O devido processo legal no direito administrativo brasileiro

Resumo: Objetiva-se com o presente trabalho analisar o devido processo legal no direito administrativo brasileiro, considerando que a observância desse princípio é uma forma de preservar o Estado Democrático de Direito.


Palavras-chave: Devido processo legal. Direito administrativo.


Sumário. 1. Introdução. 2. Finalidade do processo administrativo. 3. O Devido processo legal como princípio norteador do processo administrativo sancionador. 3.1. Princípio do contraditório e da ampla defesa. 3.2. Princípio da tipicidade 3.3 Princípio da presunção de inocência 3.4 Princípio da motivação das decisões. 3.5 Princípio da prescrição. 4 Importância do devido processo legal no direito administrativo. 5. Conclusão. Bibliografia.


1. INTRODUÇÃO


O princípio do devido processo legal no direito administrativo brasileiro é de fundamental importância para caracterizar o desenvolvimento válido e regular do processo. Porém, paira a dúvida se há determinadas situações que a ausência desse princípio não afetaria a regularidade processual.


O presente trabalho irá averiguar quais os momentos que a observância do devido processo legal é imprescindível para garantir o Estado Democrático de Direito.


2. FINALIDADE DO PROCESSO ADMINISTRATIVO


A razão de existir dos pilares que fundamentam o direito administrativo busca, em última análise, atender ao interesse público. Com relação ao processo administrativo não poderia ser diferente, a utilidade pública atrelada ao interesse indisponível do Estado fazem parte da finalidade do processo administrativo. O interesse público deve estar sempre na mente do Administrador ainda que se trate de procedimentos menos complexos, aparentemente deferidos de plano.


Em se tratando de processo em que um interesse particular confronta com o interesse público, a Administração Pública, valendo-se de instrumentos que norteiam o processo, posicionar-se-á sobre o direito do particular e ao mesmo tempo cumprirá sua função de zelar pelos direitos da coletividade.


Como ressalta Maria Sylvia Zanella Di Pietro a Administração Pública sobre o aspecto objetivo tem por finalidade executar a vontade do Estado que se encontra expressa na lei.[1]


3. O DEVIDO PROCESSO LEGAL COMO PRINCÍPIO NORTEADOR DO PROCESSO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR


Consoante destaca Odete Medauar, o “perfil constitucional da constituição” é bastante significativo no tratamento dos institutos do direito administrativo, especialmente para se fazer uma releitura dos posicionamentos do passado. Assim, faz-se necessária a leitura de toda a Constituição para caracterizar a Administração Pública na atualidade. [2]


A Constituição da República, ao dispor sobre a Administração Pública e fixar os parâmetros de sua atuação, indica os princípios que deverão nortear o processo administrativo. De forma explícita, a Constituição estabelece em seu art. 5º LIV: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. O princípio do devido processo legal refere-se a todo processo. Portanto, também diz respeito ao processo administrativo sancionador. Nesse caso, torna-se imprescindível a presença do devido processo legal, até porque este princípio por ser o mais completo e estar relacionado aos demais princípios processuais não pode deixar de merecer uma atenção especial do Administrador.


Preceitua Lucas Rocha Furtado que o processo administrativo deve estar pautado de legalidade, moralidade, impessoalidade, razoabilidade, publicidade, eficiência, moralidade dentre outros.[3]


Quando se fala no devido processo legal, como sugere a própria expressão, estamos diante de uma série de princípios e normas legais e constitucionais que deverão ser aplicadas no processo para ao final alcançar um resultado amparado pela Constituição.


O Superior Tribunal de Justiça entende como conexos ao devido processo legal o princípio do contraditório e da ampla defesa, no sentido de que esses dois princípios também encontram amparo constitucional no art. 5º LIV.[4]


O devido processo legal não só engloba o princípio do contraditório e da ampla defesa, como também está atrelado a alguns princípios do processo administrativo sancionador, dentre os principais destaca-se: o princípio da tipicidade; princípio da presunção de inocência; princípio da motivação das decisões e o princípio da prescrição.


3.1. Princípio do contraditório e da ampla defesa


Já dizia o mestre Celso Antônio Bandeira de Mello: sempre que a providência administrativa a ser tomada houver controvérsia ou especialmente implicar em sanções, torna-se obrigatória a aplicação do art. 5º LV da Constituição da Republica que “garante aos litigantes em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral” o contraditório e a ampla defesa.[5]


A Lei 9.784/99 contempla a ampla defesa ao dispor sobre a garantia dos direitos à comunicação, produção de provas, apresentação de razões finais e interposição de recursos.


A característica principal do contraditório e da ampla defesa consiste no direito do interessado acessar todas as informações que integram os autos do processo administrativo, a fim de se defender, manifestando seu ponto de vista, produzindo provas e, se for o caso, exercendo o direito de ficar em silêncio. Como ressalta Odete Medauar[6] é a possibilidade de defesa que garante o contraditório.


Também decorrem da ampla defesa o direito de interpor recurso administrativo e o direito a defesa técnica. Acerca desses direitos, vale citar entendimento do STF que, no tocante ao primeiro, considerou inconstitucional o seu condicionamento ao depósito prévio.[7] Por outro lado, relativamente a defesa técnica no processo administrativo disciplinar, a Suprema Corte em 2008 editou a súmula vinculante nº 5 estabelecendo que “ A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição.


Talvez esse último posicionamento decorra do fato de ser inviável na atualidade a indicação de advogado dativo para aqueles que não possam arcar com os gastos relativos a este patrocínio. Infelizmente, algumas decisões acabam por reduzir a extensão que a Constituição de 1988 proporcionou na evolução dos direitos.


3.2. Princípio da tipicidade


A tipicidade definida por Eduardo Rocha Dias implica dizer que as infrações administrativas devem corresponder a um grau mínimo de precisão, de forma que o administrado possa mensurar os comportamentos sancionáveis, bem como as sanções que estarão sujeitos.[8]


Não se deve olvidar que, em se tratando de regime de sujeição especial, embora a lei tipifique as infrações e estabeleça as sanções como acontece com o regime estatutário do servidor público, há situações que pode a lei utiliza-se de conceitos indeterminados, permitindo a Administração Pública interpretar e especificar o sentido da norma.


Por outro lado, seja no regime de sujeição geral ou no regime de sujeição especial, deve ser respeitado o princípio da anterioridade e é sempre bom que a norma tipificadora descreva a conduta proibida e a respectiva sanção, de forma bem elucidativa, a fim de evitar dúvidas entre os administrados acerca da infração e respectiva sanção.


3.3. Princípio da presunção de inocência


A presunção de inocência é uma garantia de imperiosa apreciação no processo sancionador, pois objetiva impedir atuações arbitrárias do Estado.


Esse princípio tem origem implícita no dispositivo Constitucional, art. 5º, LVII, da Constituição da República que determina que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.


Na esfera administrativa, esse princípio pode gerar dúvidas no momento de sua aplicação. Por exemplo, como resolver o impasse relativo às multas de trânsito que também gozam de presunção de veracidade? Outra situação embaraçosa diz respeito à aplicação das medidas cautelares na esfera administrativa.


Segundo Fábio Medina Osório, a presunção de inocência, no âmbito administrativo, deve ser aplicada com critérios de razoabilidade, dentro de um meio equilibrado de distribuição do ônus probatório, considerando sempre as peculiaridades do caso concreto, a realidade social diante dos avanços tecnológicos.[9]


No tocante as medidas cautelares, vale lembrar que há algumas situações que demandam urgência no atendimento do interesse público. Nesses casos é necessária a aplicação de medidas acautelatórias, em que o devido processo legal é postergado para se evitar que a medida se torne inócua. Não se trata de suprimir o contraditório e a ampla defesa, mas tão somente garanti-los em momento posterior, como nos casos de arrolamento de bens de sujeito passivo de crédito tributário[10].


A medida acautelatória é preventiva e somente poderá ser convertida em sanção administrativa se ficar comprovado que o acusado cometeu a infração administrativa, devidamente apurada em processo administrativo em que seja assegurado o contraditório e ampla defesa.


Certo é que a interpretação do princípio da presunção de inocência que se faz em se tratando de regime de sujeição geral aproxima-se mais daquela feita no campo penal. Segundo Fábio Medina Osório, é sempre importante diferenciar as situações em que o infrator está submetido a “especiais relações de sujeição com o Estado e quando assim não ocorre. O alcance das medidas cautelares é muito maior na primeira hipótese.”[11]


3.4. Princípio da motivação das decisões


O princípio da motivação decorre do art. 5º, LIV e LV, da Constituição da República, sendo ele indistintamente aplicável nas decisões administrativas e judiciárias. No plano da legalidade, a ausência de motivação implica em nulidade. Aliás, é a motivação que possibilita o Judiciário desempenhar sua função controladora. Por isso, embora não haja forma sacramental para a motivação administrativa, é importante que de alguma forma ela fique documentada.


3.5. Princípio da prescrição


Prescrição, segundo Elody Nassar, “é a extinção da iniciativa de punir” e resulta da inércia do Poder Público apurar a infração ou executar a sanção.[12] A prescrição administrativa, embora se relacione ao devido processo legal, não é matéria processual, mas de direito administrativo que deve ser regulada pelas entidades políticas, ressalvada a competência da União.


A maioria da doutrina, a exemplo de Diógenes Gasparini, posiciona-se no sentido de que, quando a lei é silente, a prescrição ocorre em 5 anos, nos termos do Decreto 20.910/32[13].


4. IMPORTÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL NO DIREITO ADMINISTRATIVO


De nada adiantaria a Constituição possibilitar ao cidadão uma serie de direitos se não estabelecesse mecanismos para torná-los viáveis. O devido processo legal garante a realização dos direitos constitucional da liberdade e da igualdade ao possibilitar a tramitação regular do processo.


A Lei n. 9.784/1999, ao estabelecer as normas gerais sobre processo administrativo no âmbito da Administração Pública Federal, concebeu a expressão “processo administrativo” no amplo sentido, contemplando tanto o “processo administrativo litigioso” como o “processo administrativo de simples expedientes”. O art. 5º da referida Lei declara que: “o processo administrativo pode iniciar-se de ofício ou a pedido de interessado”. Mister render-se ao Magistério de Célio Rodrigues da Cruz para quem o pedido do interessado nem sempre traduz uma controvérsia, tendo em vista que pode ser apenas um requerimento inicial, pleiteando pela primeira vez um direito subjetivo, que poderá ser deferido pela Administração, sem qualquer resistência. Nesse caso, o processo administrativo é regido pelos princípios do Direito Administrativo.[14]


Por outro lado, quando o processo é litigioso ou implique em sanção administrativa, além dos princípios do Direito Administrativo, serão também aplicadas as garantias constitucionais e processuais que correspondem ao devido processo legal, ampla defesa e contraditório. Daí a relevância de se diferenciar a fase litigiosa e a fase que não encerra qualquer controvérsia jurídica.


Hely Lopes Meirelles[15] faz uma “distinção entre processo administrativo propriamente dito (aquele que encerra um litígio entre a Administração e o administrado ou o servidor) e processo administrativo impropriamente dito”.


Assim, em se tratando de processo administrativo propriamente dito a observância do devido processo legal é indispensável, na medida em que é este princípio que irá garantir os principais pilares da Constituição da República: liberdade e igualdade.


5. CONCLUSÃO


Com a Constituição da República foi garantido e instrumentalizado o direito do devido processo legal e este tem um papel especial a ser desempenhado no processo administrativo sancionador, pois representa os pilares do Estado Democrático de Direito: igualdade e liberdade.  Correlatos a este princípio existem outros, especialmente o contraditório e a ampla defesa.


O exercício do poder disciplinar, independente da gravidade da sanção a ser aplicada e deve estar pautado no princípio do contraditório e da ampla defesa, o qual veda a aplicação de penalidades sumárias. Dessa forma, já se encontra superada a imposição de pena em virtude da “verdade sabida”. A exceção a regra diz respeito às medidas acautelatórias de urgência em que o contraditório e a ampla defesa poderão ser postergados para um segundo momento, desde que a aplicação dessa medida não implique na irreversibilidade da mesma.


 


Bibliografia

CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo, 18ª edição, revista, ampliada e atualizada até 30.06.2007.  Lumen Juris Editora.

CRUZ , Célio Rodrigues da. Direito Administrativo Sancionador. Unidade I. Disponível em www.cead.unb.br/agu, Acesso em 17 de agosto de 2009.

DIAS, Eduardo Rocha. Sanções administrativas aplicáveis a licitantes e contratados. São Paulo. Dialética, 1997.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007.

FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. 7ª ed. rev. e amp., São Paulo: Malheiros Editores, 2004.

FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito Administrativo. Belo Horizonte. Fórum, 2007.

GASPARINI, Diógenes. Direito Administrativo. 3ª ed., São Paulo: Saraiva, 1993.

MEDAUAR, Odete. A processualidade no direito administrativo. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 32. ed. São Paulo:Malheiros, 2006.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo Brasileiro. 15.ed. São Paulo: Malheiros, 2002.

NASSAR, Elody. Prescrição na Administração Pública. 1ª Edição, 2ª Tiragem. São Paulo: Saraiva, 2006.

OSÓRIO. Fábio Medina. Direito Administrativo Sancionador, 2ª edição revista e atualizada e ampliada. São Paulo. Revista dos Tribunais, 2005

REPOSITÓRIO JURISPRUDENCIAL

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. http://www.stj.gov.br/SCON/.


 

Notas:

[1] DI PIETRO, 2007, p. 51.

[2] MEDAUAR, 2008, p 76.

[3] FURTADO,2007, p. 1203.

[4] Ver REsp 159148/RJ (STJ, 1998, p.182).

[5] MELLO,2002. p. 466.

[6] MEDAUAR , 2008, p 109.

[7] Ver ADIN 1976/DF (STF ,2007, 32-53).

[8] DIAS, 1997, p.39.

[9] OSÓRIO, 2005,p. 488.

[10] Vide REsp 714809 SC 2005/0001475-6 (STJ, 2007, p 347).

[11] OSÓRIO, 2005,p. 516.

[12] NASSAR, 2006, p. 35.

[13]GASPARINI, 1993, p.556.

[14] CRUZ , 2009 , p. 8.

[15] CRUZ , 2009 ,p, 9.


Informações Sobre o Autor

Leidiane Mara Meira Jardim

Advogada da União em Minas Gerais- Pós-graduanda em Direito Público pelo CEAD/UNB


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