que realizava a recorrente tornava imprescindível que ela observasse a doutrina da resolução interna de conflitos, e os tribunais civis não têm condição de intuir essa avaliação. Esta conclusão baseia-se não no estado de ordenação religiosa da recorrida ou no seu título formal, mas sim no seu estado funcional como tipo de funcionário que a Igreja deve ser livre para nomear ou destituir, a fim de exercer a liberdade religiosa garantida pela Primeira Emenda."

Assim, a Suprema Corte reverteu a decisão do Tribunal de Apelação, por unanimidade, a favor da Igreja Evangélica Luterana e Escola Hosanna-Tabor, por entender que, ainda que exercesse algumas funções seculares, preponderavam as funções religiosas, o que lhe enquadrou no tipo de empregado cuja contratação e demissão são protegidos pela exceção ministerial e, portanto, pela primeira emenda.

3. Análise doutrinária sobre os principais aspectos da sentença

A primeira emenda à Constituição norte-americana faz parte de um pacote de 10 emendas propostas em 1789, aprovadas pelo Congresso e que foram ratificadas pelos Estados (exige-se um mínimo de três quartos), de modo que foram formalmente incorporadas em 1791. Esse pacote de emendas é chamado de "Bill of Rights" por garantir a liberdade e a propriedade, e limitar a atuação do Estado e de seus poderes. A Suprema Corte decidiu que a primeira emenda se aplica a todo o governo federal, ainda que se refira somente ao  Congresso. Seu teor é o seguinte:

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“O Congresso não fará nenhuma lei que seja relacionada ao estabelecimento de uma religião, ou que proíba o seu livre exercício; ou cerceando a liberdade de expressão ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente, e de peticionar ao Governo para a reparação das queixas."

De acordo com a Constituição americana comentada pela Faculdade de Direito da Universidade de Cornell, a primeira emenda à Constituição dos EUA protege a liberdade de religião e a liberdade de expressão contra a interferência do Estado. Sobre a liberdade de religião nos explica que:

"Duas cláusulas da Primeira Emenda garantem a liberdade de religião. A cláusula do estabelecimento proíbe o governo de aprovar leis que estabeleçam uma religião oficial ou dêem preferência a uma religião em detrimento de outra. Impõe-se a ‘separação entre Igreja e Estado’.  Algumas atividades governamentais relacionadas à religião foram declaradas constitucionais pela Suprema Corte. Por exemplo, o fornecimento de transporte de ônibus para os estudantes de escola paroquial e a aplicação de ‘leis azuis’ não são proibidos. A cláusula de livre exercício proíbe o governo, na maioria dos casos, de interferir na prática da religião de uma pessoa."[6]

Os principais argumentos jurídicos do caso são muito bem delimitados por Scott Isaacson:

"A Sra. Perich acredita que as ações da escola violam a Lei dos Direitos dos Deficientes e que teria direito à reparação dos danos conforme previsto na referida lei, inclusive a reintegração ou indenização. O argumento é que a Igreja deve estar sujeita à lei, porque a lei não é uma lei que tem a finalidade de limitar os direitos religiosos. É uma lei de aplicação neutra e geral, e deve ser aplicada a qualquer empregador, incluindo organizações religiosas  e, neste caso, a igreja deveria seguí-la.

A escola acredita que, por ser uma organização religiosa, é livre para tomar decisões em relação aos seus professores, que em seu sistema são chamados de ‘ministros encarregados’, livre de interferência do governo. Além disso, a Igreja tem um sistema interno, com base em seus princípios religiosos, para resolver disputas como esta, e quando a Sra. Perich deixou a igreja, contratou um advogado e ameaçou com uma ação judicial, ela violou sua vocação como ministra. A Igreja não tem obrigação de contratar um professor que não está disposto a apoiar a Igreja, inclusive em seus processos internos.”[7]

Prossegue o doutrinador com uma interessante distinção de situações que seriam ou não abrangidas pela exceção ministerial, já que essa é uma área bastante nebulosa:

"É importante notar que a relação entre um ministro e sua igreja não está inteiramente fora do âmbito das leis trabalhistas em geral. Por exemplo, se uma igreja tem um contrato ou acordo para pagar ao ministro determinada soma em dinheiro, e a igreja não paga, o ministro pode recorrer à lei e aos tribunais para fazer uma reclamação trabalhista, e isso não tem nada a ver com a exceção ministerial. Porque a questão não tem nada a ver com qualquer questão religiosa, é apenas uma reclamação laboral e contratual. Ao contrário, por exemplo, uma decisão de uma igreja de que um ministro não é suficiente ‘espiritual’ ou que não segue as regras de conduta da igreja, são decisões que não podem ser examinadas sem que se revisem e determinem questões que são sumamente religiosas em sua natureza, e que os tribunais são incapazes de resolver. Este tipo de questão não tem a ver com as leis civis, que é o âmbito normal dos tribunais, onde os tribunais são os especialistas, mas com as crenças e as regras internas de uma igreja, e seria utópico um tribunal resolver essa questão sem adentrar perguntas que dependem da interpretação de doutrinas, escrituras ou normas próprias da religião, que os tribunais não têm habilidade ou experiência."[8]

Em outras palavras, sob o mesmo contrato de trabalho há situações, como a falta de pagamento, que podem ser analisadas ​​pelo Poder Judiciário; já uma decisão de que ministro religioso não tem preparo espiritual suficiente para o seu papel é algo que pertence ao mérito religioso, mérito esse que o Poder Judiciário não deve adentrar.

Em seu artigo sobre os limites da intervenção do governo em organizações religiosas sob a cláusula do estabelecimento, Carl Esbeck nos ensina :

"É importante ressaltar que a participação governamental deveria ser proibida quando há um risco mensurável de que a adoração, a educação religiosa e a disseminação das crenças da associação religiosa, ou a disciplina moral de seus membros, possa ser inibida. Essa proteção abarcaria o bem-estar social e educacional dos ministérios de uma determinada religião, na medida em que o ministério está comprometido com as funções essencialmente religiosas da fé. A ação governamental também deve ser proibida quando há um risco significativo de que o controle sobre a política organizacional, a alocação própria dos  recursos financeiros da organização, ou a administração e disciplina do pessoal selecionado com base em critérios religiosos ficariam comprometidos."[9]

Na opinião de Douglas Laycock, a decisão de que as atribuições da Sra. Perich eram sobretudo religiosas e, portanto, de que a demissão é um assunto interno da organização religiosa, foi acertada:

"Creio que o caso Perich claramente deve estar dentro da exceção ministerial, mesmo que a sua função não é a primeira coisa que vem à mente quando se fala de ministros religiosos. Ela não era o pastor de uma congregação, ou assistente de pastor. Ela não se dedicava integralmente, nem mesmo na maioria do tempo, à parte explicitamente religiosa de seu trabalho. Entretanto, o trabalho religioso que ela fez foi importante: ela ensinou a fé, liderou o culto, e representou a igreja aos seus alunos.”[10]

Por outro lado, alguns criticam o julgamento da Suprema Corte, no sentido de que a definição ampla dada às atividades ministeriais concedeu enorme liberdade de ação às organizações religiosas sob a exceção ministerial e, assim, deixou-as fora da aplicação das leis comuns e da competência do Poder Judiciário :

"Sobre a exceção ministerial, argumentei que, da mesma forma que Alfred Smith teve que obedecer às leis neutras e de aplicação geral sobre drogas, também a Igreja e Escola Evangélica Luterana Hosanna-Tabor, e outros empregadores religiosos, devem obedecer às leis anti-discriminação."[11]

O caso de Smith se correlaciona com o caso Hosanna-Tabor, como foi alegado pela CIOE como precedente favorável, mas a Suprema Corte rejeitou sua aplicação. Naquele caso, Alfred Smith e Galen Black eram membros da Igreja Nativa Americana e conselheiros em uma clínica de reabilitação privada. Ao usar peiote em um ritual religioso, foram demitidos da clínica e pediram o auxílio-desemprego no Estado do Oregon, o que lhes foi negado, pois a lei penal em Oregon proíbe o consumo de peiote. O caso chegou à Suprema Corte, que decidiu (em 1990) que o uso do peiote não era conduta protegida pela cláusula do livre exercício, já que esta cláusula não pode ser invocada para isentar da aplicação de uma lei (neste caso, a lei penal do Oregon) geral e neutra, que a todos deve ser aplicada, seja em âmbito secular, seja eclesiástico.

Fazendo uma comparação com esse caso histórico, a autora anteriormente citada continua:

"Em outras palavras, muitos dos casos de exceção ministerial nem sequer envolvem um conflito religioso. Parece estranho que o ritual religioso de uma pessoa não goze da proteção da Primeira Emenda, enquanto na controvérsia não-religiosa entre os membros da Igreja isso ocorreria. Não obstante, num dos trechos mais surpreendentes da sentença, o Tribunal declarou: ‘O objectivo da exceção não é salvaguardar a decisão de uma igreja em demitir um ministro somente quando isso for feito por motivos religiosos. A exceção, ao contrário, garante que a autoridade para selecionar e controlar quem vai ministrar aos fiéis – uma questão estritamente eclesiástica' [ citações omitidas] – é somente da Igreja (grifo nosso).

Assim, o Tribunal não protegeu a liberdade religiosa ao recusar-se a tomar partido em uma disputa religiosa, como tinha feito em casos correlatos, no passado. Em vez disso, entendeu que os empregadores de organizações religiosas gozam de proteção absoluta da Primeira Emenda para demitir seus ‘ministros’, mesmo quando não há questão religiosa envolvida. Ou, em outras palavras, a liberdade religiosa triunfa sobre leis anti-discriminação, mesmo quando não há conflito religioso em jogo." [12]

Outros também criticam e ironizam a ampla proteção (que pode até ser confundida com impunidade) que foi concedida às organizações religiosas, que muitas vezes têm diversas funções econômicas e seculares importantes:

"Esta questão torna-se importante porque muitas entidades religiosas são muito mais do que humildes capelas onde um padre solitário reza a missa frente a poucos fiéis. Elas possuem escolas, hospitais, lojas, centros de recreação, locais de entretenimento – quase qualquer tipo de estabelecimento comercial tem a sua versão análoga em algum lugar no vasto mundo da religião americana. (Uma vez eu conheci um pastor que tinha um café dentro do santuário de sua mega-igreja, de modo que o fiel ansioso por um expresso não precisava interromper suas devoções. Eu não tenho nenhuma dúvida de que aqueles baristas estão fazendo a Obra do Senhor)."[13]

4. Conclusão

Hosanna-Tabor foi um dos casos mais importantes a chegar à Suprema Corte estadunidense, nos últimos anos, relacionado ao tema da liberdade de religião, da separação e dos limites entre o Estado e a Igreja. Pela primeira vez, a Suprema Corte reconheceu formalmente a "exceção ministerial", que já havia sido tratada em diferentes tribunais federais de apelação. Foi estabelecido na sentença que não só o Estado não pode intervir positivamente, dirigindo ou avançando sobre uma forma de religião; ele deve respeitar as decisões eclesiásticas internas quando relacionadas às suas atividades essenciais.

O caso demandou análise aprofundada das funções da professora da escola luterana, já que exercia funções mistas, que permearam o mundo secular e eclesiástico, de modo que o enquadramento das suas funções foi um fator fundamental ao decidir se sua demissão estaria ou não coberta pela referida exceção. Foi uma decisão difícil, com debates acalorados, já que o tribunal tinha dois caminhos: reforçar as leis anti-discriminação, que se sobreporiam aos assuntos religiosos internos (como, por exemplo, foi feito no caso Smith, mutatis mutandis), ou privilegiar a primeira emenda e o entendimento doutrinário e jurisprudencial de não-intervenção nos assuntos eminentemente internos das organizações eclesiásticas.

Talvez um caso semelhante tivesse outro fim, por exemplo, se o(a) professor(a) não tivesse sido nomeado(a) "chamado(a)" ou invocado benefícios fiscais religiosos (consta da sentença que Perish teria pedido um redução fiscal concedida somente a ministros religiosos), ou praticado com a mesma frequência atividades religiosas, muitas vezes realizadas dentro e fora da classe com os alunos. Em princípio, a decisão estabelece princípios que nortearão a liberdade contratual ou demissão dos ministros religiosos, mas em sentido amplo reforça a liberdade das organizações religiosas.

A crítica a essa liberdade proporcionada pelo julgamento é que ele pode ser uma desculpa para atos aparentemente "interna corporis", acobertados, portanto, pelo manto da exceção ministerial mas que, na realidade, afastam a possibilidade de recorrer ao Judiciário por parte dos funcionários de igrejas, escolas, universidades, hospitais e outras organizações com finalidade religiosa, contra toda sorte de violação às leis trabalhistas, anti-discriminatórias, e outras protetoras de forma geral, levantando questões práticas importantíssimas (por exemplo, se um professor "chamado" é demitido em retaliação por denunciar um abuso infantil , deve o Poder Judiciário dizer que se encontra diante de uma exceção ministerial?).

Nas palavras de Garrett Eps, "A exceção ministerial muito reduzida levaria o governo ao santuário. Já uma exceção muito ampla permitirá que as organizações religiosas operem fora da lei"[14]; assim, por ser um caso tão importante, nebuloso e controverso, pode-se dizer que os efeitos positivos ou negativos da doutrina que dele emana ainda estão por vir.

 

Notas:
 
[2] Tradução livre nesta e nas demais citações.

[3] NAVARRO VALLS, Rafael. “Relaciones laborales y libertad religiosa” em Diario del Derecho (2012).

[4] MCCONNEL, Michael. “Reflections on Hosanna-Tabor” em Harvard Journal of Law & Public Policy 35 (2012), pp. 821-837.

[5] LAYCOCK, Douglas. “Hosanna-Tabor and the Ministerial Exception”, em Harvard Journal of Law & Public Policy 35 (2012), pp. 839-862.

[6] Disponível em: http://www.law.cornell.edu/wex/first_amendment. Acesso em: 11/01/2013.

[7]  ISAACSON, Scott. Op. cit.

[8] ISAACSON, Scott. Op. cit.

[9] ESBECK, Carl. “Establishment Clause Limits on Governmental Interference with Religious Organizations”, em Washington & Lee Law Review v. 41 (1984), p. 419

[10] LAYCOCK, Douglas. Op. Cit, pp. 859/860.

[11] GRIFFIN, Leslie. “Reconsidering Free Exercise: Hosanna-Tabor v. EEOC”, em ACSBLOG – American Constitucion Society (2012), disponível em: http://www.acslaw.org/acsblog/reconsidering-free-exercise-hosanna-tabor-v-eeoc. Acesso em: 13/01/2013.

[12] GRIFFIN, Leslie, op. cit.

[13] EPPS, Garret. “The Individual Conscience and the Rights of Church Bodies” em The Altlantic (2011), disponível em: http://www.theatlantic.com/national/archive/2011/10/the-individual-conscience-and-the-rights-of-church-bodies/246254/. Acesso em: 15/01/2013

[14] EPPS, Garret, op. cit.


Informações Sobre o Autor

Marco Aurélio Mellucci e Figueiredo

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Procurador Federal. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo USP. Mestre em Direito Público pela Universidad Complutense de Madrid


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