O contrato de locação e a mudança da causa possessionis: estudo do caso Rheingantz

Resumo: O artigo tem como escopo fazer uma análise sobre as ações de usucapião extraordinárias e constitucionais ajuizadas pelos moradores do complexo Rheingantz. Busca-se comprovar que, apesar de ter existido um contrato de locação entre os moradores e a Inca Têxtil, tal contrato deixou de gerar efeitos desde o momento em que não houve mais o pagamento dos locatícios, por volta do ano de 1994. Assim, a partir de tal data, os possuidores passam a exercer posse com animus domini, já que a causa da posse deixa de estar vinculada a esse contrato e começa a estar vinculada ao próprio fato da posse, passando a ter uma nova causa possessionis, portanto. Dessa forma, a partir da data em que houve a paralização do pagamento dos locatícios é possível contar-se os anos necessários à prescrição aquisitiva. Além do mais, a procedência das ações também é corroborada pela função social da propriedade, que deixou de ser exercida pela proprietária quando abandonou seus imóveis e passou a ser exercida pelos possuidores, que sempre usaram os bens para os fins a que se destinam, além de evitarem que tais bens estivessem em ruínas, como hoje se encontra a fábrica.

Palavras-chave: usucapião; causa possessionis; contrato de locação; Rheingantz; Cia Inca Têxtil e Industrial.

Sumário: Introdução. 1. Notícia do nascimento de uma vila operária em rio Grande. 1.1 A criação da fábrica Rheingantz e sua falência: um breve histórico. 1.2 Tratamento concedido a empregados e a política habitacional. 2. Usucapião. 2.1 A origem do instituto. 2.3 Usucapião extraordinária. 2.3.1 Posse. 2.3.2 Lapso temporal. 2.3.3 Objeto hábil. 2.3.4 O animus domini. 2.3.5 Sentença e registro. 2.3.6 A questão da sucessio possessionis e da acessio possessionis. 2.3.7 Causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição. 2.4 Usucapião constitucional. 2.4.1 Posse pessoal, para moradia do prescribente ou de sua família. 2.4.2 Área de 250 m². 2.4.3 Área urbana. 2.4.4 Não ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural. 2.4.6 A questão da sucessio possessionis e da acessio possessionis. 2.4.7 Direito novo. 3. O caso Rheingantz. 3.1  A questão da função social da propriedade. 3.2 O olhar dos tribunais para o caso Rheingantz: o contrato de locação e a mudança da causa possessionis. Considerações Finais.

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Introdução

O presente trabalho tem como escopo fazer uma análise sobre as ações de usucapião extraordinárias e constitucionais ajuizadas pelos moradores do complexo Rheingantz.

Como objeto do estudo, almeja-se uma apresentação doutrinária e jurídica acerca do tema, de forma a comprovar a possibilidade de procedência das ações, ainda que a posse tenha se originado de contrato de locação. Isso porque, conforme se verá no decorrer do trabalho, nada impede que o ânimo da posse venha a se modificar no seu transcurso.

Assim, a posse direta dos moradores do complexo, que era exercida sem animus domini, já que vinculada ao contrato de locação entabulado com a proprietária, deixa de estar atrelada a esse contrato e passa a ter uma nova causa possessionis desde o momento em que não houveram mais os pagamentos das prestações locatícias e nem qualquer oposição por parte da proprietária.

Portanto, o caráter da posse se modificou de forma clara e pública, passando a ser exercida com ânimo de dono e dando ensejo a procedência das ações de usucapião.

De forma a embasar a teoria, primeiramente será apresentada a história da Fábrica Rheingantz, desde a sua fundação pelo Comendador Carlos Guilherme Rheingantz em 1873 até sua total paralização em 1980. Também nesse primeiro capítulo será examinada a origem dos imóveis que hoje são objeto das ações de usucapião propostas pelos moradores do complexo, bem como uma visão do antigo cotidiano da vila operária, sua estrutura e o tratamento que era concedido aos operários.

Para tanto, foi realizada pesquisa nos relatórios originais da fábrica que hoje se encontram na Biblioteca Riograndense, além de terem sido pesquisados os autos da ação de falência e alguns dos autos das ações de usucapião ajuizadas pelos moradores.

No segundo capítulo, será feita uma análise aprofundada dos requisitos necessários para se adquirir a propriedade através da usucapião. Estudar-se-á nesse trabalho as modalidades de usucapião extraordinária e especial, tendo em vista que são as duas mais recorrentes dentre as ações propostas pelos moradores do complexo.

E, no capítulo final, serão analisadas, especificamente, as ações de usucapião propostas pelos moradores do complexo Rheingantz. Também em um primeiro momento, se discorrerá acerca da função social da propriedade, comprovando-se que os possuidores sempre atenderam a essa função social, enquanto que a proprietária deixou os bens ao abandono, dando margem, portanto, para a procedência das ações.

Por fim, será analisada a possibilidade da mudança da causa possessionis decorrente da falta de pagamento dos alugueis e da ausência de resistência por parte da empresa proprietária, examinando-se, por conseguinte, se tais fatos remetem a hipótese de uma posse com animus domini capaz de oportunizar o surgimento do direito de propriedade via ação de usucapião.

1. NOTÍCIA DO NASCIMENTO DE UMA VILA OPERÁRIA EM RIO GRANDE

Neste primeiro capítulo, serão apresentados alguns aspectos históricos da fábrica Rheingantz, desde a sua fundação, até a sua falência, bem como algumas características da vida que se desenvolveu na vila operária. Além do mais, também será demonstrada a origem dos contratos de locação que foram entabulados entre a fábrica e seus funcionários, bem como a sua posteriror extinção pela ausência do pagamento dos locatícios.

1.1 A criação da fábrica Rheingantz e sua falência: um breve histórico

Filho de Jacob Rheingantz, fundador da colônia que deu origem a São Lourenço do Sul, Rio Grande do Sul, Carlos Guilherme Rheingantz fundou a Fábrica Nacional de Tecidos e Panos Rheingantz & Valter em novembro de 1873. Tinha como sócios o seu sogro, Comendador Miguel Tito de Sá e o alemão Hermann Valter.

Pioneira na produção de tecidos e lãs no Brasil, também sendo a primeira empresa fabril da cidade do Rio Grande, iniciou suas atividades em pequena escala e com um capital de 90 contos de réis em 1874 (PAULITSCH, 2008).

Conforme narrado por Reichel (1978), seis meses após a sua fundação, a sociedade com o seu sogro se extinguiu e Carlos Guilherme assumiu o ativo e o passivo da extinta. Formou-se, assim, a Fábrica Nacional de Tecidos de Lã de Rheingantz e CIA., com um capital de 600 contos de reis, já contando com 130 operários. Foi nesse mesmo ano que a empresa fundou a primeira fábrica de tecidos de algodão do estado.

Homem de grandes ideias, Carlos Guilherme Rheingantz empregava na fábrica riograndina os conhecimentos adquiridos dos estudos que realizava em tecelagens europeias quando das suas viagens.

“Este nosso colega (o comendador Rheingantz), durante sua estada na Europa, foi incansavel em procurar conhecer de melhoramentos introduzidos em fabricas como as nossas, e prestou a esta empresa valiosos e gratuitos serviços de subida importancia” (SOCIEDADE COMANDATARIA, 1897, p. 8)

O Comendador permaneceu na direção da fábrica até 1909, quando veio a falecer. Devido a sua figura ser bastante querida entre os operários, foi proposta por eles uma homenagem ao fundador da fábrica:

Damos começo a este relatorio ainda sob a dolorosa impressão causada pelo sentido passamento do nosso caro amigo Sr. Commendador Carlos Guilherme Rheingantz, fundador e Director desta Empreza, o qual teve lugar no Rio de Janeiro no dia 30 de maio, p. p., quando aquelle benemerito industrialista se dirigia à Europa em procura de melhoras á sua saúde, já então bastante alterada.

Cremos estar na consciência de todos os senhores accionistas, os relevantes serviços que prestou ao extincto não só á nossa Empreza, como tambem a esta cidade.

Esta directoria, logo que teve conhecimento do doloroso facto, rendeu as homenagens que estavam a seu alcance, e acolheu com agrado a idéa, que partio dos nossos operarios de ser por subscripção entre elles e auxiliados por esta Empreza (se com isso concordardes), da erecção da estatua do finado, a qual será colocada na frente de nossos estabelecimentos fabris.

Quem, como nós, acompanhou de perto o Commendador Rheingantz desde o inicio de sua carreira industrial e sabe da luta ingente que teve para vencer difficuldades que appareceram a cada passo, para afinal conseguir collocar esta Empreza no brilhante pé que se acha, certamente póde affirmar não serem de mais todas as demonstrações de sentimento que se fizeram á memoria de tão sutil cidadão (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1909, p. 3).

Entretanto, apenas em 1921 é que foi levada a efeito a homenagem, com a colocação do busto do comendador no prédio da fábrica:

“Em 14 de abril do corrente anno, foi solemnente inaugurado o busto de bronze do Fundador da Fabrica, diante do edificio do Collegio desta Companhia, valiosa dadiva dos operarios da fabrica, o que expressa o alto conceito e o espirito de gratidão dos offertantes pelo benemerito e saudoso Commendador Carlos G. Rheingantz”. (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1921, p. 4)

Em 1885 ficou pronta a construção do novo edifício da fábrica de lã (localizado onde hoje se encontra as ruínas da empresa, na Avenida Rheingantz), e a antiga construção, que era situada em frente à cadeia, no quarteirão formado pelas rua Conde de Porto Alegre, General Câmara e Coronel Sampaio ficou sediada a Fábrica de Algodão.

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Ficou ultimada a construcção do novo edificio  em Fevereiro do corrente anno e bem assim a collocação do novo motor da força de 150 cavalos.

A inauguração do novo estabelecimento foi honrada com a presença de SS.AA. Imperiaes e a chapa comemorativa collocada no motor pelo principe  do Grão-pará.

Essa cerimonia teve lugar em 1º de Março do corrente anno. […]

Na construção do novo edificio atendeu-se, quando possivel, ás condições de solidez, preferindo-se o ferro á madeira, para as janelas, portas, telhado e armação do mesmo, diminuindo-se assim o risco de fogo. (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1885, p. 4-5)

Alguns dos materiais necessários para a construção, bem como maquinários para a produção dos tecidos foram trazidos da Europa para que a nova sede pudesse ser erguida, como o próprio relatório da empresa narra: “Acha-se já contractado na Inglaterra todo o material de que carecemos, tanto a coberta de ferro da nova fabrica, como o respectivo motor, a transmissão e caldeira e os mais mechinismo necessários” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1884, p. 3)

Nesse mesmo ano foram iniciadas as construções das casas para os operários e mestres da fábrica, que já contava com 200 funcionários. As vinte primeiras residências de operários ficaram prontas em 1889.

Em 1891 a empresa, que tinha 543 operários, foi transformada em Companhia União Fabril e Pastoril, realizando investimentos no setor primário também. Assim, o comendador juntou à fabricação de tecidos de lã a produção da matéria prima, a própria lã, através da criação de ovelhas. Para isso, comprou vários reprodutores na Inglaterra e adquiriu rebanhos do estado, conforme se visualiza do relatório apresentado no ano de 1892.

“Recebemos da Escossia 30 pastores da raça Black-faced, que vieram acompanhados de um profissional e estabelecemos provisoriamente a criação de ovelhas no local chamado Paulista, perto da Quinta, neste municipio” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1892, p. 5)

Infelizmente, a experiência fracassou durante a Revolução Federalista, pois as tropas cruzaram várias vezes através dos campos de criação e abateram grande número de cabeças, inclusive os valiosos reprodutores adquiridos na Inglaterra, bem como seus descendentes. Dessa forma, o técnico inglês que havia sido contratado pelo comendador voltou irritadíssimo para a Europa, fracassando os planos da produção de lã (REICHEL, 1978).

Assim, em 1895, sua denominação foi alterada para Companhia União Fabril. A partir de então, sua produção passou a ter abrangência internacional, com exportação para os Estados Unidos e Europa.

Foi resolvida a suppressão dos projetos de criação de ovelhas, montagem de fabricas filiaes e de officinas de roupa feita e limitada a nossa atividade às 3 industrias que já exerciamos.

Em consequencia, riscou-se da denominação da Companhia as palavras: – e Pastoril- […] (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1895, p 6).

Do que se percebe de seus relatórios anuais, desde o início a fábrica sofreu com a concorrência de outras fábricas do mesmo ramo, situadas principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se vê em diversas passagens ao longo dos anos.

“Temos a satisfação de anunciar-vos que, apesar da crise que está passando esse paiz e da concurrencia que temos de outras fabricas congêneres, conseguimos colocar a maior parte da producção das nossas fabricas, que tambem foi maior que em annos anteriores” (SOCIEDADE COMANDATARIA, 1896, p. 3)

E, além dessa concorrência, desde muito nova a fábrica passou por crises da economia brasileira, mas, por longos anos, conseguia se manter ativa e com lucros.

Desde o nosso ultimo relatorio, a crise commercial que ja se manifestava em alguns Estados, estendeu-se sobre todo o paiz, tendo especialmente o Rio Grande do Sul sofrido, alem disso, ainda as consequencias da prolongada secca que destruiu grande parte das colheitas coloniais e reduziu grandemente a produção de gado, fazendo, assim, diminuir tambem o consumo de nossos tecidos de lans e algodões e quasi paralisar o de aniagens.[…]

Devido a demasiada especulação na Europa, as lans finas em toda a parte subiram á tal altura e tanta procura se notou desta fibra em nosso Estado, que se pagaram preços nunca vistos aqui. Em consequencia, tivemos que subir com os nossos preços nos tecidos e teríamos conseguido vender quase toda a nossa preducção, se não viesse em Maio surgir no Rio de Janeiro a peste bubonica, que paralysou ali completamente, em nosso grande mercado de tecidos de lans, todo o movimento commercial; assim mesmo foram sactisfatoias as vendas realizadas durante o anno” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1900, p. 3-5).

Devido a crise que tomou conta do país, a fábrica necessitou diminuir o número de empregados que eram 829 em 1900 para 784 em 1901, bem como reduzir os salários para que pudesse seguir atuando.

Entretanto, apesar da crise ter atrasado por anos a fio os resultados da fábrica, ela se mostrava bastante resistente:

Durante o anno social findo a marcha regular dos nossos negocios foi perturbada por varias causas. A competencia entre as fabricas nacionaes, a que nos temos referido em anteriores Relatorios, determinada em grande parte pela superproducção, tornou-se ainda mais forte, mantendo durante todo o anno os preços em nível muito baixo. Foi principalmente em relação aos alogões e aniagens que esta competencia mais se fez sentir nos nossos mercados.

A fabrica dos algodões soffreu além disto a influencia ruinosa da especulação que nos Estados Unidos se apoderou do commercio da materia prima, fazendo falhar todas as previsões e tirando a base a todo e qualquer calculo sério.  Assim foi que, quando mais se accentuava a alta do algodão em rama e á vista das insistentes noticias de insufficiencia da colheita do paiz para as necessidades da industria nacional, fizemos grandes compras desta matéria prima a preço alto, preferindo correr o risco de sermos alcançados por alguma baixa inesperada, a vermo-nos forçados, comko então se receava, a parar a fabrica por falta de algodão e a deixar o nosso pessoal sem trabalho.

Não teve o merecido premio este nosso cuidado, por que, com a mesma falta de razão que havia caracterizado a alta, começaram de reprente a cahir os preços e tivemos de trabalhar ainda por bastante tempo com algodão caro, vendendo os tecidos a preços não remuneradores. Durante todo o periodo aliás da alta do algodão, os preços dos tecidos nunca acompanharam o exagerado custo da materia prima. De modo que o resultado neste ramo de nossa produção foi quase nenhum, e teria sido negativo, se a nossa fabrica de Algodões não beneficiasse da economia da direcção comum e, em geral, da montagem econômica de nossos estabelecimentos no tempo dos bons cambios.

Quanto as aniagens, algumas fabricas de S.paulo, que haviam augmentado fóra de toda a proporção os seus machinismos, não tendo sahida sufficiente naquele mercado, dirigiram o excesso de sua producção para o nosso Estado, a cujas forças de consumo aliás corresponde perfeitamente o machinismo da nossa fabrica; e, decididas a conquistar a todo o transe o mercado rio-grandense, provocaram uma luta de preços prejudicial para todos e que nos obrigou, na salvaguarda dos interesses desta empresa, a diminuir de metade a nossa producção, vendida assim mesmo com difficuldade e dando prejuizo (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1904, p. 3-4)

A indústria brasileira apresentou grande crescimento de produção ao longo da década de 1910 a 1920, sendo que o ramo de tecidos e algodão acabou se expandindo também, mas se concentrou especialmente em São Paulo, tendo em vista a maior capacidade de acumulação de capital nesse Estado.

Assim, pode-se dizer que a primeira guerra mundial acabou gerando não só a diminuição da dependência das importações de tecidos, mas um significativo aumento da produção têxtil paulista, que acabou por dominar o mercado interno.

De maneira geral, a indústria têxtil gaúcha acompanhou o crescimento do setor em nível nacional, especialmente ao que diz respeito ao volume da produção.

Nessa época, as empresas situadas em Porto Alegre e no interior aumentaram em número, enquanto que as sediadas nos centros exportadores (Rio Grande e Pelotas) permaneceram com o mesmo número da década anterior.

Também a fábrica riograndina acompanhou esse crescimento, como se percebe de trecho de seu Relatório apresentado em 1910: “Foram bastante satisfactorias as vendas de nossos produtos, e, não obstante augmento de produção, não nos foi possivel satisfazer numerosos pedidos que nos foram feitos”. (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1910, p. 3).

Pesavento (1985) diz que na década de 1920, as empresas gaúchas passaram por um período de modernização e concentração empresarial. Dessa forma, mais ou menos 820 pequenas fábricas não puderam resistir a agravação dos impostos federais, o que demonstra a falência das pequenas empresas ou sua absorção pelas maiores. Acompanhando essa tendência, em 1919, a Companhia União Fabril comprou a Companhia Fiação de Tecidos Progresso da Fronteira, de Uruguaiana.

Entretanto, apesar das empresas se tornarem mais mecanizadas e haver grande aumento de capital, não se alteraram as condições de defasagem entre o parque industrial gaúcho e paulista.

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Posterior ao incremento produtivo experimentado nos últimos anos da Segunda Guerra, a Rheingantz continuou sendo ameaçada pela concorrência que vinha de fora do estado, através da indústria paulista principalmente, bem como pelos pesados impostos que eram cobrados.

“Transcorreu com grande movimento de vendas o anno relatado, não tendo se verificado todavia, resultado compensador, por motivos varios, entre os quaes convem salientar os encargos cada vez maiores que pesam sobre a industria, tanto os provenientes de impostos como os que se relacionam com as novas leis  sociaes, e o augmento consideravel do custo de todos os artigos de importação, em consequencia  da queda do cambio, inclusive as materias primas nacionaes que apresentaram grande alta pela desvalorização do mil reis” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1935, p. 3)

Como aponta Paulitsch (2008), do final da década de 1940 até meados dos anos 50, foi possível manter um nível de produção que possibilitava que a empresa funcionasse em todos os setores, garantindo uma relativa estabilidade que escondia, por certo, os processos conflituosos em que se desenvolvia a administração do último Rheingantz.

Em 1961 foi feita a transferência, mediante venda do controle acionário, para os Irmãos Abdalla, grupo paulista que se constituía em um conglomerado de empresas de diferentes ramos.

A empresa seguiu atuando até 1969, quando sua falência foi decretada. 

Isso se deu devido a recessão do período pós-golpe militar de 1964, que trouxe desastrosas consequências, dentre as quais o congelamento salarial que gerou o esgotamento do poder aquisitivo de assalariados urbanos, causando, por sua vez, a retração da demanda urbana de bens não-duráveis e a falência das empresas tradicionais, como foi o caso da fábrica Rheingantz. 

Além do mais, Paulitsch (2008) também cita como causa da falência a concorrência de confecção e magazines que importavam lã e produtos do Uruguai a preços muito mais módicos.

Em 1970, a fábrica foi arrematada por um grupo de Pelotas, pertencente à família Loréa, que adquiriu 81% das ações, porque o restante ficou em poder dos operários para fins de indenização decorrentes da falência e desemprego em massa.

Renomeando a fábrica para Companhia Inca Têxtil, o grupo tentou manter a produção. Entretanto, não teve sucesso, visto que não era capaz de fazer concorrência frente aos produtos Uruguaios, nem de resolver os sérios problemas decorrentes dos processos indenizatórios e trabalhistas ajuizados pelos funcionários quando da falência.

Dessa forma, desde a década de 80 a empresa está parada, sem qualquer tipo de produção, o que é uma perda lastimável, não apenas comercial, como também histórica para a cidade do Rio Grande, conforme relatado por Ferreira (2009).

“Mergulhada em dívidas e sentenças judiciais, a INCA têxtil, nome pelo qual foi registrada essa empresa adquirida pelo Grupo Lorea, se manteve funcionando parcialmente até o final da década de 1980. Dos anos 1990 em diante, face ao agravamento das condições financeiras da fábrica e da impossibilidade de investir na manutenção básica dos prédios que compõem o complexo fabril, a INCA foi sendo abandonada a cada dia, o que ficava demonstrado tanto pela situação de comprometimento estrutural do edifício, como pelo desânimo e fim das expectativas de retorno aos velhos tempos, sentimento que, vivenciado coletivamente por aqueles que ainda freqüentavam a Rheingantz, parecia mantê-la ainda viva”. (FERREIRA, 2009, p. 198)

1.2 Tratamento concedido a empregados e a política habitacional

A fábrica, que primeiramente era localizada no quarteirão formado pelas ruas Conde de Porto Alegre, Almirante Barroso, General Câmara e Coronel Sampaio, concluiu em 1885 a construção de um prédio maior, onde hoje é localizado o complexo Rheingantz, para abrigar a fábrica de tecidos de lã.

Nos arredores da nova fábrica de lã, também foram construídas as moradias dos funcionários, que hoje são objeto das ações de usucapião presentes no foro local. Segundo o próprio diretor da empresa, seria conveniente que os operários residissem na vizinhança da fábrica, além de ser uma fonte de renda, visto que se cobravam alugueis a preços módicos.

“Conviria edificar junto à nova fábrica, casinhas para alugar aos operarios para comodidade dos mesmos e segurança do estabelecimento, e ao mesmo tempo oferecendo resultados vantajosos mesmo à aluguel muito modico naturalmente garantido pelos salarios.” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1884, p. 8)

Mais tarde, no ano de 1888, foi proposta uma redução do preço dos alugueis em troca de que os funcionários participassem da prevenção a incêndios, conforme relata o diretor da fábrica em seu relatório anual: “Me parece razovel fazermos uma reducção geral de 10% nos alugueis, favorecendo assim os nossos operarios, com a condição porém de estarem obrigados á accudir a qualquer incendio da fabrica” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1888, p. 6).

De um lado da Avenida Rheingantz ficavam as casas destinadas aos funcionários mais graduados, que eram mais luxuosas e espaçosas, e do outro, as moradias mais modestas e menores, que eram destinadas aos operários.

No espaço externo à fábrica, o conjunto de moradias que compunham as chamadas "casas da fábrica" divide-se em dois: o primeiro deles é composto por moradias dispostas ao lado do edifício fabril; e o segundo, inaugurado na década de 1950, localiza-se nas imediações da fábrica, na chamada Vila São Paulo.

Foi do primeiro conjunto de habitações que um maior número de referências foi obtido na documentação da empresa. Nesse local, cujas primeiras edificações

começaram em conjunto com a fundação da fábrica em 1873, é possível, através da disposição dos imóveis, traçar um mapa social desse universo. No lado oposto ao prédio fabril encontram-se edifícios que eram segmentos da fábrica: o prédio da Sociedade de Mutualidade; a creche, sob a direção das religiosas da Ordem de São José; o Grupo Escolar Comendador Rheingantz, o qual os filhos dos operários podiam frequentar até o 4º ano do ensino fundamental. Na sequência, havia construções nas quais moravam os mestres da fábrica, que, pelo menos até 1950, eram de nacionalidade alemã. Essas casas apresentavam-se com dois andares, porão, sótão e jardim, seguindo o padrão construtivo de influência germânica. No lado oposto da rua vê-se ainda o que foi a casa de um dos diretores da empresa, membro da família Rheingantz: uma construção grande no meio de um jardim, garagem para carros, elemento de distinção num conjunto social no qual ter um automóvel foi, por muito tempo, exclusividade dos Rheingantz.

Ao lado desse grande imóvel inicia-se uma sequência de casas caracterizadas por fachada austera de porta, janela e, em algumas delas, um pequeno jardim. Imóveis que eram entregues aos contramestres. Um terceiro lote de casas está na parte interna e paralela à Avenida Rheingantz, num conjunto arquitetônico de casas em fita, ou, na linguagem local, "o corredor". Essas eram casas originalmente cedidas a operários com família pequena ou solteiros. São residências geminadas compartilhando espaços como o pátio de distribuição interna (FERREIRA, 2013).

A construção de novas moradias, bem como os reparos necessários nas já existentes continuaram por longos anos, pois, como os próprios diretores afirmavam, era muito cômodo para os empregados e seguro para a fábrica os ter por perto.

“Attendendo que do projectado augmento da nossa Fabrica de algodões e da visível conveniência de termos o nosso pessoal alojado perto das fábricas e em melhores condições sanitárias, resolveu essa Dirctoria construir mais alguns lances de casas no terreno que possuimos na rua Rheingantz” (SOCIEDADE COMANDATARIA, 1902, p. 6).

 Segundo Paulitsch (2008), a fábrica merece destaque em relação às demais que lhe foram contemporâneas, visto que possuía uma forte política habitacional de imenso alcance social.

Dessa forma, construiu-se uma verdadeira vila operária, que se estendia da atual Avenida Presidente Vargas, Rua América, Rua 1º de Maio até a rua Raul Barlém. 

Com os trabalhadores indo morar nos arredores da fábrica, houve um estreitamento entre vida privada e a vida no trabalho, conforme se depreende da entrevista realizada por acadêmicos da FURG com uma moradora local:

“[…] tinha uma sirene… (tinham três turnos a fábrica, ela trabalhava diuturnamente) e quando tinha qualquer problema era acionada a sirene. Então claro, se acionada uma sirene aqui dentro da fábrica, todo mundo aqui dessas casas escutavam. O meu pai cansou de levantar e ir porque era algum problema […] podia ser na parte elétrica, podia ser na caldeira, podia ser em alguma máquina, né. Então as pessoas por isso moravam e assumiam um compromisso de estar sempre à disposição.” (CLARO E VALLE, 2012).

Essa política habitacional continuou fortemente até o início dos anos 20, quando a empresa passou a ter dificuldades financeiras. (PAULITSCH, 2008).

A última casa, de acordo com os relatórios anuais da fábrica, foi construída em 1923. Após esse ano, não se teve mais notícia de novas obras, a não ser a reconstrução de alguns chalés que haviam sido trazidos de Uruguaiana em 1924.

Isso foi consequência da crise em que a fábrica entrou a partir de então. Assim, apesar de serem necessárias mais moradias, não foi possível realizar o projeto: “Como medida de precaução e economia, ficaram suspensas as obras adiaveis e a construcção de casas para operarios, o que deverá ser recomeçado em occasião mais opportuna” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1926, p. 3).

Como se vê dos relatórios, os operários moravam nas casas de propriedade da fábrica em troca de um valor irrisório de aluguel, bem como do compromisso de socorrer em caso de eventuais problemas que pudessem ocorrer no edifício.

Como se constata nas ações de usucapião ajuizadas na comarca do Rio Grande, o valor dos alugueis seguiu sendo cobrado pela Inca Têxtil até mais ou menos o ano de 1994. Após, os moradores continuaram residindo nos imóveis sem que o proprietário se opusesse. Esse assunto específico das locações será melhor analisado em tópico abaixo, visto se tratar do tema principal desse trabalho.

Conforme Paulitsch (2008), além da questão da moradia, o fundador da empresa também disponibilizava para seus funcionários escola, biblioteca, ambulatório médico, um pequeno centro cirúrgico, cooperativa de consumo, cassino para os mestres e banda de música e esportes.

Claro e Valle (2012) narram que havia no local uma creche para as crianças pequenas e o grupo escolar Comendador Rheingantz, localizado na frente da vila operária.

Frequentavam a escola os meninos filhos dos operários e trabalhadores da fábrica. A matrícula no grupo escolar era obrigatória a todos os pequenos operários até 1885, quando passou a ser livre, já que os pais dos meninos os tiravam da fábrica para que pudessem trabalhar em outra por turno integral, o que poderia gerar um grande desfalque de trabalhadores na empresa. Assim, o número de estudantes caiu drasticamente.

O Complexo contava também com a Sociedade de Mutualidade, localizada no casarão da Avenida Rheingantz, que servia como uma “segurança” para o trabalhador. Com esse fundo, os operários estavam servidos de ajuda com partos, remédios, ambulância, consultas médicas e odontológicas, bem como dotações para moças que se casavam com o consentimento dos pais e auxílio a enfermos, viúvas e órfãos.

“Por acto da mais elevada benemerência, foi instituido ha annos, pelo fundador desta empresa, o sr. Comendador Carlos Guilherme Rheingantz, o fundo de auxilios extraordinarios, cujos beneficios estendem-se actualmente a todos os empregados das nossas fabricas, indistinctamente, e não, como antes tão sómente aos socios da MUTUALIDADE” (SOCIEDADE COMANDATÁRIA, 1897, p. 5).

O casarão mantinha também um armazém de gêneros de primeira necessidade, além de atividades relacionadas ao lazer, como biblioteca e jogos.

Os operários contavam, ainda, com o restaurante, que servia cerca de 600 refeições diárias por um baixo custo.

Além desses cuidados com os trabalhadores, havia atenção para os filhos dos operários no sentido de descontração. Durante as festas de Natal organizadas pela União Fabril, por exemplo, eram distribuídos brinquedos às crianças por faixa etária (CLARO E VALLE, 2012).

Devido a crise que anteriormente foi narrada, não foi mais possível manter esses benefícios aos operários. Assim, ocorreu o fechamento da creche em 1962 e a desativação da Sociedade de Mutualidade em 1967, tendo sido esses os dois maiores golpes na comunidade fabril, como Ferreira (2013) percebeu de suas entrevistas com os moradores.

2. USUCAPIÃO

Neste capítulo, serão analisados os requisitos necessários para se adquirir a propriedade via ação de usucapião extraordinária e especial. Serão essas as espécies apresentadas, visto se tratarem das duas mais corriqueiras dentre as ações de usucapião propostas em face da Cia Inca Têxtil e Industrial. 

2.1 A origem do instituto

Monteiro (2012) narra que o instituto foi primeiramente regulado pela Lei das XII Tábuas. Nesse diploma, a usucapião se estendia tanto aos bens móveis, quanto aos imóveis. Era necessário a comprovação de um ano de posse para a primeira espécie e de dois anos para a segunda. Mais tarde, o prazo foi elevado para dez anos entre os ausentes e vinte anos entre os presentes, sendo que poderiam usucapir tanto as res mancipi, coisa que se transferia pelo processo de mancipação, “solenidade”, quanto as nec mancipi, coisa que se transferia sem formalismo, através da simples tradição.

Posteriormente, o seu campo de aplicação foi restringido por sucessivas leis. Assim, a Lei Atínia proibiu a usucapião de coisas furtivas para o ladrão e receptor, as Leis Júlia e Pláucia ampliaram a proibição às coisas obtidas mediante violência e a Lei Scribonia a vedou para as servidões prediais.

No início, somente o cidadão romano poderia usufruir desse direito, sendo que mais tarde foi estendido também em favor dos peregrinos.

Foi Justiniano que redefiniu inteiramente o instituto, destacando sua dupla face, aquisitiva (modo de adquirir a propriedade pela posse prolongada) e extintiva (meio pelo qual alguém se libera de uma obrigação pelo decurso do tempo).

2.2 Conceito e espécies de usucapião

Para Coelho (2012), existem três grandes formas de se adquirir a propriedade imóvel. Em primeiro lugar, pelo registro do título, que é o modo mais usual da atualidade. Em segundo lugar, através da aquisição por acessão, forma que deriva de fatores jurídicos relacionados à transformação física do bem, sendo que poderá ocorrer devido a fatores naturais ou através da ação humana. E, por fim, pela usucapião, que consiste no exercício de posse durante certo tempo, atendidas as condições previstas em lei.

Segundo José Carlos Salles (2010), usucapião é “a aquisição do domínio ou de um direito real sobre coisa alheia, mediante posse mansa e pacífica, durante o tempo estabelecido em lei” (SALLES, 2010, p. 48).

Assim, para a aquisição por usucapião, há de se preencher quatro elementos básicos: posse, tempo, animus domini e objeto hábil. Entretanto, a depender do tipo de usucapião, poderão surgir outros elementos.

Em que pese opiniões em contrário, a usucapião é modo originário de aquisição da propriedade. Isso porque, da relação jurídica decorrente da usucapião brota um direito novo, que independe de qualquer vinculação do usucapiente com o proprietário anterior, já que esse não será o transmitente do bem. A aquisição aqui é direta, de modo que o adquirente faz seu o bem possuído, sem que este seja transmitido por outrem. Basta, para isso, que seja comprovada pelo usucapiente a posse mansa e pacífica pelo tempo fixado em lei, bem como outros requisitos que possa a lei exigir.

Corroborando esse entendimento, José Ernani de Carvalho Pacheco (2011) conceitua a usucapião como uma

“[…] forma originária de aquisição da propriedade, ou de outros direitos reais e suscetíveis de apropriação material, através da posse continuada, durante certo espaço de tempo, com a observação dos requisitos em lei estabelecidos” (PACHECO, 2011, p. 13).

Também é chamada de prescrição aquisitiva, pois a prescrição possui dupla face na exata medida em que, além de ser um meio de extinção de diretos, é uma forma de os adquirir, de os criar em favor de um novo titular. Portanto, o decurso do tempo gera em favor do possuidor da coisa um direito que, paralelamente, extingue a ação do até então titular de tal direito de reaver a coisa do possuidor.

Gomes (2012), por outro lado, discorda desse entendimento, pois acredita que a usucapião é autônoma, não se tratando de uma espécie de prescrição. Explica que

“A confusão entre os dois institutos não se justifica, tais os traços que os separam. É verdade que se aproximam, mantendo ostensivos pontos de semelhança. Têm com efeito como condição o decurso do tempo, em ambos necessário à produção dos efeitos específicos. São, por conseguinte, manifestações da influência do tempo nas relações jurídicas. Objetivam dar firmeza a essas relações, eliminado a incerteza dos direitos. Interrompe-se ou se suspende o seu curso pelas mesmas causas. Mas diferenças profundas afastam-nos. A prescrição é modo de extinguir pretensões. A usucapião, um modo de adquirir a propriedade e outros direitos reais, conquanto acarrete, por via de consequência, a extinção do direito do antigo titular. A prescrição extingue as pretensões reais e pessoais, tendo largo campo de aplicação, enquanto a usucapião restringe-se aos direitos reais, dos quais é modo de aquisição. Os direitos pessoais não se adquirem por usucapião. A prescrição é negativa; como ensina Lafayette, nasce da inércia, e tem por efeito dissolver a obrigação, paralisando, destarte, o direito correlato; não gera direitos. A usucapião é positiva, ‘no seu modo de atuar predomina a força geradora; o proprietário perde o domínio porque o adquire o possuidor’” (GOMES, 2012, p. 179-80).

Em nosso ordenamento jurídico atual, existem três grandes grupos de usucapião:  a ordinária, a extraordinária e as especiais. As especiais, por sua vez, dividem-se em rural e urbanas (individual, familiar e coletiva).

A usucapião extraordinária geral, exige o decurso do prazo de quinze anos, sendo irrelevante as características específicas da posse. Assim, desde que apta a gerar usucapião, a posse poderá ser de má-fé e sem justo título. Também é irrelevante o fim que o possuidor deu ao imóvel, podendo-se dizer que é a hipótese mais simples de usucapião, destinada a consolidar em direito de propriedade a situação de fato surgida com qualquer tipo de posse.

A usucapião extraordinária abreviada é utilizada para quando o possuidor mora no imóvel ou nele realiza obras ou serviços produtivos, sendo esses os motivos de exigir o prazo de posse de apenas dez anos.

Na usucapião ordinária geral se exige que a posse ostente duas caraterísticas específicas: a boa-fé e o justo título. Assim, o possuidor deverá demonstrar a existência de um negócio jurídico na origem dessa posse. Para adquirir bem imóvel através dessa espécie de usucapião, necessário posse pelo prazo de dez anos.

A usucapião ordinária abreviada tem seu prazo de posse reduzido para cinco anos, pois exige mais dois requisitos concomitantes essenciais: a aquisição onerosa do bem, com base em registro do Registro de Imóveis que venha a ser posteriormente cancelado e, além do mais, deve o possuidor ter fixado no local a sua moradia ou feito investimentos de importância social ou econômica.

A usucapião especial de imóvel rural exige posse por cinco anos e que o imóvel seja rural, com metragem menor de 50 hectares. Além disso, o possuidor deve torná-lo produtivo pelo trabalho seu e de se sua família e não possuir outro bem imóvel, seja ele urbano ou rural.

Já a usucapião especial urbana individual também exige posse por cinco anos, que o imóvel seja urbano, de metragem de até 250 metros quadrados, que seja usado como moradia do possuidor e de sua família, e que o possuidor não seja proprietário de qualquer outro imóvel urbano ou rural.

Na usucapião especial urbana coletiva, o imóvel urbano deve medir mais de 250 metros quadrados, estando na posse de pessoas de baixa renda e sendo impossível discriminar a porção ocupada por cada família. Nesse caso, os possuidores também não poderão ser proprietários de outro bem imóvel, devendo permanecer na posse do bem por cinco anos.

E, por fim, a usucapião especial urbana familiar, que, como leciona Araújo (2013), é um desdobramento da usucapião especial urbana consumada pelo casal, exige posse direta e exclusiva por dois anos, para moradia do possuidor ou de sua família, sobre imóvel de até 250 metros quadrados, cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que tenha abandonado o lar, desde que não possua outro imóvel urbano ou rural.  

Nesse trabalho, serão apresentadas duas espécies: a usucapião extraordinária e a usucapião constitucional, visto que são as duas mais recorrentes dentre as ações propostas em face da Cia Inca Têxtil e Industrial.

2.3 Usucapião extraordinária

Previsto no artigo 1.238 do atual Código Civil (BRASIL, 2002), a usucapião extraordinária faz contraponto à usucapião ordinária, na exata medida em que não há necessidade da comprovação de justo título e nem de boa-fé por parte do usucapiente.

“Art. 1.238. Aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis”. (BRASIL, 2002, p 237. )

Dessa forma, tendo-se o referido artigo como base, pode-se afirmar que são requisitos da usucapião extraordinária posse mansa, pacífica e ininterrupta, tempo de 15 anos, objeto hábil e animus domini.

Segundo Gonçalves (2012), é a espécie mais comum e conhecida, visto que basta o animus domini, continuidade e tranquilidade da posse por 15 anos para que se configure.

2.3.1 Posse

Leciona Salles (2010) que a posse é um instituto diferente da propriedade. Da propriedade também decorre direito a posse, chamada jus possidendi. Entretanto, não necessariamente a posse decorre da propriedade, pois o direito de posse poderá decorrer simplesmente do fato de existir a posse (jus possessiones), como  é o caso da posse da usucapião. 

Para o estudo de tal instituto, necessária a análise das principais teorias que nortearam o tema: a teoria subjetiva de Savigny e a teoria objetiva de Ihering.

Para a primeira teoria, posse se conceitua como “o poder que tem a pessoa de dispor fisicamente de uma coisa, com intenção de tê-la para si e de defende-la contra a intervenção de outrem” (SALLES, 2010, p. 61).

Portanto, tem-se dois requisitos configuradores da posse: o poder físico sobre a coisa e a intenção de tê-la como sua. Os dois devem andar juntos para que exista posse, de modo que se apenas houver o animus, ocorre um mero fenômeno psíquico sem repercussão no mundo do direito e, se houver apenas o corpus, configura-se mera detenção.

Já na teoria de Ihering, para que exista posse, basta existir o corpus, visto que o animus, segundo sua concepção, é elemento implícito, que se acha no poder de fato exercido sobre a coisa. Assim, para ele, o único elemento visível e suscetível de comprovação é o corpus, que se acha vinculado ao animus de forma inseparável.

O nosso código civil adota essa última teoria, conforme se verifica da leitura do artigo 1.196:

“Art. 1.196. Considera-se possuidor todo aquele que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade”. (BRASIL, 2002, p. 234)

“A posse capaz de gerar usucapião há de ser aquela sem interrupção, nem oposição. Vale dizer, a posse há de ser contínua (sem interrupção), bem como mansa e pacífica (sem oposição)” (SALLES, 2010, p. 62)

Gonçalves (2012) explica que por posse contínua se entende aquela em que o possuidor atravessa todo o tempo sem interrupção. Ou seja, não pode possuir a coisa a intervalos, deve o possuidor conservar durante todo o tempo legal e até o ajuizamento da ação a posse do bem.

Mansa e pacífica é aquela posse sem oposição. Assim, desde que o possuidor não tenha sido molestado por quem tenha interesse durante todo o prazo estabelecido em lei, a posse será capaz de gerar direito a usucapião.

Entretanto, como bem adverte Salles (2010) essa posse, em determinado momento, pode vir a ser turbada ou esbulhada, sem que isso acarrete a perda do direito de usucapir o bem.

No caso da turbação, onde o possuidor não chega a perder o bem, não há que se falar em perda da posse. Entretanto, isso pode vir a configurar vício na pacificidade ou mansidão. Assim, quando o possuidor afasta a turbação, através de atos de defesa da posse, acaba afastando a oposição e, consequentemente, a configuração do vício capaz de quebrar a mansidão e a pacificidade.

Por outro lado, no caso do esbulho, onde o possuidor perde a posse do bem, pode restar configurado a interrupção da posse. Mas, caso o possuidor se utilize do desforço imediato ou de ação de reintegração de posse, haverá a quebra dessa interrupção, sendo esse vício também incapaz de macular a prescrição aquisitiva.

Dessa forma, em caso de esbulho, deve o possuidor procurar recuperar o bem imediatamente, ou então ingressar em juízo com a ação de reintegração de posse, para que não ocorra a interrupção. 

Portanto, quando há atividade contrária de outrem, seja ele proprietário ou terceiro, que obrigue o possuidor ao desforço ou a demandar em juízo, sendo ele vitorioso, essa atividade não é capaz de retirar o caráter manso, pacífico e ininterrupto da posse,  porque a conduta ilícita de outrem não pode prejudicar o possuidor.

Assim, pode-se concluir que para haver interrupção capaz de afastar a usucapião, é necessário ser o possuidor despojado da posse de maneira inequívoca, antes de completar o lapso de tempo necessário e sem possibilidade de recuperar a posse que foi perdida, conforme explicitado pelo artigo 1.223 do Código Civil.

“Art. 1.223. Perde-se a posse quando cessa, embora contra a vontade do possuidor, o poder sobre o bem, ao qual se refere o art. 1.196.” (BRASIL, 2002, p. 235)

Em se tratando de usucapião, portanto, pode ocorrer duas espécies de interrupção, a natural e a civil. A natural ocorre quando o possuidor esbulhado abdicar da posse ou deixar passar um ano sem intentar a ação de esbulho. Já a civil se manifesta quando o proprietário ou outro interessado promover a reivindicação antes de findo o prazo prescricional, o que ocorre com a citação inicial e mediante protesto contra o prescribente junto à autoridade competente (GONÇALVES, 2012).

Como diz Salles (2010), também há de se ressaltar que a simples inconformidade não é capaz de afastar o direito a usucapião. A oposição deve ser concreta e efetiva, visando quebrar a continuidade da posse de forma definitiva.

Ainda, vale complementar que essa oposição deve ser realizada no decurso do tempo necessário a formar o direito a usucapir o bem. Terminado o lapso de tempo, toda a oposição será inoperante, visto que esbarra no fato consumado.

Além disso, a posse capaz de gerar usucapião dever ser justa. Segundo o artigo 1.200 do Código Civil (BRASIL, 2002), posse justa é aquela não eivada de violência, clandestinidade ou precariedade.

No entendimento de Gomes (2012), posse justa é aquela cuja aquisição não repugna o direito. Assim, se foi adquirida por um dos modos admitidos na lei, será justa. Em termos mais concretos, a posse é justa quando isenta dos vícios objetivos da violência, clandestinidade e precariedade. Por consequência, posse injusta é aquela adquirida por um modo proibido, de forma a repugnar o direito por apresentar alguns dos vícios objetivos.

Posse violenta é a que se obtém pela força, através de atos materiais irresistíveis. Deve portanto, haver violência física, sob pena de não se qualificar essa espécie.

Clandestina é a que se obtém às ocultas. O possuidor se utiliza de artifícios para iludir aquele que tem a posse ou então age às escondidas.Precária, por seu turno, é a que se adquire com abuso de confiança, resultando, comumente, da retenção indevida de coisa que deve ser restituída, como é o caso de coisa alugada.

Complementando, Salles (2010) diz que

Posse violenta é a que se obtém pela força (vi), contrapondo-se, assim, à posse pacífica, mansa, tranquila, que é aquela escoimada de violência.

Clandestina (clam) é a posse gerada sub-reptícia ou ocultamente, fora das vistas de quem tenha interessa em conhecê-la. A clandestinidade que lhe é característica opõe-se à publicidade, que matiza a posse exercida diante de todos, sem encobrimentos.

Posse precária (precário) é a que decorre do abuso de confiança por parte de quem, tendo recebido a coisa com a obrigação de restituí-la, se recusa, posteriormente, a fazê-lo. (SALLES, 2012, p. 69)

Assim, em princípio, para haver posse capaz de gerar a usucapião, é necessário que seja justa, ou seja, escoimada de violência, clandestinidade ou precariedade. Entretanto, ainda que tenha sido obtida mediante violência ou clandestinidade, há possibilidade de convalescimento para o efeito de usucapião, desde o momento em que cessarem tais vícios.  Isso porque, o artigo 1.208 do Código Civil (BRASIL, 2002) diz que não induzem posse os atos de mera permissão ou tolerância, nem autorizam a sua aquisição os atos violentos e clandestinos até que não cesse essa violência ou clandestinidade. Ou seja, o termo inicial para a contagem do lapso prescricional aquisitivo será o momento da cessação dos vícios. 

Já a posse viciada de precariedade não foi excepcionada pelo legislador. Assim, ela não convalesce, sendo, portanto, incapaz de gerar direito à usucapião.

Salles (2010) dá como exemplo o caso do comodatário, depositário e locatário, dizendo que são titulares de posse direta e justa enquanto os respectivos contratos estiverem em curso. Dessa forma, findo o prazo e não restituída a coisa, a posse passará a ser precária e, como tal, injusta, sendo incapaz de gerar a usucapião.

Em contraponto a esse entendimento, Gonçalves (2012) entende que não há convalescimento dos vícios de violência e clandestinidade, já que, enquanto não findos, não existe posse, mas mera detenção. Dessa forma, não haverá convalescimento de posse, mas sim, a transmutação de detenção em posse, quando cessarem os vícios de violência e clandestinidade.

Diferentemente, na precariedade, não existe essa transmutação, visto que o possuidor passará diretamente de possuidor justo a possuidor injusto, não havendo fase transitória de detenção.

Entretanto, explica o autor que nada impede que durante o contrato o caráter da posse se modifique. Isso pode ocorrer quando o locatário, por exemplo, deixa de pagar os alugueis, repelindo o proprietário e mostrando inequivocamente a sua pretensão dominial, de forma que passe a possuir a coisa como dono.

Assim, em virtude da nova causa possessiones, a posse do locatário poderá conduzir à usucapião, iniciando-se a contagem do prazo a partir dessa inversão. Portanto, 

“Se o possuidor precário perpetrar o esbulho (se o locatário, que não tem animus domni, se negar a restituir a coisa, passando a possuí-la em nome próprio), começa a fluir o prazo de usucapião, porquanto,  a partir de então, estará ele imbuído do aludido animus (GONÇALVES, 2012, p. 282).

Por fim, a posse deverá ser pública, ou seja, exercida à vista de todos e com possibilidade de ser conhecida por todos os interessados desde o início, como adverte Pacheco (2011).

2.3.2 Lapso temporal

Para que a posse se converta em propriedade, necessário haver o fator tempo.

Esse tempo varia conforme a espécie de usucapião, sendo necessário que a posse tenha sido exercida por todo o lapso temporal de modo contínuo, não interrompido e sem impugnação.

No que tange ao decurso do tempo, contam-se os anos por dias (de die ad diem), sendo que começa a fluir no dia seguinte ao da posse. Assim, não se conta o primeiro dia, já que incompleto, mas se conta o último dia (GONÇALVES, 2012).

Dessa forma, como ensina Pacheco (2011), decorrido o tempo necessário, se dá a prescrição, adquirindo o possuidor o domínio que será declarado na ação, sendo irrelevante o fato de que, após o termino do prazo, venha o possuidor a perder a sua posse ou que deixe ela de ser posse ad usucapiones.

Segundo o artigo 1.238 do Código Civil (BRASIL, 2002) o tempo de posse necessário para originar o direito a usucapião será de 15 anos.

Entretanto, será reduzido a 10 anos caso ocorra a hipótese do parágrafo único. É a chamada posse-trabalho, também conhecida por usucapião extraordinária abreviada, que pode se corporificar na construção de uma residência ou investimento de caráter produtivo ou cultural (GONÇALVES, 2012).

Nesse caso, não se exige que tenha sido o próprio possuidor o construtor do imóvel, bastando que tenha fixado ali a sua moradia habitual, conforme explica Coelho (2012).

2.3.3 Objeto hábil

O artigo 1.238 do Código Civil (BRASIL, 2002) fala em bem imóvel, porque regula apenas a usucapião de bens imóvel, visto que há dispositivo específico que tutela a usucapião de bens móveis. Entretanto, não se pode usucapir qualquer bem imóvel, visto que deve ele ser de domínio privado, porque bem púbico não pode ser objeto de qualquer modalidade de usucapião, conforme preceitua o parágrafo terceiro do artigo 191 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), corroborado pela súmula 340 do STF (BRASIL, 1964) e o art. 2º do decreto 22.785 (BRASIL, 1933).

Além do mais, todos os outros bens que sejam juridicamente ou naturalmente inapropriáveis, bem como as coisas que se encontram fora do comércio não poderão ser usucapidas.

Diferentemente, os bens voluntariamente inalienáveis, ou seja, os que pela vontade humana sofrem restrição quanto à sua disponibilidade, podem vir a ser usucapidos. Isso porque, a inalienabilidade por si só não abrange a imprescritibilidade, até mesmo porque, na usucapião, a aquisição é originária, ou seja, não ocorre transmissão da propriedade por parte do antigo proprietário (SALLES, 2010).

Adverte Pacheco (2011) que as coisa sem proprietários (res nullis) também poderão ser objeto de usucapião, desde que satisfeitos todos os requisitos necessários à espécie.

No que tange aos bens integrantes de herança jacente, enquanto não for declarada a sua vacância, podem ser usucapidos, pois ainda são considerados particulares. Isso porque, somente quando se tornam herança vacante, ante a inexistência de herdeiros, é que serão transferidos para o Estado, Distrito Federal ou União, tornando-se, portanto, insuscetíveis de usucapião.

Deve, também, ser a coisa certa e determinada, visto que que a posse, devido a sua natureza, não pode incidir sobre coisa incerta e indeterminada.

2.3.4 O animus domini

Para que haja animus domini, o possuidor deve possuir o bem como se fosse seu, conforme preceitua o artigo 1.238 do Código Civil (BRASIL, 2002). Ou seja, deve possuir com o ânimo de dono.

Salles (2010) diz que deve haver necessariamente uma atitude psicológica de proprietário por parte do possuidor. É portanto, um elemento psíquico que se mescla com a posse, tornando-se um elemento essencial para a usucapião.

Pode, também, ser conceituada como a intenção de exercer em nome próprio o direito de propriedade. Assim, ficam afastados dessa possibilidade aqueles que exercem a posse estando em relação de dependência com o dono da coisa, ou seja, os que a exercem em nome daquele, não por poder próprio, mas como meros detentores da coisa.

Também devem ser excluídos os que exercem a posse temporariamente em decorrência de obrigação ou de direitos, como é o caso do locador e comodatário. Segundo Salles (2010), esses não podem possuir com ânimo de dono devido a causa da posse, já que não se pode mudar essa causa.

Assim, entende que esses tem o dever de devolver a coisa, sendo que tal dever não se extingue nunca.

De outra banda, entende Gonçalves (2012) que para configurar ânimo de dono, deve haver, de um lado, atitude ativa do possuidor que exerce os poderes inerentes à propriedade e de outro, atitude passiva do proprietário que, com sua omissão, colabora para que determinada situação de fato se alongue no tempo.

Assim, para haver animus domini, necessário que o possuidor possua o imóvel como seu. Dessa forma, o locatário e todos aqueles que exercem posse direta sabendo que não lhe pertence, não podem usucapir.

Entretanto, é possível que ocorra

“[…] a modificação do caráter da posse, quando, acompanhando a mudança de vontade, sobrevém uma nova causa possessiones. Assim, diz LENINE NEQUETE, ‘se o que vinha possuindo animo domini entende-se que renunciou a este ânimo a partir do reconhecimento do direito dominial de outrem, da mesma forma o que possuía como locatário, por exemplo, desde que adquira a propriedade a um non dominus, ou que tenha repelido o proprietário, deixando de pagar-lhe os aluguéis e fazendo-lhe sentir inequivocamente a sua pretensão dominial, é fora de dúvida que passou a possuir como dono’”. (GONÇALVES, 2012, p. 282)

Vale ressaltar que esses fatos de oposição não podem deixar qualquer dúvida quanto à vontade do possuidor de mudar a causa possessionis.

2.3.5 Sentença e registro

Segundo o entendimento de Salles (2010), não são requisitos para a aquisição por usucapião a sentença e o registro. Isso porque, preenchidos os requisitos de posse mansa e pacífica, bem como o tempo previsto em lei, sem interrupções, e, ainda, comprovando-se o ânimo de dono, tem-se consubstanciada a usucapião extraordinária, independentemente da sentença proferida na ação, até mesmo porque, a sentença tem cunho meramente declaratório.

No que tange ao registro, esse serve apenas para dar publicidade à aquisição originária operada pela usucapião, de forma a resguardar a boa-fé de terceiros e dar possibilidade para o usucapiente exercer o direito de disposição.

2.3.6 A questão da sucessio possessionis e da acessio possessionis

Tanto na usucapião ordinária como na usucapião extraordinária, é possível o possuidor acrescentar a sua a posse do seu antecessor, desde que as duas sejam contínuas e pacíficas, conforme explanado pelo art. 1.242 do Código Civil (BRASIL, 2002).

Nesse caso, tanto o sucessor universal, que é aquele que substitui o titular do direito na totalidade de seus bens ou em uma quota-parte, bem como o sucessor singular, que é aquele que substitui o antecessor em direitos ou coisas determinadas, podem unir sua posse à do antecessor, segundo o art. 1.207 do Código Civil (BRASIL, 2002). Entretanto, a posse continuará com os mesmo caracteres que reunia no momento da transmissão (SALLES, 2010).

No primeiro caso, trata-se do sucessio possessionis, onde o sucessor não poderá se desligar do direito de seu antecessor, de modo que recebe e continua com a posse com os mesmos vícios e virtudes que a caracterizavam antes da sucessão.

Já no segundo caso, acessio possessionis, o sucessor não está obrigado a continuar a posse do antecessor, podendo unir ou não sua posse à do precessor. Se unir, assumirá a presente posse todos os vícios e qualidades da antiga. Entretanto, caso não deseje unir, será uma posse nova que estará purgada dos vícios da antiga.

2.3.7 Causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição

Preceitua o artigo 1.244 do Código Civil (BRASIL, 2002) que se estendem ao possuidor, aplicando-se a usucapião, o disposto ao devedor acerca das causas que obstam, suspendem ou interrompem a prescrição.

No que tange às causas obstativas, também chamadas de impeditivas, que são aquelas que impedem o início da prescrição, estão reguladas nos artigos 197, 198 e 199 do Código Civil (BRASIL, 2002).

Salles (2010) comenta que apenas as causas dos artigos 197 e 198 são aplicáveis a usucapião, porque as causas previstas no artigo 199, pela sua natureza, são incompatíveis.

As causas interruptivas são as que determinam a cessação do curso da prescrição, de modo que, desaparecidas, o prazo não prossegue, mas se inicia um novo, começando a correr por inteiro. Estão previstas no artigo 202, Código Civil (BRASIL, 2002), aplicando-se a usucapião apenas as causas estabelecidas nos incisos I, II, V e VI, devido as demais serem incompatíveis com a espécie.

2.4 Usucapião constitucional

Leciona Araújo (2013) que dentre as usucapiões previstas no ordenamento brasileiro, a usucapião especial urbana se diferencia não só pelos requisitos, mas por ser um instituto jurídico inovador em relação às demais formas. Sua previsão foi inserida pela Constituição Federal de 1988 por meio do artigo 183, sendo que não existiu figura similar nas anteriores Constituições. 

Ela foi criada porque os fatos sociais não puderam mais ser evitados, o que impôs ao poder constituinte originário o dever de criar mecanismos de acesso à habitação.

Assim, pode-se afirmar que o legislador teve por objetivo atenuar os graves problemas habitacionais enfrentados pelas pessoas de poucos recursos dentro de grandes centros urbanos (PACHECO, 2011).

Prevista no Código Civil (art. 1240) (BRASIL, 2002), na Constituição Federal (art. 183) (BRASIL, 1988), e no Estatuto da Cidade (art. 9º) (BRASIL, 2001), a usucapião especial urbana, também chamada de usucapião constitucional, se assemelha à usucapião extraordinária, já que prescinde de justo título e boa-fé, mas possui outros requisitos que fazem o prazo da prescrição diminuir consideravelmente.

José Carlos de Moraes Salles (2010) acredita que foi de extrema relevância reproduzir o texto da Constituição Federal no Código Civil, visto que está mais adequadamente regulado neste diploma, já que a carta magna deve disciplinar

“[…] a estrutura básica do País no que tange à organização do Estado, aos direitos e garantias fundamentais, aos princípios fundamentais, à organização dos Poderes, à ordem econômica e financeira, à ordem social e à defesa do Estado, deixando o restante para a legislação complementar e ordinária” (SALLES, 2010, p. 158).

Assim, percebe-se que o assunto usucapião se insere mais perfeitamente no campo do direito privado, especificamente no direito civil.

Conforme se depreende dos artigos em que está prevista, tem todos os requisitos da usucapião extraordinária, acrescido da posse pessoal para moradia do prescribente ou de sua família, área urbana de até 250m² e não ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

Assim, os requisitos já comentados quando do estudo da Usucapião Extraordinária não serão repetidos nesse título. Apenas serão feitas considerações acerca dos novos requisitos.

2.4.1 Posse pessoal, para moradia do prescribente ou de sua família

A posse deverá ser pessoal, para moradia do usucapiente ou de sua família. Assim, não poderá a posse ser exercida por intermédio de preposto ou de terceiros.

Dessa forma, conforme ensinamentos de Salles (2010), o usucapiente deve necessariamente residir no imóvel, seja só, seja acompanhado de sua família, sendo o requisito moradia, portanto, indispensável. Assim, se o possuidor utilizar o imóvel para qualquer outro fim, como para fins comerciais, industriais ou de prestação de serviços, não poderá usucapir o bem por essa via. Poderá, no entanto, arguir a usucapião extraordinária ou a ordinária, desde que preenchidos os respectivos requisitos.

Também explica Gonçalves (2012) que o objetivo visado pela lei é a moradia, portanto, não poderá ser usado para usucapir apenas o terreno, sendo requisito essencial haver área construída. Além disso, entende-se que o uso para qualquer outro fim que não a moradia está proibido nessa espécie, mas não está afastada a hipótese de utilização de parte do imóvel para pequeno comércio.

2.4.2 Área de 250 m²

Salles (2010) diz que antes da promulgação do Estatuto da Cidade, muito se discutiu se a metragem prevista pelo Código Civil e pela Constituição Federal se referiam a área do terreno ou a área construída.

Entretanto, após a promulgação da lei, não há mais dúvidas sobre o assunto. No seu artigo 9ª, o Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) deixa claro que o bem que pode gerar a usucapião não poderá ultrapassar 250m² nem de área, nem de edificação. Portanto, o terreno e o prédio não poderão, cada um deles, ultrapassar a área total de 250 m².

Assim, por se tratar de lei regulamentar, ela tem o condão de esclarecer e complementar o sentido da Constituição Federal.

2.4.3 Área urbana

É mais ou menos pacífico o entendimento de que o critério a ser utilizado para conceituar uma área como urbana ou rural é o da destinação e não o da localização. Assim, mesmo que a área esteja localizada em zona rural, não sendo ela destinada para fins agrícolas ou pecuários, mas para simples moradia, será considerada urbana. Da mesma forma que se estiver localizada em centro urbano, mas for destinada para fins rurais, será considerada rural.

Entretanto, para José Carlos de Moraes Salles (2010), como o artigo que regula o assunto está dentro do capítulo denominado “Política Urbana”, a área urbana referida no dispositivo deve efetivamente estar localizada em zona urbana, não se estendendo o direito para um imóvel que tenha destinação de moradia, mas esteja localizado em zona rural. Para melhor entendimento, explica que, quando a Constituição Federal trata da usucapião constitucional rural, adota claramente o critério da localização. Assim, por coerência, entende que ambos os dispositivos devem adotar o mesmo critério.

Portanto, apenas os imóveis localizados em área urbana podem ser objeto dessa espécie de usucapião.

2.4.4 Não ser o usucapiente proprietário de outro imóvel urbano ou rural

Aquele que for proprietário de imóvel urbano ou rural não pode adquirir bem pela usucapião constitucional.

O fato de ter sido proprietário de imóvel antes da posse não obsta, entretanto, a prescrição aquisitiva, desde que na data do início da posse já não tenha mais a propriedade desse bem. Da mesma forma não impede a usucapião se adquirir um bem após já ter preenchido todos os requisitos necessários.

No que tange ao ônus dessa prova, basta uma simples afirmação do prescribente, visto que impossível juntar ao processo certidões negativas de todos os cartórios de registros de imóveis do país. Assim, caberia ao requerido comprovar, se for o caso, a existência dessa propriedade, visto que cabe a ele a comprovação de fato impeditivo do direito do autor, conforme preceituado pelo art. 333, II, Código de Processo Civil (SALLES, 2010).

2.4.6 A questão da sucessio possessionis e da acessio possessionis

Conforme entendimento de Gonçalves (2012), o parágrafo 3º do artigo 9º do Estatuto da Cidade (BRASIL, 2001) estabelece uma restrição apenas para o acessio possessionis, ao explicitar que o herdeiro legítimo continua, de pleno direito, a posse de seu antecessor, desde que já resida no imóvel quando da abertura da sucessão. Assim, a soma das posses, que não era admitida pela jurisprudência porque se tratava de forma de usucapião que tinha por fim a moradia, passou a ser reconhecida apenas para o herdeiro legítimo, o que afasta o direito de herdeiros testamentários e de outras pessoas que estejam residindo no imóvel ao tempo da abertura da sucessão.

Portanto, a acessio possessionis, ou seja, aquela proveniente do sucessor singular não se aplica nessa espécie de usucapião. Isso porque, um dos requisitos para que se perfectibilize é justamente que a posse seja pessoal desde o início. Além disso, deve ser usada para moradia durante os cinco anos, o que exclui o sucessor singular, portanto.

Já no que tange ao sucessio possessionis, explica Salles (2010)será aplicada a regra desde que o sucessor seja pessoa da família do usucapiente e, além disso, já estiver morando no imóvel junto com seu antecessor, por aplicação do referido artigo juntamente com o artigo 1.784 do Código Civil (BRASIL, 2002).

2.4.7 Direito novo

Para Salles (2010), não se pode contar tempo anterior à vigência da Constituição Federal para fins de usucapião urbano, já que não há previsão ou ressalva a respeito do assunto. Além do mais, isso prejudicaria os proprietários dos bens usucapiendos, tendo em vista que estavam embasados pelo fato de que a prescrição só se daria em prazo muito maior.

Portanto, a usucapião especial urbana só passou a vigorar a partir da data da promulgação da Constituição Federal, ou seja, 05 de outubro de 1988, sendo que é inadmissível contar, para esse fim, o tempo de posse anterior àquela data, sendo esse o entendimento majoritário.

Também é esse o entendimento de Pacheco (2011), que afirma que, doutrinariamente, prevalece o entendimento de que não se admite a contagem do prazo de posse anterior a 05 de outubro de 1988, porque antes dessa data o proprietário permanecia inerte quanto à posse, sem tomar qualquer medida para interromper a prescrição aquisitiva, e assim defender a sua propriedade, porque havia previsão legal apenas de usucapião extraordinária urbana, que possibilitava a usucapião sem que houvesse justo título e boa-fé, após o prazo de vinte anos.

3. O CASO RHEINGANTZ

Neste capítulo final, será abordada a questão da função social da propriedade, bem como a possibilidade da maudança da causa possessionis. Se demonstrará que os moradores do complexo, além de estarem atendendo a função social desses bens, causaram uma mudança da causa da posse desde o momento em que pararam de pagar pelos locatícios. Além do mais, se comprovará que a locatária corroborou para tal situação na exata medida em que não buscou reaver seus bens.

3.1  A questão da função social da propriedade

Gonçalves (2012) explicita que no século passado o caráter social da propriedade foi acentuado, sendo que acabou por impregnar o século XX com uma nova concepção de propriedade e de direito das coisas pautados na função social.

Duguit é considerado o precursor do princípio da função social, visto que difundiu a ideia de que “os direitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que o proprietário deve comportar-se e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como um funcionário” (GONÇALVES, 2012, p. 244). 

Assim, para ele, a propriedade deixa de ser direito subjetivo do indivíduo e passa a ser a função social do detentor das riquezas mobiliárias e imobiliárias, de forma que esse detentor empregue tal riqueza para o crescimento da riqueza e interdependência sociais. Ou seja, a propriedade deixa de ser um direito individual para se tornar um direito em contínua mudança que se modela conforme as necessidades sociais a que deve responder.

Nesse mesmo sentido, Loureiro (2010) ensina que as novas constituições redesenharam o direito de propriedade, que partiu de uma concepção absolutista, pautada pelo Liberalismo exacerbado de Napoleão, e se transformou em um direito que tem o dever de ser exercido em benefício não só do seu titular, mas de toda a sociedade.

O Brasil também optou por imprimir à propriedade essa visão menos egoísta. Conforme dito por Araújo (2013), a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) foi inovadora quanto à orientação de suas diretrizes, uma vez que busca delimitar uma nova ordem econômica e social. Nesse sentido, no que tange ao direito de propriedade, trouxe orientação semelhante a do direito alemão, que tutela a propriedade como direito fundamental, sendo que seu uso deve obedecer ao bem-estar geral. Essa previsão da Constituição Alemã constitui diretriz fundamental para vincular o proprietário ao bom uso do direito de propriedade, estabelecendo verdadeira hipoteca social sobre a titularidade do domínio. A nossa Constituição não contém previsão tão direta quando aquela, mas expressa a mesma visão quando feita uma leitura sistemática.

Assim, a Constituição de 1988 (BRASIL, 1988) elegeu a propriedade como um dos direito fundamentais do cidadão em seu artigo 5º, caput, reafirmando tal direito em seu inciso XXII. Entretanto, ainda no artigo 5º, XXIII restringiu tal direito ao afirmar que a propriedade atenderá a sua função social.

Também o Código Civil de 2002 em seu artigo 1.228 (BRASIL, 2002), parágrafo primeiro, dispõe que o direito de propriedade deverá ser exercido em consonância com as suas finalidades sociais e econômicas, e de modo a preservar os bens naturais, históricos e artísticos.

Portanto, depreende-se que o ordenamento jurídico brasileiro garante a propriedade como um dos direitos fundamentais do cidadão. Entretanto, atrelou a tal direito um dever, que é o de atender a sua função social. O proprietário, como senhor da coisa, pode usar, gozar, dispor e reaver a coisa, desde que esse exercício corresponda aos anseios da sociedade, tendo em vista que os reflexos do bom ou mau uso dessa propriedade irão, invariavelmente, nela refletir. Assim, a propriedade deverá ser usada em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.

A legislação prevê várias espécies de sanções pela inobservância da função social da propriedade. Assim, o poder público intervém na propriedade privada para que ela passe a atender a sua função social, como é o caso das desapropriações.

Também a usucapião pode ser vista como uma sanção, visto que o proprietário, ao deixar o bem em abandono, acaba por não exercer a função social desse bem, dando ensejo, portanto, para que o possuidor adquira essa propriedade, visto que atende a sua função, seja através da moradia, seja através do trabalho, a depender da espécie de usucapião.

Corroborando, Salles (2010) diz que o fundamento da usucapião é a função social que o imóvel deve ter. O bem deve ser usado pelo proprietário, direta ou indiretamente, de modo a gerar utilidade. Assim, ao abandonar ou se descuidar desse bem, o deixando sem uma destinação apropriada, proporciona a chance de outra pessoa se apossar dessa coisa e, sendo tal posse mansa e pacífica, por determinado tempo previsto em lei, será hábil a gerar a aquisição da propriedade por parte desse possuidor, já que interessa à sociedade a transformação e a sedimentação de tal situação de fato em situação de direito.

Assim é o caso da Rheingantz. Os moradores do complexo estão implementando o interesse social desses bens, visto que os utilizam para moradia e, alguns, até mesmo para pequenos comércios que atendem os demais moradores.

Ademais, esses bens foram planejados para atender a função social da propriedade desde seu início, visto que o fundador da empresa, Guilherme Rheingantz, construiu as casas pensando no bem-estar dos operários, de forma a beneficiar toda uma comunidade que ali se instalou, como se percebe de trecho extraído do relatório da fábrica de 1884:

“Conviria edificar junto à nova fábrica, casinhas para alugar aos operarios, para comodidade dos mesmos e segurança do estabelecimento, e ao mesmo tempo oferecendo resultados vantajosos mesmo à aluguel muito modico naturalmente garantido pelos salários.” (SOCIEDADE MANDATÁRIA, 1884, p. 8)

Conforme relatado nos processos, há mais ou menos 20 anos não há cobrança dos alugueis e os moradores, sem emprego e sem outra moradia, já que operários da empresa falida, seguiram as suas vidas nesse local.

Percebe-se, dessa forma, que o proprietário durante muito tempo não exerceu qualquer direito ou dever inerente a propriedade, deixando-a ao completo abandono, sem cobrar pelos locatícios ou fazer obras necessárias à manutenção dos bens.

De outro lado, durante todo o tempo de posse os moradores do complexo atenderam a função social dos bens, pois ali viveram com suas famílias, realizando obras de melhorias e de manutenção.

Além de que, caso não tivessem continuado nos imóveis, exercendo posse com ânimo de donos, provavelmente esses bens estariam em ruínas como hoje se encontra a fábrica.

Assim, percebe-se nitidamente que a solução mais vantajosa para a sociedade do Rio Grande é dar procedência às ações de usucapião propostas pelos moradores do complexo, de forma a colocar em prática a vontade constitucional de atenção a função social da propriedade.

3.2 O olhar dos tribunais para o caso Rheingantz: o contrato de locação e a mudança da causa possessionis

Antes de se adentrar no tema específico, cumpre salientar alguns aspectos relevantes sobre o contrato de locação.

A locação imobiliária no sistema civil antigo se baseava na preponderância da posição jurídica do locador, visto que era, na grande maioria das vezes, o proprietário da coisa e, portanto, o titular do capital. Entretanto, as modificações sociais exigiram que outra estrutura fosse concebida, visto que as relações locatícias deveriam ser entendidas à luz das normas constitucionais, ou seja, baseadas na função social da propriedade (VENOSA, 2004).

Assim, surge a Lei do Inquilinato, nº 8.245 (BRASIL, 1991), que, na visão de Coelho (2010), tem por objetivo compatibilizar a garantia de remuneração do locador e a proteção do contratante mais fraco, sendo que, por isso, é regida pelos princípios da função social do contrato e da propriedade, bem como princípio da dignidade da pessoa humana.

A locação é um contrato onde uma das partes cede temporariamente o uso e fruição de um bem infungível à outra, que, em contrapartida, obriga-se a pagar uma remuneração designada como aluguel (COELHO, 2010).

Na locação, a posse do bem se divide em duas: direta e indireta.

A posse direta é aquela confiada a quem não é proprietário, revelando-se pela detenção efetiva da coisa, cuja utilização é dada ao possuidor direto consoante o teor da convenção realizada com o proprietário, como explica Batista (2011).

No caso da locação, essa posse direta fica confiada ao locatário, que efetivamente exerce a função jurídica de possuidor da coisa locada, ainda que persista o jus possidendi do senhor da coisa, que passa a ser denominado possuidor indireto. 

Assim, percebe-se que o proprietário não perde a posse do bem, visto que essa apenas se transmuta em indireta. Além do mais, o próprio artigo 1.197 do Código Civil (BRASIL, 2002) deixa claro que a posse direta não tem o condão de anular a indireta.

Trata-se da chamada posse paralela, onde ocorre ao mesmo tempo a posse subordinada e a posse autônoma, como bem conceitua Gomes (2012):

Posse direta é a que tem o não proprietário a quem cabe o exercício de uma das faculdades do domínio, por força de obrigação, ou direito.

Posse indireta, a que o proprietário conserva quando se demite, temporariamente, de um dos direitos elementares do domínio, cedido a outrem seu exercício.

Tem posse direta os titulares de direito real na coisa alheia ou de direito pessoal que importe uso e gozo da coisa. É posse subordinada. Quem entrega a coisa ao terceiro para lhe conferir direitos dessa natureza tem posse autônoma. (GOMES, 2012, p. 56)

Para que se configure essa bipartição da posse, necessário que haja uma relação jurídica constitutiva da posse direta. Esse vínculo, via de regra, se constitui em direito real limitado, como é o caso do usufruto, ou direito pessoal, como ocorre com o comodatário e locatário. É quase sempre por meio de um contrato que nasce a posse subordinada (GOMES, 2012).

Dentre as obrigações do locatário, está a de pagar o aluguel e demais encargos. Dessa forma, no dia do vencimento, o locatário é obrigado a pagar o aluguel ao locador. Descumprindo essa obrigação, poderá o locador requerer a resolução do contrato e a retomada do bem mediante ação de despejo (COELHO, 2010).

Ou seja, como frisa Venosa (2004), por ser o pagamento de aluguel essencial à locação, o seu inadimplemento caracteriza infração legal, autorizando a rescisão e retomada da coisa, através da ação de despejo.

Assim, em um primeiro momento, pode-se afirmar que quando o locatário se nega ao cumprimento da obrigação, a sua posse, que até então era justa, passa a ser injusta, já que maculada pelo vício da precariedade.

A precariedade ocorre quando o agente se nega a devolver a coisa que lhe foi confiada findo o contrato. Assim,

“[…] se diz viciada de precariedade a posse daqueles que, tendo recebido a coisa das mãos do proprietário por um título que os obriga a restituí-la em prazo certo ou incerto, como por empréstimo ou aluguel, recusam-se injustamente a fazer a entrega, passando a possuí-la em seu próprio nome” (LAFAYETTE, apud GONÇALVES, 2012, p. 87).

A precariedade se difere dos demais vícios da posse (clandestinidade e violência) pelo momento de seu surgimento. Enquanto que aqueles se caracterizam no momento da aquisição da posse, a precariedade se origina após, já que começa a ocorrer no instante em que o possuidor direto se recusa a obedecer à ordem de restituição do bem ao possuidor indireto. Dessa forma, a posse que até então era justa, passa a ser injusta.

Como ensina Pacheco (2011), para ser capaz de gerar usucapião, a posse deverá ser justa. Justa é a posse não contrária ao direito por se achar isenta dos vícios da violência, clandestinidade e precariedade.

Assim, em uma primeira análise, pode-se afirmar que a posse que se achar viciada pela precariedade estará impedida de gerar a propriedade pela usucapião. E, por consequência, o locatário que deixa de pagar os alugueis e não devolver o bem, passa a possuí-lo injustamente, já que seu ato está viciado pela precariedade. Dessa forma, não poderá usucapir o bem.

Sob outra análise, também se pode afirmar que a posse direta que advém de um contrato de locação não pode estar qualificada pelo requisito animus domini.  Isso porque, como bem conceitua Pacheco (2011), a intenção de dono se manifesta quando o possuidor age com a firme intenção de ter a coisa para si, como se dono fosse.

Complementando, Gonçalves (2012) diz que para haver ânimo de dono, deve haver uma atitude ativa do possuidor ao exercer os poderes inerentes à propriedade e uma atitude passiva do proprietário, que, com sua omissão, colabora para que determinada situação de fato se alongue no tempo.

Assim, em uma locação vigente, o locatário, sabendo que a coisa não lhe pertence, visto que não passa de um possuidor direto, já que a posse indireta ainda se encontra com o proprietário, não tem essa intenção. E, o locador, ao exercer os seus poderes inerentes à propriedade, não dá margem para que o locatário deles se utilize.

Portanto, conforme explicita Gonçalves (2012), o possuidor direto, como é o caso do locatário, não poderá adquirir a propriedade por meio da usucapião, já que lhe falta ânimo de dono.

Resumindo, em se tratando de locação, o locatário não poderá usucapir o bem, ainda que preenchidos os elementos necessários. Em primeiro lugar, porque lhe falta o ânimo de dono enquanto o contrato estiver vigente, já que sabedor da sua situação de possuidor subordinado. E, em segundo lugar, ainda que o contrato já não estiver vigendo, devido a falta de pagamento, pela injustiça derivada pela precariedade de sua posse. 

Entretanto, explicita Gonçalves (2012) que nada impede que o caráter originário da posse se modifique. Assim, caso ocorra mudança da causa possessionis, com a inversão desse ânimo, passando a possuir o bem como se dono fosse, poderá sim adquirir a propriedade de tal bem através da ação de usucapião.

Portanto, quando o locatário deixa de pagar os alugueis, repelindo o proprietário e fazendo-lhe sentir pública e inequivocamente a sua pretensão dominial, pode-se afirmar que o caráter originário da posse se transmutou e o locatário, além de não incorrer em uma posse injusta, já que não mais eivada de precariedade, a possui com verdadeiro ânimo de dono.

Nesse caso, a partir da data que houve a suspensão do pagamento dos alugueis é que iniciará a contagem do tempo necessário para usucapir o bem, já que é a partir dela que o locatário deixa de ser um simples locatário para se tornar um possuidor a título de proprietário.

Corroborando, Araújo (2013) também afirma que não resta dúvida de que, se o possuidor direto iniciou a ocupação do bem imóvel como locatário, não poderá, no transcorrer da relação locatícia, modificar a causa da posse e sustentar que está possuindo o bem para fins de usucapião.

No entanto, explicita que a impossibilidade de convalidação do vício da precariedade está presa a uma falsa noção sobre a imutabilidade da causa possessionis. Isso porque, a causa da posse só prevalece até o momento em que não seja alterada por fato superveniente. Assim, enfatiza que

“Não resta dúvida de que uma pessoa que loca bem imóvel ou que recebe um bem para depósito não poderá surpreender o possuidor indireto com a alegação de usucapião no final do contrato. Por outro lado, o que dizer do proprietário que abandona o imóvel, deixa de receber os alugueres e permite que o locatário modifique a natureza da ocupação (residencial para comercial) e promova alterações estruturais no local? A posse precária certamente estará interrompida a partir do momento em que o primeiro ato enérgico de contestação tenha acontecido. Esta forma de construção da posse hábil para a usucapião é denominada pela doutrina estrangeira de interversão da posse (ARAÚJO, 2013, p. 190).

Inúmeras ações de usucapião foram ajuizadas pelos moradores das casas pertencentes ao complexo Rheingantz.

Esses imóveis, conforme já relatado no primeiro capítulo desse trabalho, foram construídos para que pudessem ser locados aos funcionários da empresa. Portanto, sempre foram os operários, mestres, contra-mestres e diretores que residiram nesses bens.

A fábrica saiu das mãos da família Rheingantz em 1961, quando vendida para os irmãos Abdala, teve sua falência decretada em 1969 e foi arrematada pelo grupo Loréa em 1970. O grupo ainda tentou manter a produção, mas já no final de 1980 a fábrica paralisou completamente.

Conforme notícia colhida nos processos de usucapião ajuizados na comarca do Rio Grande, por volta de 1994 a requerida deixou de efetivar a cobrança dos alugueis e, até as primeiras ações de usucapião por parte dos moradores serem ajuizadas, jamais tomou qualquer medida para a retomada desses imóveis:

“A situação em discussão não se resume a estre único processo, sendo várias as ações de usucapião tramitando neste juizado, relativa a imóveis hoje pertencentes à Inca Têxtil, e que antes eram pertencentes à empresa União Fabril, imóveis estes que estavam locados  ou cedidos a outro título para os funcionários da então empresa. Com a decretação da falência daquela empresa, houve a aquisição do referido patrimônio imobiliário pela ora contestante e, em alguns casos, a lavratura, a concretização de um contrato, a formalização de um contrato de locação, pelo qual os ocupantes daqueles imóveis passaram, então, a efetuar o pagamento do respectivo aluguel. Ocorre que, de um período para cá, mais precisamente por volta do ano de 1994, muitos dos moradores daquelas casas ali referidas pararam de pagar o aluguel, e nenhuma ação concreta foi levada a efeito pela Cia Têxtil para buscar a retomada de tais imóveis” (RIO GRANDE DO SUL. 2010, p. 156).

Em sua maioria, os requerentes ajuizaram ações de usucapião extraordinário geral, reduzida e especial urbana, visto que prescindem de justo título e de boa-fé. Assim, deveriam comprovar, respectivamente, 15, 10 ou 5 anos de posse, com todos os demais requisitos inerentes a cada espécie.

Entretanto, apesar da comprovação do tempo de posse, entendem parte dos magistrados dessa comarca, corroborados pela jurisprudência do TJ do Rio Grande do Sul, que falta aos requerentes um requisito essencial: o ânimo de dono.

Isso porque, conforme afirmam, os requeridos sempre souberam que a sua posse derivava do contrato de locação e, mesmo que não se tenha mais havido os pagamentos, a posse não deixa de estar viciada, já que o contrato continua a viger plenamente, conforme explicitado pelo trecho do acórdão a seguir:

“Com efeito, existindo contrato de locação entre as partes, o que não foi refutado pela apelante em momento algum, o seu inadimplemento não incorre em desconstituição do pacto locatício, para efeito de conferir posse com ânimo de dona como alega, continuando a figurar como locatária do pacto em comento” (RIO GRANDE DO SUL, Apelação Cível Nº 70040246902, Décima Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Angelo Maraninchi Giannakos, Julgado em 19/10/2011)  

Diversos julgados seguem a mesma linha de pensamento, de forma que o Tribunal do Rio Grande do Sul acaba entendendo de maneira dominante que não pode haver ânimo de dono por parte dos requerentes, visto que a posse deriva de um contrato de locação. E, conforme explicitado pelo artigo 1.203 do Código Civil (BRASIL, 2002), ninguém poderá mudar a causa de sua posse, que continuará tendo o mesmo caráter com que foi adquirida. Nesse sentido:

Ementa: Ação de usucapião. Bem imóvel. Ação de despejo por falta de pagamento cumulada com cobrança anteriormente ajuizada. Sentença de improcedência da ação. Posse derivada de contrato de locação. Ausência de ânimo de dono. Demonstrada a relação locatícia, justifica-se a improcedência da ação de usucapião, pela inexistência do ânimo de dono. Apelação desprovida”. (RIO GRANDE DO SUL, Apelação Cível Nº 70040881518, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 25/05/2011)

Diferentemente, outros entendem que o contrato, que era de locação, devido a inadimplência, passa a ser de comodato, o que também impede a presença do animus domni, conforme se visualiza em trecho de acórdão proferido pela vigésima Câmara Cível:

“Não obstante, a prova produzida nos autos demonstra que o proprietário do imóvel, com o passar dos anos, deixou de exigir o pagamento dos aluguéis respectivos, situação que transmudou o contrato de locação, oneroso, em contrato de comodato, gratuito, mas que também não caracteriza o animus domini.” (RIO GRANDE DO SUL, Apelação Cível Nº 70036833119, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 22/09/2010).

Assim, infelizmente, os requerentes, apesar de terem comprovado todos os requisitos necessários para usucapir os bens, acabam por ver o seu direito negado nas ações.

Entretanto, recente jurisprudência da décima oitava câmara cível traz esperança aos moradores do complexo ao dar provimento a uma das tantas ações ajuizadas:

Ementa: APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BENS IMÓVEIS). AÇÃO DE USUCAPIÃO E AÇÃO DE DESPEJO. REQUISITOS DO ART. 183 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DEVIDAMENTE DEMONSTRADOS. POSSE ORIGINÁRIA, DECORRENTE DE CONTRATO DE LOCAÇÃO, TRANSMODIFICADA, AO LONGO DO TEMPO, PARA POSSE PRÓPRIA, APTA A GERAR A AQUISIÇÃO DO IMÓVEL PELO TRANSCURSO DO TEMPO. MODIFICAÇÃO DA CAUSA POSSESSIONIS. Demonstrado que a autora é possuidora de imóvel há mais de 05 anos, ininterruptamente e sem oposição, impõe-se o julgamento de procedência da ação de usucapião. Posse decorrente de contrato de locação, que, a partir do implemento de cláusula resolutiva, ocorrido há mais de 05 anos antes do ajuizamento da ação, sofreu alteração substancial, transmudando-se de indireta para posse própria, dando início, assim, a uma nova relação possessória, apta a fazer fluir o transcurso do lapso prescricional em favor da possuidora. RECURSO DESPROVIDO. UNÂNIME”. (rio grande do sul, Apelação Cível Nº 70054217005, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 20/06/2013)

Em suas razões, o desembargador relator afirma que a posse pode vir a mudar o seu caráter. Explica que, como o requerido nunca tomou medida para reaver o bem, já que a locatária deixou de pagar os alugueis desde 1995, ocorre a extinção do contrato de locação.

Assim, desde esse momento, ocorre a alteração do caráter da posse, a qual, ante a mudança de vontade da demandante, passou a ter nova causa possessionis, decorrente não mais do contrato, mas da situação fática existente sobre o imóvel, conjugada à inércia do proprietário.

Portanto, houve transformação do caráter da posse, já que o exercício possessório da requerente se transmudou, deixando para trás a sua natureza precária e passando a ser qualificada e apta, portanto, para a contagem do prazo prescricional.

E não apenas nessa ação o caso é assim. A maioria delas são ajuizadas por ex-funcionários ou filhos deles que continuaram a viver nos imóveis após a morte de seus pais.

Inclusive, muitos deles fizeram reformas estruturais nos bens e passaram a exercer pequenos comércios dentro dessas residências, sem que o proprietário opusesse qualquer impasse.

Assim, notório o desinteresse por parte do proprietário que, atrelado à atitude ativa por parte dos possuidores, ao exercerem a posse com verdadeiro animus domini, é capaz de gerar o direito à usucapião.

Portanto, desde o momento em que o proprietário desistiu da cobrança dos alugueis, o contrato de locação deixou de ter vigência, sendo possível, a partir de tal data, contar-se os anos necessários para a prescrição aquisitiva, já que os requerentes mudaram de forma pública o ânimo dessa posse, passando a possuir o bem com ânimo de proprietários.

Considerações Finais

No estudo realizado buscou-se demonstrar a problemática envolvendo as ações de usucapião propostas pelos moradores do complexo Rheingantz.

Para tanto, foi realizada pesquisa nos relatórios anuais da empresa que se encontram na Biblioteca Riograndense, de forma a reconstruir a história da fábrica, dos seus operários e, principalmente da vila operária que se instalou nos arredores da fábrica de lã.

Constatou-se que os imóveis que formam o complexo foram construídos a mando do fundador da empresa, o Comendador Carlos Guilherme Rheingantz, para que os funcionários da empresa pudessem nelas residir, de forma a beneficiar ambos os lados: aos operários, que estavam estabelecidos em moradias salubres e perto do local de trabalho e também ao proprietário, que ficava mais seguro já que os moradores tinham o dever de vigilância do prédio.

Também se constatou que, além da moradia, os funcionários estavam servidos de outros benefícios que não eram tão comuns à época, como auxílios médicos, alimentares e financeiros.

Assim, a fábrica, desde seu surgimento, impressionou pelo método avançado de trabalho e tratamento que era concedido aos seus funcionários. Além disso, era uma empresa muito forte e sólida, pois atravessou grandes crises na história brasileira ainda conseguindo-se manter viva por várias décadas. 

Após ser vendida para os irmãos Abdala em 1961, já com grandes problemas financeiros, manteve-se atuando até 1969, quando foi decretada a sua falência. Em 1970, foi arrematada pelo grupo Loréa de Pelotas, atual proprietário, que ainda tentou manter a produção por algum tempo. Entretanto, não conseguiu se desvencilhar dos problemas econômicos causados pelas dívidas trabalhistas e indenizatórias advindas de sua falência, nem fazer frente aos produtos Uruguaios que eram mais baratos. Assim, parou a produção no final de 1980 de forma permanente.

Viu-se dos estudos que os moradores pagavam um aluguel muito módico ao proprietário, sendo que tal valor seguiu sendo pago até mais ou menos o ano de 1994. 

Desde essa data, a proprietária dos imóveis não intentou qualquer ato que pudesse mostrar, ainda que de longe, a sua posição de proprietária. Deixou os imóveis ao abandono, para que o tempo os levasse a ruína, como aconteceu com as estruturas da fábrica de lã.

Os moradores, de outro lado, permaneceram nos imóveis até os dias atuais, fizeram obras de melhoria e conservação, bem como alguns deles até implementaram pequenos comércios que atendem os demais moradores.

Devido a incerteza da condição, e passados os anos de posse necessários, os moradores começaram a ajuizar as ações de usucapião para que pudessem ter o título de propriedade. Em sua maioria, ajuizaram ações de usucapião extraordinária e constitucional, já que ambas as espécies prescindem de justo título e de boa-fé.

Nos processos analisados, os requerentes comprovaram os requisitos necessários para usucapir o bem. Entretanto, alguns deles não saíram vitoriosos, pois os magistrados entenderam que lhes faltava um requisito essencial: o animus domni.

Alegaram que, como a posse deriva de um contrato de locação, os requerentes não são aptos a usucapir os bens, já que não possuíam ânimo de dono, pois sempre souberam de sua condição de locatários. E, o fato dos alugueis não terem sido mais pagos, não retira o caráter da posse nem interrompe os efeitos do contrato, que continua vigendo normalmente.

Outros, por sua vez, entendem que, como os locatícios deixaram de ser pagos, o contrato de locação se transmutou para um contrato de comodato, o que impede também a configuração do animus domini.

Entretanto, todos esses argumentos não levam em consideração que a causa da posse pode vir a mudar o seu caráter. Isso foi comprovado através do estudo de grandes doutrinadores e juristas brasileiros no decorrer desse trabalho.

Entendem tais estudiosos que, como a requerida nunca tomou medida para reaver o bem, já que os moradores deixaram de pagar os alugueis desde 1994, ocorreu a extinção do contrato de locação.

Assim, desde esse momento, ocorreu a alteração do caráter da posse, a qual, ante a mudança de vontade dos possuidores conjugada à inércia da proprietária, passou a ter nova causa possessionis, decorrente não mais do contrato, mas da situação fática existente sobre os imóveis.

Portanto, depreende-se que houve clara e pública transformação do caráter da posse, já que o exercício possessório dos moradores se transmudou, deixando para trás a sua natureza precária e passando a ser qualificada e apta, portanto, para a contagem do prazo prescricional.

Ou seja, desde o momento em que o proprietário desistiu da cobrança dos alugueis, o contrato de locação deixou de ter vigência, sendo possível, a partir de tal data, contar-se os anos necessários para a prescrição aquisitiva, já que os requerentes mudaram de forma pública o ânimo dessa posse, passando a possuir o bem com ânimo de proprietários.

Também se levou em consideração a questão da função social da propriedade. Depreendeu-se do caso que os moradores do complexo sempre atenderam a função social desses bens, visto que ali viveram com suas famílias, realizando obras de melhorias e de manutenção, sendo que até mesmo alguns deles estabeleceram para pequenos comércios que atendem os demais moradores.

Por outro lado, viu-se que o proprietário durante muito tempo não exerceu qualquer direito ou dever inerente a propriedade, deixando-a ao completo abandono, sem cobrar pelos locatícios ou fazer obras necessárias à manutenção dos bens.

Assim, levando-se em conta que a proprietária abandonou os bens, que os moradores do complexo preenchem todos os requisitos necessários para usucapir os imóveis e que um dos fundamentos da usucapião é a função social da propriedade, concluiu-se que a solução mais vantajosa para a sociedade do Rio Grande é dar procedência às ações de usucapião, de forma a colocar em prática a vontade constitucional de atenção a função social da propriedade.

 

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Informações Sobre os Autores

Francine Lúcia Buffon Baldissarella

Bacharel em direito da FURG, membro do grupo de pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais – GPHCCRIM.

Francisco José Soller de Mattos

Advogado no Rio Grande/RS
Professor de Direito civil na Fundação Universidade Federal do Rio Grande – FURG/RS
Especialista em Direito Civil e Empresrial – INPG
Mestre em Eucação Ambiental pela FURG/RS


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