O dever do Estado de fomentar práticas desportivas

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Primeiro, o caput do artigo 217,
verbis:

“Art.217 – É dever do Estado fomentar práticas
desportivas formais e não-formais, como direito de cada um, observados:”
(grifos meus)

O Professor Diogo de Figueiredo
Moreira Neto, conceituando a atividade de fomento, leciona: “Com os elementos
dados e seguindo a sistemática adotada, podemos conceituar fomento público como
a atividade administrativa através da qual o Estado ou seus delegados
estimularam ou incentivam a inciativa dos administrativos ou de outras entidades,
públicas e privadas, para que desempenhem ou estimulem, por seu turno,
atividades que a lei haja considerado de interesses público para o
desenvolvimento integral e harmonioso da sociedade.”[1]

O professor Álvaro Melo Filho,
esclarece que:“a expressão FOMENTO, verdadeira chave-de-abóboda do caput do
dispositivo  in examen não
foi aleatório na medida em que coincidentemente, é o MESMO vocábulo utilizado
pela vigente Constituição Espanhola (art, 43 § 3º) ao incorporar o desporto no
seu texto. A palavra FOMENTO, dentro da terminologia jurídico-administrativa
corresponde à ação de estimular, promover ou de proteger uma coisa, ou, de modo
mais genérico, a atividade de fomento é a que se encaminha para melhorar o
nível espiritual ou material da nação”[2]

Álvaro de Melo Filho, afirma que o
artigo 217 da CRFB foi omisso ao não prever, em seu texto, os órgãos estatais
que seriam obrigados a fomentar as práticas desportivas, fato este que poderia
comprometer a “eficácia e a dimensão aplicativa dos ideais desportivos.” Ouso
discordar de tal entendimento. Ora, o dispositivo é claro. Não podemos achar
que a constituição pode prevê todas as situações jurídicas, uma vez não ser o
instrumento adequado para a regulação de todas as relações jurídicas.

Admitindo, apenas por hipótese, que
a constituição previsse tais órgãos, qual seria o instrumento legal no caso de
extinção ou modificação desses órgãos? Seria por meio de emenda constitucional?[3].
Assim, podemos afirmar, que o desporto é mais um dos direitos conferidos pela
Constituição Federal aos membros da sociedade, sendo um dever do Estado – aqui
entendido pela sua acepção genérica, vale dizer, União, Estado, Distrito
Federal e Municípios – incrementar tais atividades, seja formalmente, por meio
de práticas desportivas a partir de regras nacionais e internacionais
definidas, ou, ainda, não-formal, quando então as atividades desportivas
desvinculadas de normas específicas e, profissional, sujeitando aos contratos
formais de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva ou não
profissional, atividades de lazer ou amadoras.

Inácio Nunes, sobre o tema, assim se
manifesta:“Cumpre ao Estado, diretamente ou através de incentivos, criar
condições para que a prática desportiva, formal, não-formal ou educacional,
consiga minimizar a diferenciação na formação do atleta e do cidadão. Muita
vez, é através do esporte que estará a salvação de uma juventude e de cada
jovem assim salvo pode representar a salvação de uma família, presente à
sociedade e ao país. Qualquer que seja a sua modalidade desportiva, ela será
sempre um caminho para o lado bom da sociedade na medida em se afasta o jovem
do lado mau que toda sociedade apresenta”[4]

Assim, deve o Estado fomentar
práticas desportivas, formais e não-formais, como direito de cada um, protegido
constitucionalmente. Com efeito, o legislador ao utilizar a expressão “dever”
(utilizou-a no sentido de obrigação jurídica) fez, assim, surgir o direito de
cada uma em face do Estado. Portanto, conforme esclareceu o Professor Álvaro
Melo Filho, “Nesse contexto, a obrigação do Estado de fomentar as práticas
desportivas “concede al cidadano um derecho al deporte em sentido
estrícto; aqui el cuidadano es observado directamente, y se configura de esta
maneira através Del deporte um nuevo derecho humano” (Cazorla Prieto, Deporte y
Estado, Madrid,politéia, p. 175). Por isso, o “direito de cada um” insculpido
no caput deste artigo, harmoniza-se e integra-se com o “dever do Estado” a quem
cabe garantir o direito de acesso e de permanência de cada um no processo
desportivo nacional. ”[5]

Nas palavras de José Cretella Júnior[6],
fomento de prática desportivas formais e não-formais é: “direito subjetivo
público
de cada um, assegurado constitucionalmente, bem como é dever
do Estado, fomentar práticas desportivas, quer formais, submetidas a regras,
incluindo-se as respectivas sanções, quer informais, que não obedecem a ritos
ou preceitos a priori fixados. Nos dois casos, envolvendo a saúde e o
bem-estar, físico e mental, da comunidade, ou ambas as coisas, há interesse
público em jogo, pelo que o Poder Público incentiva as práticas desportivas,
quer em clubes esportivos, ou associações, quer ao ar livre, em parques e vias
públicas para isso reservadas.”

Note-se, que o constituinte
originário, ao invés de utilizar “direito de todos”, preferiu “direito de cada
um”, possibilitando, assim, a identificação daqueles que têm o direito
subjetivo em face do Estado.

Oportuno, esclarecer, que com a
redação do caput do artigo 217, surgiram os princípios da legislação desportiva
ordinária, tornando-se, assim, a Constituição da República Federativa do Brasil
de 1988 um instrumento pedagógico quanto ao esforço evolutivo do legislador,
dando-lhe, sempre que possível, a direção-jurídica-desportiva. Registre-se, que
o dever do Estado de fomentar está previsto também na legislação
infraconstitucional. Primeiro, o legislador cumprindo a determinação contida no
inciso IX do artigo 24 da CRFB, editou a lei federal n.º 8.672, de 06 de julho
de 1993 – denominada de Lei ZICO[7]
– de cunho nacional, que instituía normas gerais sobre os desportos, e dava
outras providências. Após, regulamentou tal legislação o Decreto n.º 981, de 11
de novembro de 1993. Esta lei foi expressamente revogada pela lei federal n.º
9.615, de 24 de março de 1998 , que também trata de normas gerais sobre o
desporto e, que determinou um procedimento diferente para o repasse.

Concluindo, o fomento público deve
ser concebido como estímulo ao desenvolvimento desportivo nacional, com o único
intuito de garantir o desenvolvimento do desporto de um modo geral,
proporcionando, assim, melhores condições de vida de todos os integrantes da
sociedade reduzindo as carências, equilibrando as necessidades, tanto no
desporto nacional quanto no de alto rendimento.

A autonomia das entidades desportivas dirigentes e
associações, quanto a sua organização e funcionamento

A Constituição da República
Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988, estabelece como
conceito de grande importância a autonomia das entidades desportivas dirigentes
e associações, quanto a sua organização e funcionamento[8].

A nova carta estabelece como
princípio a ser observado pelo Estado no cumprimento de seu dever de fomentar
práticas desportivas a autonomia das entidades desportivas dirigentes e
associações. Semanticamente, é sabido que a autonomia procede de termos gregos[9],
designa a faculdade de governar por si mesmo[10].
Significa autodeterminação, isto é, a capacidade que possui determinada pessoa
ou instituição de traçar as normas de sua conduta, sem que sofra imposições
restritivas de ordem estranha.[11]

Como quer que seja, nas palavras do
Constitucionalista Luís Roberto Barroso: “autonomia é um conceito do Direito
Constitucional brasileiro, associado desde à primeira hora da República à idéia
de descentralização política…..Desde então, sempre se reconheceu que os entes
autônomos eram dotados de competências exercitáveis por direito próprio,
insuscetíveis de imposições externas”.[12]

Seu conceito geral é sempre o mesmo,
ou seja, é uma palavra com registro significativo jurídico e conteúdo semântico
próprio, entendendo-se com a capacidade ou com o poder de gerir os próprios
negócios dentro dos limites fixados pela constituição. Já o conceito específico
diz respeito ao poder de autodeterminação. Especificamente sobre as entidades
de prática desportiva, a atribuição de poder ou competência e, conseqüentemente
de autonomia, se encontra no artigo 217 já transcrito alhures. Esta autonomia,
exterioriza-se no modelo de administração própria, sem contudo discrepar das
diretrizes legais federais, não permitindo assim, sistemas de desporto
fechados, separados e com dificuldades e incompatibilidades que colocariam em
risco a vida do desporto, como um todo.[13]

Averbe-se,
que não se trata de uma simples norma definidora de uma situação jurídica.
Cuida-se, de um princípio, insculpido no artigo 217, o qual sobrepaira toda a
intervenção do Estado na área do desporto. Sobre o tema temos a lição do Administrativista e
Professor Celso Antonio Bandeira de Melo, para quem: “Princípio é, por definição,
mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição
fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e
servindo de critérios para a sua exata compreensão e inteligência, exatamente
por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere
a tônica e ‘da sentido harmônico….”

Mais adiante, conclui o mesmo mestre
antes citado: “Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma
norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um mandamento
obrigatório mas a todo o sistema de comandos.É a mais grave forma de
ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido,
porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores
fundamentais….”[14]

A autonomia, interpretada do ponto
de vista jurídico é: “a faculdade que têm algumas associações de organizar-se
juridicamente, de criar um direito próprio, direito não só reconhecido como tal
pelo Estado, mas que este incorpora a seu próprio ordenamento jurídico e
declara obrigatório como as demais leis e regulamentos.”[15]

Essa dimensão jurídica da
autonomia, no entendimento de Álvaro Melo Filho, pode ser mensurada com dois
exemplos contidos na própria constituição: o Município é autônomo na
organização político-brasileira, contudo não detém autonomia para instituir e
cobrar imposto que não lhe aprouver. A segunda , refere-se à autonomia das
Universidades, a quais não detém direito de realizarem três vestibulares por
ano.

Já no âmbito do desporto,
Professor Álvaro Melo Filho, com arrimo em CAZORLA PRIETO, afirma que :“la
autonomia Del deporte moderno no puede de manera ser absoluta. Em pimer término, porque su peso económico reclama un apoyo público,
una cuota de financiacíon importante por parte del Estado….Por otro lado, el
creciente impacto social del hecho despoetivo aconseja al /estado tomar en sus
manos la ordenación, aunque sob sea externa, de muchas de sus manifestaciones.”[16]

No presente caso, a autonomia não
é um fim em si mesma, mas meio de municiar as entidades desportivas de
instrumentos jurídicos capazes de organizar um mecanismo funcional
flexível,permitindo, assim, um eficiente alcance de seus objetivos. E o
objetivo do inciso primeiro é tornar as entidades desportivas, dirigentes e
associações, livres para organizarem suas formas e modo de funcionamento, isto
é, sem a utilização de modelos estanques, vale dizer, sem a ingerência do
Estado nas questões internas das entidades, prática essa incompatível com o
regime democrático de direito.

Portanto, podemos concluir com
arrimo na lição do Mestre José Cretella Júnior, que a autonomia confere às
entidades desportivas : “o poder de auto-organização e de competências
exclusivas, bem como a capacidade de elaborar os seus próprios estatutos ou
capacidade normativa própria nas áreas reservadas à sua competência exclusiva
ou suplementar, capacidade de auto-administração para manter e efetivar os
serviços de seus interesses e autonomia financeira para aplicação e rendas.”[17]

Por fim, diante de tudo que foi
antes escrito e transcrito, podemos concluir que a autonomia conferida pela
atual carta magna não pode ser confundida com a liberdade ou independência
absoluta, não sendo incompatível a autonomia das entidades desportivas com o
disposto no inciso IX do artigo 24, pois a União pode legislar normas gerais.

 

Notas:

[1] Curso de
Direito Adminsitrativo, Forense, RJ, 1995, pag. 408.

[2] Ob. Cit. pág. 20.

[3]
Para exemplificar a falta de técnica do constituinte originário  de 1988,
registro que a CRFB/88, em seu parágrafo 2º do artigo 42 da CRFB/88,
verbis:

“Art.242 – O princípio do Art.206,
IV
, não se aplica às instituições educacionais oficiais criadas por lei
estadual ou municipal e existentes na data da promulgação desta Constituição,
que não sejam total ou preponderantemente mantidas com recursos públicos.

§ 2º – O Colégio
Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita
federal.”

[4] Lei Pelé
comentada e comparada, Lúmen Júris, RJ, 1988, pag. 04.

[5] Ob. Cit.pág.
19.

[6] Comentários
à Constituição Brasileira de 1988. Editora Forense Universitária Vol. VII pag.
4.481.

[7] Vale
registrar crítica feita pelo Grande exponencial do Desporto, o Professor e
amigo Valed Pery afirma que as leis agora perderam os números e ganharam nomes.

[8] O Professor
e Constitucionalista Gilmar Ferreira Mendes afirma que “A Constituiçào  brasiliera previu expressamente a autonomia
das entidades desportivas. Não era preciso faze-lo, pois sabemos que a idéia de
liberdade  de associação, previstas em
todas as constituições modernas, de certa forma já  asseguraria a autonomia dessas
entidades sem grande esforço
hermenêutico. In Direito Desportivo, Editora Jurídica Mizuno 1ª Edição,
pag. 261.

[9] O Professor
Álvaro Melo Filho,  dentro do conceito
de autonomia esclarece que “autonomia é vocábulo de origem filosófica,
transitado da ciência política e depois introduzido na doutrina jurídica,e,
assumindo, nesta última, inúmeras significações, muitas das quais
contraditórias. In  Desporto
Constitucionalizado Ver. Inf.Legisl. Brasília ª26 n.º 101 jan/mar. 1999.

[10] Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira, Novo Dicionário da Língua Portuguesa.

[11] Plácido e
Silva. Vocabulário Jurídico.

[12] Ob.citada.

[13] “A
autonomia , portanto,  não apenas
comporta, como antes pressupõe  a
existência de determinados limites. Quem tem competência para conceder  autonomia, tem competência para traçar-lhes
parâmetros. Se é a Constituição que confere autonomia, pode Lea definir o seu
alcance. Se é a lei ordinária que a confere, pode igualmente demarca-lhe  uma esfera própria. O que  todavia não
pode ocorrer é a lei ordinária impor limites  `autonomia outorgada pela Constituição”. Prof.Luís R. Barroso,
ob. Cit.

[14] Elementos
de Direito Administrativo, 1986,  pag.
230.

[15] ZANOBINI
Texto retirado do artigo  Desporto
Constitucionalizado Ver. Inf.Legisl. Brasília ª26 n.º 101 jan/mar. 1999 de
autoria do Professor Álvaro Melo Filho.

[16] In  Desporto Constitucionalizado Ver.
Inf.Legisl. Brasília ª26 n.º 101 jan/mar. 1999.

[17] Ob. Cit.
pag. 183.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Rogério José Pereira Derbly

 

Advogado; Ex-Assessor Jurídico das Secretarias Municipais de Urbanismo e Meio Ambiente do Município do Rio de Janeiro 1995-2001