Resumo: Este artigo tem por objetivo apresentar uma análise do Código de Trânsito Brasileiro, das “Leis Secas” e da discussão sobre a aplicação das medidas administrativas e sanções penais ao condutor de veículo automotor que recusa realizar os testes de alcoolemia. Desde a aprovação da Lei 11.705 em 2008 muito se discutiu a respeito da obrigatoriedade ou não dos testes de alcoolemia e, ainda, se a recusa poderia fundamentar a aplicação de alguma penalidade. Com o advento da Lei 12.760 em 2012 a discussão se renovou. É razoável obrigar um cidadão a realizar um teste cujo resultado será utilizado para incriminá-lo? É justo tipificar o crime de embriaguez ao volante apenas pela quantidade de álcool ingerida? Será que “forçar” a imposição de penalidades rigorosas é o suficiente para garantir a eficácia da Lei? Pode-se concluir que a Lei 11.705 de 2008 fracassou e a Lei 12.760 de 2012 poderá fracassar se não vier a ser melhor interpretada.
Palavras-chave: Código de Trânsito Brasileiro. Princípios Fundamentais. Sistema Punitivo. Lei Seca. Testes de alcoolemia.
Sumário: Introdução. 1. Brasil: Estado Democrático de Direito. 2. Síntese do Sistema Punitivo Brasileiro. 3. A vedação da autoincriminação. 4. O Código de Trânsito Brasileiro, as “Leis Secas” e a possibilidade de aplicação de medidas administrativas e sanções penais ao condutor que recusar realizar os testes de alcoolemia. Conclusão.
INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo explanar a análise da Lei 9.503 de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, com enfoque nas alterações efetuadas pelas Leis 11.705 de 2008 e 12.760 de 2012, conhecidas popularmente como “LEI SECA” e “NOVA LEI SECA”, respectivamente.
A pesquisa delimitar-se-á às alterações sofridas nos artigos 165, 277 e 306 do Código de Trânsito Brasileiro, pelas leis 11.706/2008 e 12.760/2012.
A Lei 11.705/2008 foi criada e aprovada com o intuito de inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor, impondo limites de tolerância alcoólica quase zero e sanções mais severas àquele que dirigir alcoolizado.
Contudo, tal lei foi, e tem sido, motivo de muita discussão jurídica, tendo em vista que foi estipulado limites específicos para que se pudesse aplicar medidas administrativas e/ou sanções penais ao condutor supostamente embriagado e tais limites só poderiam ser averiguados mediante a submissão aos testes de alcoolemia, mais precisamente o exame de sangue e o etilômetro, vulgarmente conhecido como “bafômetro”.
Ocorre que, a obrigatoriedade de submissão a tais testes ferem Princípios Constitucionais previstos e garantidos pela Carta Magna promulgada em 1988.
Por esse motivo, um tempo após a entrada em vigor da Lei 11.705/2008, os casos de embriaguez ao volante chegaram aos Tribunais, que firmaram entedimento no sentido da não obrigatoriedade dos testes de alcoolemia e a impossibilidade de tipificação do crime sem a presença de laudo que comprovasse o valor exato do teor alcóolico do condutor abordado.
A Lei 12.760/2012, regulada pela Resolução do Contran n. 432/2013, foi aprovada com a finalidade de pôr fim aos “furos” de sua antecessora e impor penalidades mais rigorosas ao condutor embriagado.
Com o advento da nova lei, pela interpretação literal e midiática (mal feita), se o condutor abordado se recusar a realizar os testes, a averiguação da alteração da capacidade psicomotora dar-se-á através de sinais que indiquem estar o condutor embriagado, podendo ser provado através de testemunhas, fotos, vídeos e outras provas.
Diante de toda a repercussão quanto às alterações no Código de Trânsito Brasileiro pelas “Leis Secas”, surgem algumas indagações e as já existentes se renovam, vejamos:
O condutor de veículo automotor que for abordado em uma blitz está obrigado a realizar os testes de alcoolemia previstos em lei?
A jurisprudência e a doutrina majoritária, até a entrada em vigor da nova lei, já haviam se firmado no sentido de que “o condutor de veículo automotor não está obrigado a realizar qualquer teste em que tenha que ceder seu corpo para produzir provas contra si”. Parte dos doutrinadores já se manifestaram no sentido de que tal posicionamento deve ser mantido após as alterações realizadas pela Lei 12.760/2012, já que seria totalmente desarrazoado exigir que qualquer indivíduo produza provas contra si, uma vez que vigora em nosso ordenamento jurídico o Princípio do nemo tenetur se detegere, ou seja, a vedação da autoincriminação.
Seria cabível a aplicação das medidas administrativas e/ou sanção penal ao condutor que se recusar realizar os testes?
Para responder a segunda indagação, segue-se o mesmo raciocínio da primeira.
Veja, apesar de previsão legal expressa no art. 277 do Código de Trânsito, que “autoriza” a aplicação de sanções ao condutor que recusar realizar os testes, principalmente a recusa ao teste do etilômetro ou “bafômetro”, filia-se ao posicionamento doutrinário (minoritário) de que não há de se falar em aplicação de qualquer penalidade, seja na esfera administrativa ou penal. Uma vez que a vedação da autoincriminação proibe também qualquer interpretação desfavorável ao indíviduo que negar produzir provas contra si.
A aplicação de penas mais severas, instituídas pela Lei 12.760/2012, é suficiente para garantir sua plena eficácia e de fato reduzir o número de acidentes de trânsito?
Constata-se, analisando minuciosamente as estatístcas de acidentes de trânsito, que o álcool é apenas um, de tantas outras, não menos importantes, causas de acidentes de trânsito no Brasil. De fato, o número de acidentes de trânsito diminuiu após a entrada em vigor da primeira “Lei Seca”, em 2008, contudo, vislumbra-se que o decréscimo não estava relacionado com a imposição de penalidades mais severas e sim com um significativo aumento na fiscalização, posto que após 1 ano, com fiscalizações menos intensas, é possível perceber um aumento no número de acidentes.
O que se pretende com o presente trabalho não é discutir os erros na legislação, nem tão pouco somente contestá-la, o que de fato pretende-se é questionar as falhas, de forma a contribuir modestamente, para o surgimento de interpretações que tornem as chamadas “Leis Secas” plenamente eficazes sem que haja a anulação de qualquer dos direito individuais garantidos constitucionalmente à todos os indíviduos.
Impor leis autoritárias e inculcar medo à população através de criminologia midiática, pode funcionar temporariamente, mas não resolverá o problema. É necessário educar e conscientizar a população, tornar as leis plenamente eficazes, manter uma fiscalização adequada e impor penalidades rígidas, porém razoáveis.
1. BRASIL: ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Para entender a essência do Estado Democrático de Direito, devemos analisar a base de seu surgimento, o Estado de Direito, nesse sentido José Joaquim Gomes Canotilho explica que:“O Estado de Direito começou por ser caracterizado, em termos muito abstratos, como ‘Estado da Razão’, ‘estado limitado em nome da autodeterminação da pessoa’. No final do século, estabilizaram-se os traços jurídicos essenciais deste Estado: o Estado de Direito é um Estado Liberal de Direito. Contra a idéia de um Estado de Polícia que tudo regula e que assume como tarefa própria a prossecução da ‘felicidade dos súditos’, o Estado de Direito é um Estado Liberal no seu verdadeiro sentido.”
Portanto, o Estado de Direito tem sua origem baseada nos ideais dos Estados liberais, mitigado com o advento dos ideais sociais, reproduzidos através das chamadas Constituições sociais a partir do inicio do século XX.
O Estado de Direito tem seu conceito determinado na relação entre o Estado e o individuo, nesse sentido Thiago Bottino entende que: “A concepção desenvolvida pelos teóricos da ilustração nos séculos XVII e XVIII, e inicialmente incorporada pelas doutrinas jusnaturalistas, estabeleceu que o Estado e o direito são criações artificiais dos indivíduos. É nesse contexto que se opera a transformação do Estado absoluto em Estado de direito: quando o individuo passa da condição de súdito à de cidadão, deixa de ser um sujeito de direitos “naturais” para tornar-se detentor de direitos “constitucionais”.”
Importante ressaltar que, no Estado de Direito prevalece a lei. O chamado “império da lei” se caracteriza através do direito positivado, todas as outras fontes de direito, como por exemplo, o direito natural, ficam excluídos a menos que o direito positivado lhes atribua eficácia.
O Estado Democrático de Direito reúne as características do Estado de Direito com as da Democracia, somado a algumas particularidades.
Nas palavras de Canotilho: “O Estado Democrático é ‘mais’ do que Estado de Direito. O elemento democrático não foi apenas introduzido para ‘travar’ o poder (to check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder (to legitimize State power). Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos metafísicos, temos de distinguir claramente duas coisas: (1) uma é a legitimação do direito, dos direitos fundamentais e do processo de legitimação do sistema jurídico; (2) outra é a da legitimação de uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político. O Estado ‘impolítico’ do Estado de Direito não dá resposta a este último problema: donde vem o poder. Só o princípio da soberania popular segundo o qual ‘todo poder vem do povo’ assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos juridicamente regulados serve de ‘charneira’ entre o ‘Estado de Direito’ e o ‘Estado Democrático’ possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de Direito Democrático.”
Neste contexto, cabe ressaltar que, o Estado Democrático de Direito não é apenas um Estado instituído por lei, mas também um modelo de organização política e jurídica que tem como características principais o respeito à legalidade e o compromisso com a efetivação dos direitos fundamentais, devendo o exercício do governo ser realizado em conformidade com a lei, assim como, também, devem ser observadas todas as limitações impostas ao poder de atuação estatal no que diz respeito a atos que violem a liberdade dos indivíduos.
2. SÍNTESE DO SISTEMA PUNITIVO BRASILEIRO
A Constituição da República de 1988 em seu art. 5º prevê em 78 incisos e 4 parágrafos, diversos direitos e garantias fundamentais dos indivíduos, tais direitos e garantias constituem um dos pilares do Estado Democrático de Direito.
O sistema punitivo adotado atualmente é o garantista, trazido pela Constituição da República de 1988, que caracteriza-se por um conjunto de princípios com a finalidade de garantir a máxima dignidade do individuo, inclusive, diante das atuações Estatais.
No modelo garantista não se admite uma visão puramente moralista nem tampouco exclusivamente utilitária para o Direito Penal.
Neste sentido, nas palavras de Luigi Ferrajoli, “um utilitarismo como esse, voltando o Direito Penal unicamente para a finalidade do ne peccetur, orienta-lhe as escolhas para a adoção de meios penais maximamente fortes e ilimitadamente severos.”
Após a promulgação da Constituição da República de 1988 tornou-se inadmissível que a intervenção penal ocorra sem que seja observado o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais, utilizando toda a potencialidade da norma, visando alcançar uma maior proporcionalidade quanto à necessidade de prevalência dos direitos individuais sobre os interesses coletivos.
Percebe-se que o direito penal constitui a mais violenta forma de expressão do Estado sobre a liberdade individual, devendo ser a ultima ratio, sendo aplicado somente quando demonstrada sua imperiosa necessidade, com o objetivo de alcançar um maior grau de justiça em sua aplicação.
O sistema punitivo do Estado Democrático de Direito é um sistema pautado em garantias que visam permitir ao acusado que se defenda amplamente contra o que lhe foi imputado, seja provando sua inocência quanto à acusação, seja pleiteando pela aplicação de uma punição justa e proporcional ao ato praticado.
Observa-se que as características do sistema punitivo no Estado Democrático de Direito demonstram a necessidade de que uma condenação esteja fundada na verdade processual, a ser alcançada no curso do processo, não se admitindo que seja aceita como válida qualquer condenação sem que o indivíduo tenha sido submetido ao devido processo legal e a acusação tenha sido efetivamente comprovada segundo os meios de produção de provas admitidos.
3. A VEDAÇÃO DA AUTOINCRIMINAÇÃO
A vedação da autoincriminação é a garantia de que ninguém poderá ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal ou a ceder seu corpo para a produção de provas contra si.
Vale ressaltar, que a vedação da autoincriminação abrange a vedação da criação de qualquer prejuízo ou interpretação que desfavoreça o indivíduo que optar por exercer esse direito.
O princípio da vedação da autoincriminação é reconhecido pelo ordenamento jurídico brasileiro na Constituição Federal em seu artigo 5º, LXIII, ipsis litteris, “O preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”. (Grifei)
Há ainda previsão em dois importantes Tratados Internacionais, quais sejam, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), aprovada em 1969 e promulgada no Brasil pelo Decreto 678 de 06 de novembro de 1992 e no Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos da ONU, aprovado em 1966, aderido pelo Brasil em 24 de janeiro de 1992.
A Convenção Americana de Direitos Humanos prevê no artigo 8º, n. 2, alínea g, ipsis litteris:“Artigo 8º Garantias Judiciais. 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada;”
Ainda nesse contexto, o Pacto Internacional sobre direitos civis e políticos da ONU no artigo 14, n.3, alínea g, prevê, ipsis litteris, “ 3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualdade, a, pelo menos, as seguintes garantias: g) de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada.”
Além dos dois diplomas internacionais citados, mais recentemente, temos a criação do Tribunal Penal Internacional, instituído pelo Estatuto de Roma.
O Tribunal Penal Internacional foi criado com o objetivo de punir crimes que afetem a comunidade internacional, colocando em risco a paz, a segurança e o bem estar social, vale ressaltar que a vedação da autoincriminação também se encontra expressamente prevista no Estatuto de Roma, ipsis litteris: “Artigo 55 – Direitos das Pessoas no Decurso do Inquérito 1. No decurso de um inquérito aberto nos termos do presente Estatuto: a) Nenhuma pessoa poderá ser obrigada a depor contra si própria ou a declarar-se culpada;”
Perceba que a existência de um direito que permite ao cidadão optar por não colaborar com a produção de provas para sua própria incriminação é irrefutável.
Contudo, pode o Estado suprimir este direito com fundamento de que o interesse coletivo deve prevalecer sobre os direitos individuais?
Grande parte da doutrina entende que sim, em um conflito entre o interesse público e o direito individual, fundamentado no princípio da supremacia do interesse público deve prevalecer o interesse da coletividade, ou seja, aquele que atenda um maior número de pessoas.
Com a devida vênia, não há dúvidas de que a supremacia do interesse público é de extrema importância e deverá ser observado, contudo, sua aplicação tem que ser limitada, pois os direitos individuais são assegurados pela Constituição Federal e também devem ser respeitados.
Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo indaga: “Poderá haver um interesse público que seja discordante do interesse de cada um dos membros da sociedade? Evidentemente, não. Seria inconcebível um interesse do todo que fosse, ao mesmo tempo, contrário ao interesse de cada uma das partes que o compõem. Deveras, corresponderia ao mais cabal contra-senso que o bom para todos fosse o mal de cada um, isto é, que o interesse de todos fosse um anti-interesse de cada um.”
Ainda nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo argumenta, “Embora seja claro que pode haver um interesse público contraposto a um dado interesse individual, sem embargo, a toda evidência, não pode existir um interesse público que se choque com os interesses de cada um dos membros da sociedade. Esta simples e intuitiva percepção basta para exibir a existência de uma relação íntima, indissolúvel, entre o chamado interesse público e os interesses ditos individuais.”
Diante do exposto, imperioso concluir, que a supremacia do interesse público deve ser aplicada de forma mitigada, posto que, os interesses individuais, tais como o direito a não incriminação, não podem ser simplesmente suprimidos ou prejudicados em relação ao interesse público.
Seguindo esse pensamento é que se tem caracterizado um verdadeiro Estado Democrático de Direito com os direitos individuais e coletivos sendo observados e devidamente respeitados sem que qualquer deles prevaleça sobre o outro.
Atualmente, o Brasil é um Estado Democrático de Direito, tendo como principal objetivo a realização e a proteção dos direitos humanos e por esse motivo é inadmissível que prospere no ordenamento jurídico brasileiro qualquer lei que afronte qualquer das garantias fundamentais previstas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
A Lei 11.705 de 2008 e a Lei 12.760 de 2012, que alteraram dispositivos do Código de Trânsito Brasileiro, são claros exemplos de afronta aos Direitos e Garantias individuais do cidadão no que tange a previsão da obrigatoriedade da realização de testes de alcoolemia e imposição de aplicação de penalidade fundamentada apenas na recusa à realização dos testes.
4. O CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO, AS “LEIS SECAS” E A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE MEDIDAS ADMINISTRATIVAS E SANÇÕES PENAIS AO CONDUTOR QUE RECUSAR REALIZAR OS TESTES DE ALCOOLEMIA
Em breve síntese, a Lei 11.705, de 19 de junho de 2008, popularmente conhecida como “LEI SECA”, alterou a Lei 9.503, de 23 de setembro de 1997, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro.
Recentemente foi aprovada a Lei 12.760, de 20 de dezembro 2012, que alterou alguns dos dispositivos, já anteriormente alterados pela Lei 11.705 de 2008, do Código de Trânsito Brasileiro, sendo, por esse motivo, apelidada vulgarmente de “NOVA LEI SECA”.
Vejamos, em breve análise, as alterações introduzidas pela Lei 11.705 de 2008 aos artigos 165, 277 e 306 do Código de Trânsito Brasileiro.
O art. 165[1], que dispõe sobre a penalidade aplicada para a infração administrativa de dirigir sob a influência de álcool, não sofreu grandes alterações, a referida lei apenas regulamentou a penalidade de “suspensão do direito de dirigir”, acrescentando-lhe o tempo de suspensão, qual seja, 12 meses.
Já alteração sofrida pelo artigo 277[2] tem maior repercussão, pois a nova redação inovou ao prever que, ”ao condutor que se recusasse realizar qualquer dos testes de alcoolemia seriam aplicadas as penalidades e medidas administrativas previstas no artigo 165”. Ou seja, a nova redação do artigo determinou que a realização dos testes têm caráter obrigatório.
A alteração do artigo 306 também merece destaque, isso porque a alteração está relacionada ao crime de embriaguez ao volante.
Vejamos como era a redação do artigo antes da modificação pela Lei 11.705 de 2008, ipsis litteris: “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”
Agora, vejamos como ficou a redação do artigo 306 após a lei, ipsis litteris: “Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor. Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo.”
Quanto a alteração, vejamos a opinião de Guilherme de Souza Nucci: “Cuida-se do delito denominado de embriaguez ao volante. Conduzir (guiar, dirigir) é a conduta visada, tendo por objeto o veículo automotor. É preciso considerar que este delito somente pode ocorrer em via pública, diversamente de outros crimes de trânsito, como ocorre como o homicídio e a lesão corporal culposa, que podem acontecer em qualquer lugar. Convém deixar claro que não é imprescindível, para a caracterização deste delito, a individualização de vítimas, vale dizer, é dispensável a identificação de quem, efetivamente, correu o risco de ser atingido, sofrendo lesão, em virtude do comportamento do agente. Por outro lado, a modificação introduzida pela Lei 11.705/2008 foi lamentável. Eliminou-se do tipo incriminador a expressão “sob a influência de álcool”, inserindo-se “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas”.”
Perceba que a Lei 11.705 de 2008 ao substituir a expressão “sob a influência de álcool” pela expressão “estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a seis decigramas”, tornou indispensável à comprovação de que o agente conduzia veículo automotor com a concentração alcoólica específica prevista, qual seja, seis decigramas por litro de sangue.
Antes da alteração, para a capitulação do crime de embriaguez ao volante, era suficiente que o agente dirigisse “influenciado pelo álcool” colocando em perigo a segurança viária.
Para comprovação da quantidade exata de álcool no organismo torna-se necessária a realização do exame de sangue ou a realização do teste do etilômetro, vulgarmente conhecido como “bafômetro”.
Contudo, não é nenhuma novidade, que não se pode exigir de qualquer cidadão a colaboração na produção de provas que serão utilizadas para sua própria incriminação, ou seja, tornou-se praticamente impossível punir o agente pelo crime de embriaguez ao volante, já que não existiria outra forma de comprovar que o agente superou o limite de concentração alcóolica imposto pela lei, sem a colaboração do próprio condutor.
Resta claro, que a alteração ao artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro pela Lei 11.705 de 2008, ao contrário do que foi amplamente divulgado pela mídia, não puniu mais severamente o condutor embriagado, mas sim, dificultou sua punição.
Passemos agora a análise das alterações realizadas pela Lei 12.760 de 2012.
Após a entrada em vigor da lei, o art.165 passou a ter a seguinte redação, ipsis litteris: “Art. 165 Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer substância psicoativa que determine dependência: Penalidade – multa (dez vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses. Medida administrativa – recolhimento do documento de habilitação e retenção do veículo, observado o disposto no § 4o do art. 270 da Lei no 9.503, de 23 de setembro de 1997 – do Código de Trânsito Brasileiro. Parágrafo único. Aplica-se em dobro a multa prevista no caput em caso de reincidência no período de até 12 (doze) meses.”
A lei alterou somente o valor da multa aplicada, que passou de R$957,65 para R$1.915,40, objetivando punir com mais rigor.
Contudo ainda persiste o questionamento no que tange ao que seria dirigir “sob a influência de álcool” e se seria Constitucional a aplicação das penalidades previstas, com base na recusa em realizar os testes de alcoolemia previstos na lei.
Nesse sentido, Dámasio de Jesus explica: “Dirigir veículo automotor, em via pública, “sob a influência” de álcool ou substância similar significa sofrendo seus efeitos, conduzi-lo de forma anormal, fazendo ziguezagues, “costurando” o trânsito, realizando ultrapassagem proibida, colado ao veículo da frente, passando com o sinal vermelho, na contramão, com excesso de velocidade etc. De modo que, surpreendido o motorista dirigindo veículo, após ingerir bebida alcoólica, de forma normal, “independente do teor inebriante”, não há infração administrativa, não se podendo falar em multa, apreensão do veículo e suspensão do direito de dirigir. Exige-se nexo de causalidade entre a condução e a ingestão de álcool.”
Quanto a possibilidade de aplicação de penalidade ao condutor que se recusar realizar os testes, Damásio de Jesus, argumenta, “Ora, se a recusa tem fundamento constitucional, tratando-se de atitude lícita, como aplicar pena ao condutor? Cremos que não.”
E ainda, Guilherme de Souza Nucci, alerta, “O condutor que se recusar a fornecer sangue para exame pericial ou que não queria soprar o bafômetro não pode sofrer sanção alguma.”
Não resta dúvidas que é acertado o entendimento doutrinário no sentido de que não é plausível a aplicação das sanções administrativas previstas no artigo 165 do Código de Trânsito pautada apenas na recusa.
Já o artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro não sofreu alterações significativas com a entrada em vigor da nova lei.
Passemos então a análise do artigo 306 do Código de Trânsito.
A principal inovação está na previsão de um novo método para averiguação do estado de embriaguez do condutor e consequentemente a tipificação do crime de embriaguez ao volante. Este método alternativo consiste em provar a embriaguez por sinais indicativos de alteração da capacidade psicomotora, regulados pela Resolução n. 432/13 do Contran.
Nesse sentido, vejamos a opinião de Luiz Flávio Gomes: “No caso concreto da interpretação da nova lei seca, a Resolução 432/13 do Contran adotou erradamente o critério quantitativo para distinguir a infração administrativa da criminal (0,34 mg/L de ar expelido já é crime, independentemente da forma de conduzir o veículo e da real alteração da capacidade psicomotora do agente). Antes, a lei de 2008 não “pegou” porque foi malfeita. Agora a nova lei seca corre o risco de também “não pegar” porque a interpretação está sendo malfeita. Se o critério é quantitativo, basta que o condutor se recuse a fazer o etilômetro ou o exame de sangue. Restarão os sinais. Ocorre que os sinais são de valoração subjetiva.” (Grifei).”
O Ilustre doutrinador continua: “Quando ingressamos nesse terreno dos “sinais indicadores da alteração psicomotora” o subjetivismo é quase que absoluto, cabendo considerar cada pessoa, cada caso. Aquele automatismo que se pretende contra o motorista que fez exame de sangue (ou etilômetro) desaparece. Sai a matemática e entra o singularismo de cada caso. O tratamento jurídico de um e outro motorista é totalmente distinto, desigual. Trata-se do mesmo motorista e da mesma causa: a embriaguez. Num dia o motorista aceita fazer o exame e é flagrado com 0,34 dg/L: é automaticamente, presumidamente, criminoso. Noutro dia ele recusa o exame e vai ser julgado pelos sinais. Aqui o subjetivismo prepondera. Pode até estar com 0,40 ou 0,50 ou mais de álcool no sangue e ser tido como infrator administrativo. A violação ao princípio da igualdade (isonomia) está mais do que evidenciada. Motorista periciado: automatismos, presunções, regras quantitativas abstratas, generalizações, estatísticas etc. Motorista não periciado: cada caso é um caso, tudo depende dos sinais indicativos de cada pessoa, o que significa uma pluralidade de valorações nebulosas, subjetivas e, muitas vezes, até mesmo disparatadas.”
Ainda em relação ao tema, Luiz Flávio Gomes, indaga: “Qual seria o critério válido para a distinção? A forma de conduzir o veículo (normal ou anormal). Mas esse critério não pode ser válido somente para quem recusou o etilômetro. Não podemos ter dois critérios distintos, sob pena de violação do princípio da igualdade. De acordo com nossa opinião o critério da condução anormal é o que vale para todas as situações (é o mais justo, o mais correto, o único constitucionalmente válido). Nada disso aparece na criminologia midiática, que só pensa na causalidade mágica: mais rigor da lei significa mais prisão e mais prisão significa menos crimes! Nem sempre isso é correto.” (Grifei)
Percebe-se claramente que as alterações realizadas no Código de Trânsito Brasileiro, com o intuito de instituir penalidades mais severas ao condutor que dirigir embriagado, deverão assumir uma interpretação condizente com um Estado Democrático de Direito, respeitando o modelo garantista adotado pela Constituição da República Federativa do Brasil desde 1988, tratando igualmente todos os condutores de veículos automotores que vierem a ser alvo de fiscalização, ou seja, verificando em cada caso individual, se o condutor dirigia de fato sob “influência de álcool”, independente do grau de teor alcóolico, pois esse é apenas mais um elemento para que se constate a embriguez, sob pena da Lei 12.760 de 2012 se tornar penalmente autoritária e inconstitucional.
CONCLUSÃO
As chamadas “Leis Secas” foram editadas com um louvável propósito, o de diminuir consideravelmente o número de acidentes no trânsito, e não há dúvidas que a condução de veículo após o consumo de álcool é um dos principais fatores que favorecem ao alto índice de acidentes automobilísticos.
Pode-se afirmar que houve significativa redução no índice de acidentes, mas tal redução ocorreu, comprovadamente, em virtude da maior fiscalização no trânsito com a entrada em vigor das referidas leis.
Importante consideração deve ser feita em relação ao Código de Trânsito Brasileiro antes das alterações impostas pela Lei 11.705 de 2008 e 12.760 de 2012, qual seja, o Código de Trânsito Brasileiro já previa punição administrativa e penal para a embriaguez ao volante, embora as punições não ocorressem, com frequência, devido a deficiência na fiscalização.
Apesar do objetivo a ser alcançado com a aprovação dessas leis ser o de assegurar maior segurança viária, não se pode, no entanto, aplicar a máxima de que “os fins justificam os meios”.
E, é nesse sentido, que conclui-se que as alterações sofridas pelo Código de Trânsito Brasileiro pelas ditas “Leis Secas” não foram razoáveis ao estabelecerem que o crime de embriaguez ao volante não exige a necessidade de que se cause um perigo concreto.
E, ainda, quando preceituam que o condutor está obrigado a “colaborar” para a produção de prova que o incriminará, ferindo a Constituição Federal e os princípios fundamentais assegurados a cada indivíduo pelo atual ordenamento jurídico.
O artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro, em seu §3º, após 2008, passou a determinar que o condutor estará submetido as penalidades previstas no artigo 165 do Código de Trânsito, caso se recuse a realizar o teste do etilômetro ou exame de sangue para apurar a taxa de seu teor alcóolico.
Diante de todo o conteúdo pesquisado e apresentado, percebe-se que toda a repercussão diante da obrigatoriedade dos testes de alcoolemia e da afirmação de que tal exigência não é razoável, procede totalmente.
Percebe-se que em um Estado Democrático de Direito, cujo sistema punitivo deve garantir ao máximo os direitos a ampla defesa e ao contraditório e ainda o direito de todo cidadão, mesmo sob suspeita, não ser obrigado a produzir prova que favoreça sua própria incriminação, torna-se totalmente incoerente impor o cumprimento de qualquer lei de forma autoritaria, pois não se pode simplesmente desvalorizar os direitos individuais, ainda que o objetivo seja o bem da coletividade, pois não há lógica em se fazer o bem a todos com o mal de cada um.
Em suma, a solução mais viável para se resolver o problema, seria por meio da declaração de inconstitucionalidade do §3º do artigo 277 do Código de Trânsito Brasileiro, introduzido pela Lei 11.705 de 2008 e mantido pela Lei 12.760 de 2012.
Contudo, enquanto a lei vigorar, todo cidadão poderá exercer o direito de não produzir provas contra si, pois o Estado deve encontrar outras medidas razoáveis, para que se comprove que o condutor de fato estava causando risco à incolumidade pública e não simplesmente abordar de forma aleatória qualquer condutor que sequer apresentava risco a segurança viária e obrigá-lo a submeter-se à testes de alcoolemia.
E se o condutor tem o direito de não ser obrigado a submeter-se aos testes de alcoolemia não é razoável puni-lo, ainda que administratiamente, por exercer esse direito.
Necessário ainda, que a interpretação do artigo 306, alterado pela Lei 12.760/2012, seja no sentido de que a averiguação do estado de embriaguez do condutor de veículo automotor, deve ser realizada em cada caso concreto SEMPRE (não somente quando houver recusa aos testes de alcoolemia), mediante avaliação do estado de “influência do álcool” na capacidade psicomotora e na forma como o agente conduzia o veículo quando foi abordado.
Conclui-se ainda que, a impunidade nunca ocorreu em virtude da ausência de normas, haja vista que o Código de Trânsito Brasileiro já regulava suficientemente a matéria desde 1997, o que de fato vislumbra-se é que não houve uma fiscalização permanente e adequada para manter a norma, já existente, plenamente eficaz. A solução do problema não está na lei, propriamente dita, e sim nos instrumentos a serem utilizados para aplicá-las efetivamente hoje, amanhã e sempre.
Informações Sobre o Autor
Laura Cellarius
Pós Graduada lato sensu em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes. Advogada. Bacharel em Direito pela Universidade Gama Filho