Resumo: Investiga a possibilidade da realização de um controle das políticas públicas por parte do Judiciário. Conceitua políticas públicas. Esclarece que o controle jurisdicional das políticas públicas não tem o condão de invadir as demais funções estatais. Verifica os limites para o pedido nas ações civis públicas quando estão envolvidas políticas públicas. Faz breves ponderações acerca do Código-Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América e a possibilidade de interpretação extensiva do pedido e da causa de pedir nas ações coletivas. Esclarece, por fim, que os limites da reserva do possível devem ser sopesados no momento da decisão judicial, devendo ser resolvida por um ativismo judicial cuidadoso, responsável e comprometido como a efetividade da Constituição.
Palavras-chave: Controle jurisdicional. Políticas públicas. Pedido. Ação civil pública. Reserva do possível.
Abstract: It investigates the of the accomplishment of a control of the public politics on the part of the Judiciarys. It appraises public politics. It clarifies that the jurisdictional control of the public politics does not have the force to invade the others state functions. It verifies the limits for the order in the public civil actions when they are involved public politics. It makes brief balances concerning Code-Model of Collective Process for Iberian-America and the possibility of extensive interpretation of the order and the cause of action in the class actions. It clarifies, finally, that the limits of the “reserva do possível” must be considered at the moment of the judicial decision, having to be decided by a careful, responsible and compromised “ativismo judicial” as the effectiveness of the Constitution.
Keywords: Jurisdicional control. Public politics. Order. Class actions. Reserva do Possível.
Sumário: Introdução. 1. Conceito de políticas públicas. 2. Controle jurisdicional das políticas públicas. 3. A ação civil pública como instrumento para efetivação do controle jurisdicional das políticas públicas. 3.1. Os limites do pedido na ação civil pública e os novos contornos do princípio da demanda. 4. A questão orçamentária e o limite da reserva do possível. Conclusão. Referências
Introdução
O distanciamento do pensamento positivista trouxe como conseqüência a supremacia da Constituição e o caráter vinculante dos direitos fundamentais. Desse modo, a Carta Magna passou a ser encarada como um sistema aberto de princípios, cujo especial destaque é a valorização dos direitos fundamentais.
Sob essa nova ótica, chamada de pós-positivismo, o juiz deixa de ser mero aplicador da lei, se tornando um efetivo agente político.
Quando enfrenta uma ação coletiva, o magistrado se depara com um conflito entre interesses coletivos relevantes, impondo que ele solucione a questão, pautando-se pela aplicação dos princípios constitucionais ao caso concreto.
De acordo com a visão clássica, consubstanciada no princípio da demanda, o juiz não deve julgar além do pedido das partes: ne eat judex ultra petita partium. Deste brocardo, tem-se que, diante de um conflito de interesses, o juiz ficará adstrito à dimensão apresentada pelas partes.
Com o presente trabalho, veremos que, nas tutelas coletivas, sobretudo na ação civil pública, dá-se ao juiz poderes que extrapolam as amarras do Estado Liberal. O objetivo é a efetividade do processo, de modo que, todo interesse posto em ação coletiva, uma vez qualificado como de relevância social, exige uma abordagem que objetive a verdade real, o que impõe um amplo conhecimento pelo magistrado. Desse modo, institui-se, quando necessário, um julgamento além daquilo que foi pedido pelo autor e resistido pelo réu, com vistas à satisfação de demandas dessa natureza.
Dessa forma, o artigo que ora se apresenta, revela-se de extrema atualidade e importância, pois visa demonstrar, sem qualquer pretensão de esgotar o tema e, respeitando as inúmeras posições doutrinárias e jurisprudenciais em contrário, a supremacia da Constituição e a força normativa e vinculante dos direitos fundamentais.
Para seu deslinde, tornar-se-á necessário enfrentar algumas questões, demonstrando amiúde que todos os óbices que se impõem ao supramencionado controle, podem ser superados em nome do papel que o Judiciário ocupa no Estado constitucional.
1. Conceito de políticas públicas
Estabelecer um conceito preciso do que vem a ser políticas públicas não é uma missão singela.
Há autores que reconhecem que se trata de uma expressão pleonástica, haja vista que a política é essencialmente pública. Nesse sentido é a lição de Guilherme Amorim[1]:
“A utilização da expressão política pública é redundante, verdadeiro pleonasmo, mas em cuja utilização centramos nossos esforços, tendo em vista que desejamos ao fim social que se busca alcançar, qualquer atividade identificada na Constituição Federal, como meta a ser alcançada pelos grupos de competências outorgadas, a qualificação de públicas.”
É possível perceber que se tratam de programas de ação governamental que nada tem a ver com política de governo, embora a confusão entre ambas as expressões seja bastante rotineira. Esta última guarda relação com um mandato eletivo, ao passo que a primeira, na maioria das vezes, pode ultrapassar vários mandatos.
As políticas públicas estão sujeitas a uma variedade de formas, sendo impossível uma catalogação exaustiva. Inobstante tal impossibilidade, é possível afirmar que todas são meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, confirmando assim, o ideal pós-positivista.
Segundo Valmir Pontes[2]:
“Quaisquer que sejam os programas e projetos governamentais, ou eles se ajustam aos princípios e diretrizes constitucionais ou, inexoravelmente, haverão de ser tidos como inválidos, juridicamente insubsistentes e, portanto, sujeitos ao mesmo controle jurisdicional de constitucionalidade a que se submetem as leis. Como igualmente ponderado é observar que a abstinência do governo em tornar concretos, reais, os fins e objetivos inseridos em tais princípios e diretrizes constituirá, inelutavelmente, uma forma clara de ofensa à Constituição e, consequentemente de violação de direitos subjetivos dos cidadãos.”
A concepção trazida pelo autor é sustentada pela tese do novo constitucionalismo, para quem tais políticas, sejam elas elaboradas no seio do Legislativo ou pela própria Administração, tem por escopo a concretização dos direitos fundamentais positivos.
Nesse diapasão, nos parece claro que as políticas públicas apresentam uma dupla finalidade. Por um lado, têm o condão de minorar as desigualdades sociais, preservando a dignidade da pessoa humana e garantindo a todos os cidadãos as mesmas oportunidades. De outra banda, busca-se, com as políticas públicas, a realização dos direitos previstos na constituição, vale dizer, as obrigações positivas do Estado, chamados direitos de segunda dimensão.
2. Controle jurisdicional das políticas públicas
Tarefa tormentosa e distante de uma pacificação é a temática que cuida da possibilidade do Judiciário exercer o controle das políticas públicas.
Inicialmente, cumpre destacar a relação do juiz com a lei.
Para o positivismo, haverá plena identificação entre o direito e a lei. A legitimidade do juiz se limita a dizer o direito no caso concreto, não lhe sendo franqueado decidir fora dos estritos termos da letra fria da lei.
Já na visão pós-positivista, o juiz assume um papel pró-ativo, vez que, quando provocado, tem o poder-dever de, ao aplicar a norma, interpretá-la de maneira a garantir sua máxima efetividade.
O juiz não é mais simples boca da lei, mas um qualificado intérprete da Constituição que se posiciona sempre que acionado.
Contudo, uma postura mais ativa do Judiciário implica numa possível zona de tensão entre os outros Poderes (Funções). Nesse comenos, destacamos a lapidar lição trazida pelo mestre Américo Bedê[3]:
“Não se defende, todavia, uma supremacia de qualquer uma das funções, mas a supremacia da Constituição, o que vale dizer que o Judiciário não é um mero carimbador de decisões políticas das demais funções. A eventual colisão de funções não é um argumento válido para refutar o aprimoramento da função judicial em prol da melhor aplicação possível da Constituição, posto que existem, em todas as constituições, critérios prévios para definição de soluções na hipótese de choques entre as funções, como, por exemplo, o controle de constitucionalidade.”
Ao Judiciário cabe o papel de proteger a Constituição e suas instituições democráticas, controlando os atos legislativos e executivos contrários a Carta Magna. Tais atribuições não lhe garantem uma posição de superioridade frente às demais funções, mas destacam a supremacia da Constituição frente às leis e atos administrativos.
Pelo exposto, não parece que o controle jurisdicional das políticas públicas afronta o princípio constitucional da separação das funções. Na verdade, torna-o efetivo, vez que tal controle busca garantir a implementação dos direitos constitucionais positivos.
Ademais, a própria Constituição Federal de 1988, conferiu, no seu art. 5°, XXXIV, ao Poder Judiciário ampla função jurisdicional. Senão vejamos:
XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Dessume-se que a legitimidade conferida ao Judiciário não decorre de princípio político democrático, mas do próprio texto constitucional, não devendo por isso encontrar nenhum óbice.
Importante trazer à colação a decisão do Ministro Celso de Mello[4], assim resumida:
“Ementa: Argüição de descumprimento de preceito fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do Poder Judiciário em tema de implementação de políticas públicas, quando configurada a hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao STF. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da “reserva do possível”. Necessidade de preservação em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento de preceito fundamental no processo de concretização das liberdades positivas”.
Outro argumento contrário à possibilidade de controle é o de que a Administração é autônoma, possui discricionariedade e que os juízes não sabem interpretar conceitos indeterminados.
Elucidando esse posicionamento, trazemos à colação, o seguinte julgado do STJ[5]:
“Ementa: Ação Civil Pública. Poder discricionário. Administração. Trata-se de Ação civil pública em que o Ministério Público pleiteia que a municipalidade destine um imóvel para a instalação de abrigo e elaboração de programas de proteção à criança e aos adolescentes carentes, que restou negada nas instâncias ordinárias. A Turma negou provimento ao recurso do MP, com fulcro no princípio da discricionariedade, pois a municipalidade tem liberdade de escolher onde devem ser aplicadas as verbas orçamentárias e o que deve ter prioridade, não cabendo, assim, ao Poder Judiciário intervir”.
Resta pontuar que, em razão do inafastável interesse público, não é possível dizer que as políticas públicas são atividades puramente discricionárias.
Outro aspecto relevante que se observa, ocorre quando se vislumbra omissão total do Estado na implementação de direitos fundamentais constitucionalmente assegurados.
Não é difícil nos depararmos com operadores do direito que insistem em não observar o preceito constitucional da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. Talvez por herança de um formalismo ditatorial de anos anteriores.
O fato é que tal mentalidade não mais se coaduna com a força normativa que a Constituição deve assumir. Ademais, restou expressamente consagrado no § 1° do art. 5° da Carta Magna, a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.
Desse modo, destaca Américo Bedê[6]:
“A omissão total não deixa de ser uma política pública negativa, que pode estar sendo praticada por uma minoria, a qual, maquiavelicamente, aprovou o texto constitucional consciente de que não haveria qualquer tipo de sanção pelo descumprimento da norma”.
A omissão poderá ser parcial quando se descumpre um direito fundamental, não previsto expressamente na Constituição Federal. Quando, ao contrário, o direito encontra-se previsto, ainda que de maneira meramente programática, a sua não efetivação será considerada uma omissão qualificada.
Extrai-se do art. 208, I da Constituição Federal, um exemplo clássico que ilustra bem o caso. Dispõe o dispositivo que é dever do Estado garantir o ensino fundamental obrigatório.
O município X é modelo na área desportiva, muito se investe na construção de ginásios e em atividades esportivas de um modo geral. Entretanto, mesmo não existindo no município nenhuma escola, ainda assim, seu prefeito insiste em construir mais um campo de futebol.
Como solução constitucional, caberá ao Judiciário impedir a construção do campo de futebol e determinar que, primeiramente, seja construída a escola, restando evidente que o controle realizado só visou corrigir a distorção almejada pelo governante e garantir a efetividade da Constituição.
Esclarecemos, pois, que a finalidade do controle não é invadir funções estatais, não é estirpar a idéia de discricionariedade e mérito administrativo, nem tão pouco, transformar o juiz em legislador ou administrador público. Busca-se um Judiciário comprometido com a justiça normativa constitucional, visando preservar a Constituição de políticas públicas indevidas ou de sua falta.
3- A ação civil pública como instrumento para efetivação do controle jurisdicional das políticas públicas
De acordo com o saudoso Hely Lopes Meirelles[7]:
“A ação civil pública, disciplinada pela Lei n° 7.347, de 24.7.85, é o instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infrações da ordem econômica (art. 1°), protegendo-se, assim, os interesses difusos da sociedade. Não se presta a amparar direitos individuais, nem se destina à reparação de prejuízos causados a particulares pela conduta, comissiva ou omissiva do réu”.
Dentre as ações coletivas, a ação civil pública merecerá um maior destaque no nosso trabalho, haja vista, ser ela a que mais facilmente permite que políticas públicas sejam determinadas em prol da Constituição.
Almejando sanar a insuficiência do Código de Processo Civil e, visando à resolução de conflitos transindividuais, o legislador pátrio criou mecanismos chamados microssistemas, dentre os quais se destacam a Lei da Ação Civil Pública e o Código de Defesa do Consumidor.
Mancuso[8] já anunciava na sua obra que “a ação civil pública apresenta um largo espectro social de atuação, permitindo acesso à justiça de certos interesses metaindividuais que, de outra forma, permaneceriam num certo ΄limbo jurídico`”.
Percebe-se, então, que a introdução da ação civil pública no nosso sistema processual, permitiu uma maior socialização do direito, oferecendo condições de instrumentalizar o controle de políticas públicas de modo a oferecer à Constituição densidade suficiente para a tutela de direitos transindividuais.
Gregório Assagra Almeida[9], defendendo a implantação de políticas públicas por meio da ação civil pública, sustenta que:
“A Constituição Federal não restringe o objeto material da ação civil pública (arts. 5°, XXXV e 129, III), tanto que consagra expressamente, como já mencionado, o princípio da não taxatividade da ação civil pública. Depois porque a implantação de políticas públicas, especialmente as exigidas constitucionalmente, nunca pode ser considerada como questão pertencente à seara da mera conveniência e oportunidade do administrador. A implantação de políticas públicas é dever do administrador, que se não as realizar conforme manda a Constituição e a legislação respectiva poderá ser acionado jurisdicionalmente por qualquer legitimado coletivo interessado arrolado no arts. 5° da LACP e 82 do CDC”.
Diante disso, é possível assentar que por meio das tutelas coletivas, sobretudo da ação civil pública, será concebível implantar ou corrigir políticas públicas, garantindo assim, a efetivação de direitos fundamentais e se tornando, por conseguinte, importante meio de concretização do controle jurisdicional de políticas públicas.
3.1- Os limites do pedido na ação civil pública e os novos contornos do princípio da demanda
O princípio da demanda, dogma já cristalizado no processo civil clássico, vem sofrendo algumas mitigações e assumindo novos contornos, sobretudo, dentro da sistemática das ações civis públicas.
Mesmo no âmbito das ações individuais, observamos que, no processo de investigação de paternidade, o legislador, em nome da garantia dos direitos fundamentais, admite que o magistrado conceda decisões extrapenais ou ultrapedido visando à observância de tais direitos e a efetivação da Constituição. Nesse sentido, é o disposto no art. 7° da Lei n° 8.650/1992:
“Art. 7° Sempre que na sentença de primeiro grau se reconhecer a paternidade, nela se fixarão os alimentos provisionais ou definitivos do reconhecido que deles necessite.”
Isso não quer dizer que nas ações coletivas a jurisdição irá se exercer espontaneamente. Tanto aqui, como nas ações individuais, será imprescindível a provocação da tutela jurisdicional em obediência ao disposto no art. 2° do Código de Processo Civil.
A mudança de contorno que se sugere reside, sobretudo, na maior elasticidade dada na interpretação do pedido feito na ação civil pública.
Tradicionalmente, o juiz deveria estar rigorosamente adstrito ao pedido formulado pela parte. O pedido funcionava como o máximo que se poderia obter na sentença.
Nesse diapasão, houve consagração expressa da correlação entre o pedido e a sentença, materializada no art. 128 do Código de Processo Civil, sobre o qual comentam os insignes mestres Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery[10]:
“Deve haver correlação entre o pedido e a sentença (CPC 460), sendo defeso ao juiz decidir aquém (citra ou infra petita), fora (extra petita) ou além (ultra petita) do que foi pedido, se para isto a lei exigir a iniciativa da parte. Caso decida com algum dos vícios apontados, a sentença poderá ser corrigida por embargos de declaração, se citra ou infra petita, ou por recurso de apelação, se tiver sido proferida extra ou ultra petita. Por pedido deve ser entendido o conjunto formado pela causa (ou causae) petendi e o pedido em sentido estrito. A decisão do juiz fica vinculada à causa de pedir e ao pedido.”
O princípio acima está adstrito à visão clássica e, mais comumente, às ações individuais. Na tutela coletiva o modelo é bem diverso.
Busca-se com a ação civil pública assegurar uma maior efetividade ao processo, tendo em vista a relevância social do interesse abordado nesse tipo de ação. Assim, ao magistrado devem ser conferidos poderes que ultrapassam os limites da adstrição da sentença ao pedido. Deixa de ser um mero aplicador da lei e se torna autêntico intérprete da Constituição, interferindo diretamente nas políticas públicas.
Para Alexandre Amaral Gsvronski[11]:
“É imprescindível uma ativa, crítica e compromissada participação de juízes atentos aos escopos maiores da jurisdição, mormente o da pacificação social com justiça, o da educação da sociedade e o da atuação concreta da lei, garantindo efetividade a esta.”
O juiz passa a conviver com situações que lhe impõe alto grau de discricionariedade, demonstrando, assim, uma tendência expansiva da função política dos Tribunais.
Em vários momentos o magistrado é levado a fazer uma opção político-jurídica, a propósito de qual bem jurídico ou interesse social deverá prevalecer. Não ficará, portanto, jungido ao pedido formulado pelas partes e assumirá postura ativa, podendo decidir além, aquém ou fora do pedido formulado.
Cumpre asseverar, entretanto, que a escolha da providência a ser adotada deverá ser adotada com critérios, sob pena de ser arbitrária. Nessa senda, caberá ao juiz a adoção do princípio da proporcionalidade, ou seja, a busca da providência que melhor proteja o bem jurídico coletivo.
Esta construção que vem sendo observada pelas doutrinas e jurisprudências mais vanguardistas está instrumentalizada num importante documento – o Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América – que, segundo Ada Pellegrini Grinover[12], participante da elaboração do projeto, “serve não só como repositório de princípios, mas também como modelo concreto para inspirar as reformas (…)”.
O art. 10 do Código Modelo de Processos Coletivos para Ibero-América, estabelece o seguinte:
“Art. 10. Nas ações coletivas, o pedido e a causa de pedir serão interpretados extensivamente.”
Embora o Código Modelo não tenha para nós a força de um ato normativo, em nada se torna incompatível com nosso regramento vigente, podendo ser utilizado como importante sistematizador das regras sobre ações coletivas, buscando, ao mesmo tempo, extrair uma maior efetividade de instrumentos constitucionais de direito processual.
4- A questão orçamentária e o limite da reserva do possível
Para os que se posicionam de maneira contrária à judicialização das políticas públicas, esse tema configura mais um obstáculo à possibilidade de controle.
Tradicionalmente o orçamento é compreendido como uma peça que contém apenas a previsão das receitas e a fixação das despesas para determinado período, sem preocupação com planos governamentais de desenvolvimento, tratando-se assim de mera peça contábil – financeira. Tal conceito não pode mais ser admitido, pois, a intervenção estatal na vida da sociedade aumentou de forma acentuada e com isso o planejamento das ações do Estado é imprescindível.
Hoje, o orçamento é utilizado como instrumento de planejamento da ação governamental, possuindo um aspecto dinâmico, ao contrário do orçamento tradicional já superado, que possuía caráter eminentemente estático.
Para Aliomar Baleeiro[13]:
“O orçamento público é o ato pelo qual o Poder Executivo prevê e o Poder Legislativo autoriza, por certo período de tempo, a execução das despesas destinadas ao funcionamento dos serviços públicos e outros fins adotados pela política econômica ou geral do país, assim como a arrecadação das receitas já criadas em lei.”
Os planos e programas sociais destinados à implementação de direitos fundamentais necessitam estar vinculados à elaboração e execução de leis orçamentárias.
Inevitavelmente, a implementação de tais direitos demandam elevado dispêndio financeiro. Os recursos públicos, por sua vez, são escassos. A partir desta infeliz conclusão, indaga-se: quais políticas públicas devem ser implementadas diante da impossibilidade orçamentária do cumprimento integral dos direitos sociais constitucionalmente assegurados?
Para responder a indagação, imprescindível recorrer ao argumento da reserva do possível, tema de reiteradas discussões no tocante à implementação de políticas públicas pelo Judiciário.
Segundo Ana Paula Barcellos[14]:
“A expressão reserva do possível procura identificar o fenômeno econômico da limitação dos recursos disponíveis diante das necessidades quase sempre infinitas a serem por eles supridas. No que importa ao estudo aqui empreendido, a reserva do possível aqui significa que, para além das discussões jurídicas sobre o que se pode exigir judicialmente do Estado – e, em última análise da sociedade, já que é esta que o sustenta -, é importante lembrar que há um limite de possibilidades materiais para esses direitos”.
Extrai-se do exposto, que os indivíduos não têm direito subjetivo frente ao Estado senão nos limites da razoabilidade. Esse foi o entendimento da Corte Constitucional Federal da Alemanha, conforme BverfGE (coletânea das decisões do Tribunal Constitucional Federal), nr. 33, S. 333[15]:
“Segundo o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, esses direitos a prestações positivas (Teilhaberechte) “estão sujeitos à reserva do possível no sentido daquilo que o indivíduo, de maneira racional, pode esperar da sociedade”. Essa teoria impossibilita exigências acima de um certo limite básico social; a Corte recusou a tese de que o Estado seria obrigado a criar a quantidade suficiente de vagas nas universidades públicas para atender a todos os candidatos”.
Desse modo, poder-se-ia sustentar que alguém que pudesse subsidiar seus estudos numa universidade particular, sem prejudicar o seu sustento, não poderia impor ao Estado Alemão a obrigação, pois esta não seria razoável.
A partir do exposto, Ingo Wolfgang Sarlet[16], sustenta que a reserva do possível apresenta uma dimensão tríplice, que acoberta:
“a)- a efetiva disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b)- a disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias, legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso reclama equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema constitucional federativo; c)- já na perspectiva(também) do eventual titular de um direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua razoabilidade. Todos os aspectos referidos guardam vínculo estreito entre si e com outros princípios constitucionais, exigindo, além disso, um equacionamento sistemático e constitucionalmente adequado, para que, na perspectiva do princípio da máxima eficácia e efetividade dos direitos fundamentais, possam servir, não como barreira intransponível, mas inclusive como ferramental para a garantia também dos direitos sociais de cunho prestacional”.
No Brasil, convivemos com um claro contraste: de um lado, é altíssimo o déficit de políticas públicas para o implemento de direitos fundamentais; de outro, é reduzido o orçamento, que se deve, sobretudo aos gastos advindos com pagamentos da dívida pública externa.
Diante da discrepância, será imprescindível que a destinação dos recursos orçamentários seja feita de maneira responsável, exigindo assim, como apregoado pelo ministro Celso de Mello[17], verdadeiro ativismo judicial, “notadamente na implementação concretizadora de políticas públicas definidas pela própria Constituição que são lamentavelmente descumpridas, por injustificável inércia, pelos órgãos estatais competentes”.
A Constituição é mola propulsora do Estado, é a norma fundamental que orienta a atuação do Poder Público. Enxergada dessa forma, a falta ou escassez de recursos como justificativa para a não concretização de políticas públicas constitucionalmente asseguradas merecem ser melhor investigadas.
Como falar em falta de recursos para a Educação se, no mesmo orçamento, há destinação de recursos para o custeio de publicidade com o governo? Falta, no mínimo, razoabilidade à Administração onde essa prática se observa, merecendo por isso uma eficaz atuação do Judiciário.
Por outro lado, cumpre destacar que, ainda que os recursos sejam insuficientes, as políticas públicas poderão ser iniciadas, não havendo óbice para que posteriormente se aloquem novos recursos para sua totalização.
De um modo geral, ponderados todos os pontos trazidos, percebemos que, diante de um conflito estabelecido entre a regra do orçamento público e a observância dos direitos fundamentais devem ser prevalecidos os últimos.
Com esse posicionamento, não queremos afastar a importância que deve ser dada as leis orçamentárias e ao direito financeiro. Só não podemos aceitar que o cumprimento da Constituição seja preterido pela observância de uma norma infraconstitucional, ou por um quadro político-econômico desfavorável.
Dentro desse contexto, os limites da reserva do possível são elementos que devem ser sopesados no momento da decisão judicial, devendo ser resolvida por um ativismo judicial cuidadoso, responsável e comprometido como a efetividade da Constituição.
Conclusão
Buscamos com o presente trabalho, analisar o envolvente tema do controle jurisdicional das políticas públicas, dando especial ênfase aos pedidos feitos na ação civil pública.
Tentamos destacar a existência de uma total releitura do papel da Constituição, vista não mais numa perspectiva estática, mas sim no seu caráter dinâmico e aberto.
Destacamos que a separação das funções não constitui óbice à efetivação de tal controle. Não faz que o Judiciário se sobreponha às demais funções. Ao contrário, busca-se que a Constituição se sobreponha, fazendo do magistrado seu intérprete qualificado.
Percebemos que as políticas públicas são meios necessários para a efetivação dos direitos fundamentais, pois de nada vale o reconhecimento formal de direitos diante da ausência de instrumentos para efetivá-los.
Sendo assim, a partir da força vinculante da Constituição, bem como da aplicação imediata das normas constitucionais, é possível falar em direito constitucional à efetivação da Constituição.
Defendemos uma postura mais ativa do Judiciário, visando preservar a Constituição de políticas públicas indevidas ou de sua falta.
Especial destaque foi dado à ação civil pública como forma de permitir que políticas públicas sejam determinadas em prol da Constituição.
Realçamos a mitigação ao princípio da correlação entre o pedido e a sentença para fornecer ao juiz a maleabilidade necessária para produzir uma solução materialmente adequada à lide posta em suas mãos.
Por fim, destacamos os problemas afetos à questão orçamentária e os limites da reserva do possível, que vem se concentrando como um dos principais óbices à efetivação das políticas públicas pelo Judiciário. A partir daí, notamos que se trata de um argumento que deve ser sopesado na hora da decisão judicial, visando uma forma de viabilização de uma Constituição compromissada com a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais.
Informações Sobre o Autor
Alan Saldanha Luck
Procurador do Estado de Goiás, pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP-LFG