O direito à existência material mínima como possível resposta para as demandas sociais

Resumo: Existem inúmeras e infindáveis formas, possibilidades e fórmulas já escritas buscando soluções para o problema da desigualdade social, com o objetivo atender demandas sociais e fazendo com que estas sejam “perfectibilizadas” e alcançadas de “forma plena”, ou, ao menos, as necessidades mais prementes e básicas. É necessário, para tal escopo, que garantias mínimas sejam respeitadas, que condições mínimas sejam ofertadas para a população e que estas tenham o condão de oportunizar o reconhecimento da cidadania e da condição humana para todos os membros da sociedade. O presente artigo tem por objetivo incitar o pensamento para a simplicidade de tal raciocínio, elucidando, para tanto, o direito à existência material mínima, dentro do rol das garantias fundamentais elencadas na Carta Magna pátria e, ainda, demonstrar de forma singela, o alcance mínimo de tal direito para que cumpra seu objetivo, dentro da Teoria das Necessidade Humanas de Maslow 1970 e sua releitura por Paula 1993.


Palavras-Chave: Dignidade da Pessoa Humana, Direitos Fundamentais, Políticas Públicas; Demandas Sociais; Cidadania.


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Sumário: 1. Necessidades fundamentais, demandas sociais e sociedade, 2. Políticas públicas, 3. Dignidade da pessoa humana a partir de princípios constitucionais, 4. O problema brasileiro, 5. O direito a existência material mínima


1. necessidades fundamentais, demandas sociais e sociedade.


A vida é pré-requisito para a existência de um ser, entre eles o ser humano. Tudo aquilo que esse ser humano adquiriu em suas condições sociais, tanto material como imaterial, faz parte de sua trajetória sócio-histórica enquanto membro de uma sociedade, pois, é através dela que passamos a nos identificar como pessoas e alcançar as necessidades, em toda a sua complexa gama de variações, buscando satisfazermo-nos. Diante a tal intróito, posteriormente a alguns comentários iniciais, trar-se-á à baila deste uma parcela da teoria das necessidades humanas de Abraham H. Maslow (1970), retratada por McGregor (1970)[1], a qual trabalha com cinco níveis de necessidades, das mais básicas às menos necessárias.


“Necessidades Fisiológicas: o homem é um animal dotado de necessidades; assim que uma de suas necessidades é satisfeita [e mesmo quando não é satisfeita], surge outra em seu lugar [ou ao seu lado].  Esse processo não tem fim: é contínuo [embora não linear], desde o nascimento até a morte. No nível mais baixo, mas de grande importância quando não satisfeitas, estão as necessidades fisiológicas. O homem só busca o pão quando não há pão.  A menos que as circunstâncias sejam especiais, suas necessidades de amor, ‘status’ e reconhecimento são inoperantes quando seu estômago está vazio há certo tempo. Mas quando ele come regularmente e de maneira adequada, a fome cessa de ser motivação importante. O mesmo ocorre em relação às outras necessidades fisiológicas do homem: de descanso, exercício, abrigo, proteção contra intempéries, etc.


Necessidades de Segurança: quando as necessidades fisiológicas estão razoavelmente satisfeitas, as necessidades localizadas no nível imediatamente superior começam a dominar o comportamento do homem; começam a motivá-lo. Essas são as chamadas necessidades de segurança.  São necessidades de proteção contra o perigo, a ameaça, a privação. Algumas pessoas erroneamente se referem a elas como necessidade de proteção.  Entretanto, a menos que a pessoa esteja numa relação de dependência em que há uma privação arbitrária, ela não procura proteção. Há necessidade de ter oportunidade mais justa possível. Quando a pessoa confia nessa oportunidade, está mais do que disposta a correr riscos. Mas quando se sente ameaçada ou dependente, sua necessidade é de garantia de proteção.


Necessidades sociais: quando as necessidades fisiológicas do homem estão satisfeitas e ele não está mais temeroso a respeito do seu bem-estar físico, suas necessidades sociais tornam-se importante fator de motivação de seu comportamento; necessidades de participação, de associação, de aceitação por parte dos companheiros, de troca de amizade e afeto vêm à tona.


Necessidades do ego: acima das necessidades sociais – aquelas que não motivam até que necessidades de nível mais baixo estejam razoavelmente satisfeitas – estão outras da maior importância para a administração e para o próprio homem.  São as necessidades do ego, as quais pertencem às duas classes: (a) necessidades relacionadas com o amor-próprio: autoconfiança, realização, competência, conhecimento, independência; (b) necessidades relacionadas com a própria reputação: ‘status’, reconhecimento, aprovação, respeito. Diversamente do que ocorre com as de nível mais baixo, essas necessidades são raramente satisfeitas: o homem procura indefinidamente mais satisfação dessas necessidades, assim que se tornam importantes para ele.  Mas elas não surgem de maneira significativa até que as necessidades fisiológicas, sociais e de segurança estejam razoavelmente satisfeitas.


Necessidade de auto-realização: finalmente – na hierarquia das necessidades humanas – há o que podemos chamar de necessidades de auto-realização.  Essas são as necessidades de cada um realizar o seu próprio potencial, de estar em contínuo autodesenvolvimento, de ser criador no sentido mais alto do termo. Está claro que as condições da vida moderna dão apenas oportunidades limitadas para que essas necessidades, relativamente fracas, obtenham expressão. A privação que a maioria das pessoas experimenta com respeito a necessidades de nível inferior desvia suas energias para a luta pela satisfação daquelas necessidades.”


Ainda, com o intuito de mais bem elucidar nosso pensamento sobre as necessidades humanas básicas, apresenta-se o pensar de Paula (1993) [2]. Para este autor, necessidades humanas “[…] são conjuntos de entes do ser humano cujas funções podem ser representadas pela busca do necessário. As necessidades são identificáveis em qualquer estado em que o indivíduo se encontre […] Necessidade é o caráter do que é necessário, sendo necessidade um vetor, qualquer ponto do espaço pode ser considerado como o necessário. Necessidade é um vetor orientado no sentido e na direção do necessário e representa a busca do necessário” (p.101)


diante de tais afirmações, passa-se a depreender melhor o sentido dado às necessidades humanas, e, de outra sorte, começa-se a depreender a diferenciação entre tais necessidades e demanda social, tendo em vista o conceito exprimido por Lévy (2001)[3]:


“Demanda enuncia que todo acontecimento psíquico é eco de acontecimentos sociais. Por seu caráter dual, demanda situa-se em dois registros: o da necessidade – no sentido econômico equivale à noção de encomenda – e o do desejo – expressão de uma falta que não pode ser suprimida por objetos. É neste espaço virtual entre o apelo de satisfação e a demanda de amor que o desejo tem lugar e se organiza. Nesse sentido, a demanda sempre ultrapassa qualquer resposta que esteja no nível da satisfação e, em última instância, só tem sentido na relação: ela é endereçada e precisa ser escutada e interpretada. O caráter relacional da demanda faz com que ela adquira sentido, privilegiadamente, em situações de interação coletiva onde pode ser “mobilizada, transformada em ato, compreendida e interpretada.” (p.84)


Diante deste conceito pode-se diferenciar enquanto categorias analíticas, e como tentativa objetivante, as necessidades humanas e a demanda social. A primeira diz respeito à busca do ser humano para preencher suas lacunas, com o objetivo de estabilizar-se e complementar-se, dentro de seus anseios. A segunda diz respeito ao contexto de acontecimentos sociais e das contingências da sociedade, frente às suas mais diferentes necessidades e enquanto ente membro de um Estado. Buscando facilitar a compreensão, traz-se a conceituação de sociedade, nos mais diversos meios. Segundo a Enciclopédia Livre Wikipédia[4]·:


“Em Sociologia, uma sociedade é o conjunto de pessoas que compartilham propósitos, preocupações e costumes, e que interagem entre si constituindo uma comunidade. A sociedade é o objeto de estudo das ciências sociais, especialmente da Sociologia. Uma sociedade é um grupo de indivíduos que formam um sistema semi-aberto [ aberto e fechado ao mesmo tempo], no qual a maior parte das interações [e inter-relações] é feita com outros indivíduos pertencentes ao mesmo grupo. Uma sociedade é uma rede de relacionamentos entre pessoas. Uma sociedade é uma comunidade interdependente. O significado geral de sociedade refere-se simplesmente a um grupo de pessoas vivendo juntas numa comunidade organizada. A origem da palavra sociedade vem do latim societas, uma “associação amistosa com outros”. Societas é derivado de socius, que significa “companheiro”, e assim o significado de sociedade é intimamente relacionado àquilo que é social. Está implícito no significado de sociedade que seus membros compartilham interesse ou preocupação mútuas sobre um objetivo comum. Como tal, sociedade é muitas vezes usado como sinônimo para o coletivo de cidadãos de um país governados por instituições nacionais que lidam com o bem-estar cívico.”


Segundo o Dicionário de Sociologia[5]:


“Sociedade é um tipo especial de sistema social que, como todos os sitemas sociais distingue-se por suas características culturais e demograficas/ecologicas. Especificamente, é um sistema definido por um território geográfico (que poderá ou não coincidir com as fronteiras da NAÇÃO-ESTADO), dentro do qual uma população compartilha de uma cultura e estilo de vida comuns, em condições de autonomia, independencia e auto-sufuciência relativas. […] Sociedade é um conceito fundamental em sociologia porque é nesse nível que são criados e organizados os elementos mais importantes da vida social…”


Ainda, segundo Lalande[6]:


“No sentido mais amplo: conjunto de indivíduos entre os quais existem relações organizadas e serviços recíprocos. […] Num sentido mais estrito: conjunto de indivíduos cujas relações estão consolidadas em instituições e mesmo quase sempre garantidas pela existência de sanções, quer codificadas, quer difusas, que fazem com quem o indivíduo sinta a ação e o constrangimento da coletividade. […] Grupo humano (família, tribo, cidade, nação, etc.) concebido como uma realidade destinta. “Se a idéia de sociedade é ainda uma abstração, isso acontece sobretudo em virtude do antigo regime filosófico, visto que, para falar a verdade, é ao indivíduo que esta característica pertence, pelo menos na nossa espécie” (Augusto Comte, Discurso sobre o espirito positivo).


Portanto, a sociedade atua sobre as formações sociais que atuam sobre os indivíduos e que o condicionam como um ser social. Ao mesmo tempo, a condição biológica do ser humano impele à sociedade aquelas necessidades que são condizentes com a preservação da vida enquanto algo que pertence a cada indivíduo enquanto ser. Assim, sociedade – estruturas sociais – e indivíduos – enquanto seres têm que negociar as condições segundo as quais serão estabelecidas a formação da sociedade e a manutenção dos seres individuais.


2. Políticas públicas


Encaminhando-se para o poente desta parcela contributiva do presente pensar, buscar-se-á trazer a conceituação de políticas públicas frente ao raciocínio do direito à existência material mínima, com o intuito de introduzir tal temática na teoria estudada neste ensaio.


Antes de qualquer colocação, faz-se necessário compreender a origem das políticas públicas. Para tanto, traz-se uma referência de Souza (2006)[7], segundo o qual


“A política pública enquanto área de conhecimento e disciplina acadêmica nasce nos EUA, rompendo ou pulando as etapas seguidas pela tradição européia de estudos e pesquisas nessa área, que se concentravam, então, mais na análise sobre o Estado e suas instituições do que na produção dos governos. Assim, na Europa, a área de política pública vai surgir como um desdobramento dos trabalhos baseados em teorias explicativas sobre o papel do Estado e de uma das mais importantes instituições do Estado – o governo -, produtor, por excelência, de políticas públicas. Nos EUA, ao contrário, a área surge no mundo acadêmico sem estabelecer relações com as bases teóricas sobre o papel do Estado, passando direto para a ênfase nos estudos sobre a ação dos governos” (p.21).


Segundo Muller (1990)[8], Hussenot define a gestão pública como um “conjunto de métodos racionais a serviço dos policy-makers e destaca a especificidade das organizações públicas” (p.13 ).


Pode-se elucidar a peculiaridade do termo políticas públicas em três focos. Primeiramente, tal termo refere-se tanto aos conteúdos particulares que se expressam em diferentes matérias ou campos de atuação governamental como pode fazer referência aos processos políticos próprios da ação e, ainda, às instituições políticas. Em segundo lugar, ressalte-se que este termo implica também que, enquanto curso de ação deliberada, as políticas públicas envolvem preferências, escolhas e decisões (critérios de decisão dos decisores), o que remete sua discussão para os mecanismos individuais e coletivos que envolvem sua formação. Isto se refere, particularmente à análise de como se formam determinados cursos de ação, ou seja, exige a compreensão de que tais escolhas e preferências não são neutras em relação a quem as formula, mas carregadas de significados históricos. Por fim, encontra-se uma questão de mais difícil solução: enquanto resultado de forças e interesses que se posicionam socialmente frente a outras forças e interesses, as políticas públicas alteram a percepção da sociedade sobre determinados fatos, formulados como problemas. E aí reside um aparente paradoxo: mesmo sabendo não ser o Estado o único agente capaz de formular e implantar políticas públicas, sua importância na vida social lhe determina uma posição privilegiada neste processo. O risco, neste caso, para o analista é centrar sua análise apenas no Estado, esquecendo de compreendê-lo como resultado também de um jogo de forças e interesses. Todavia, na organização estrutural da sociedade, o Estado surge como a principal instituição sobre a definição, veto e formação legitima e legitimadora de políticas públicas. Assim, quando há demanda social que necessite ser legitimada, é o Estado que passa a processá-la e, a partir dos interesses daqueles que gestam o Estado tal processualidade pode sofrer vetos e confrontos que podem inibir ou sobrevalorizar determinadas demandas. Note, por exemplo, o caso da União Estável, no qual a reiterada ocorrência de situações similares exigiu, que o Estado providencia-se alguma forma de regulação, para que suas conseqüências pudessem ser adequadas (ou re-adequadas) para a convivência frente às regras do Estado


Dada a complexidade acima esboçada, assume-se então, para além de uma definição única e estabelecida, que enfrentar esta discussão exige, como postura metodológica, que a política pública seja encarada como campo, seguindo as pistas propostas por Bourdieu (1989, p. 64). Ou seja, um campo é, antes de qualquer coisa, “um espaço social de relações objetivas”, ou ainda, quando este autor se refere ao campo do poder…


“…entendendo por tal as relações de forças entre as posições sociais que garantem aos seus ocupantes um quantum suficiente de força social – ou de capital – de modo a que estes tenham a possibilidade de entrar nas lutas pelo monopólio do poder, entre as quais possuem uma dimensão capital as que têm por finalidade a definição da forma legítima do poder” (BOURDIEU, 1989, p. 29).


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As sugestões de Bourdieu (1989) nos levam, então, a propor a análise das políticas públicas como um campo de forças no qual se disputa a primazia por indicar, ao mesmo tempo, quais são os problemas ou quais questões devem se tornar problemas, qual(is) a(s) melhor(es) soluções técnicas e políticas para enfrentá-las e quais as formas de avaliar seus resultados. Não há como se esquecer também que, enquanto um conceito produzido, é impossível deixar de lado que cada definição (ou sua tentativa) trata-se também de uma disputa pela capacidade de impor significados ao conceito.


O ponto a ser aqui ressaltado, a partir do conceito acima, é que assumir a política pública como “espaço de tomada de decisão”, aproxima-a da discussão proposta por Bourdieu (1989), enquanto um espaço social de posições de poder. Está presente também, na proposta de Costa (2000)[9] a importância do Estado como agente fundamental, mas não único, uma vez que este aparece aqui como intermediário (das forças políticas que se colocam em seu campo) e emerge explicitamente a idéia de “grupos de interesse”. Esses grupos referem-se aos conjuntos de indivíduos unidos por objetivos comuns, sejam econômicos strictu senso, políticos ou também interesses sociais difusos ou particulares (como exemplo, os de determinada população que luta por melhorias imediatas em seu local de moradia).


3. Dignidade da pessoa humana a partir dos princípios constitucionais


A palavra dignidade vem do latim dignitas que significa honra, virtude ou consideração, razão porque se entender que dignidade é uma qualidade moral inata e é à base do respeito que lhe é devido. “Então, a dignidade nasce com a pessoa. É-lhe inata. Inerente à sua essência” (NUNES, 2002, p. 49).[10]


Por outro lado, o conceito de Dignidade da Pessoa humana está ligado aos conceitos sociais, portanto, acompanham a visão da sociedade em determinada época, fundindo-se, inclusive, a partir de seus valores, considerando-se o momento histórico vivido. Com isso, já houve tempo em que não se encontrou referência à dignidade humana dos escravos, dos trabalhadores explorados na chamada Revolução Industrial.


O postulado da dignidade humana, em virtude da forte carga de abstração que encerra, não tem alcançado, quanto ao campo de sua atuação objetiva, unanimidade entre os autores, muito embora se deva, de logo, ressaltar que as múltiplas opiniões se apresentam complementares.


Há que se consignar, antes da seqüente exposição dos valores e afirmações em torno do tema em estudo, a parte incontroversa entre os autores do conteúdo do princípio. Para os estudiosos a Dignidade da Pessoa Humana, ao menos no período moderno, envolve necessariamente o respeito e a proteção da integridade física e corporal do indivíduo. Daí decorre, por exemplo, a proibição da pena de morte, da tortura, das penas de natureza corporal, como escudo-humano em combates, da utilização da pessoa humana como experimento científico, limitações aos meios de prova (utilização de detector de mentiras), normas relativas a transplantes, etc. Outra dimensão associada ao valor da dignidade da pessoa humana condiz com a garantia de condições justas e adequadas de vida para o indivíduo e sua família, dando-se ênfase especial aos direitos sociais ao trabalho e à seguridade social.


Neste sentido, prima-se que a pessoa humana, enquanto valor, e o princípio correspondente de que aqui se trata, procura ser absoluto, e luta para prevalecer, sempre, sobre qualquer outro valor ou princípio (FARIAS, 1996, p. 47)[11]. Assim vendo, utilizaremos a terminologia empregada por Miguel Reale (2002), para elencar, historicamente, a existência de, basicamente, três concepções da dignidade da pessoa humana[12]: individualismo, transpersonalismo e personalismo.


Caracteriza-se o individualismo pelo entendimento de que cada homem, cuidando dos seus interesses, protege e realiza, indiretamente, os interesses coletivos. Seu ponto de partida é, portanto, o indivíduo. Tal juízo da dignidade da pessoa humana, por demais limitado, característico do liberalismo ou do “individualismo-burguês”[13], “dista de ser una respetable reliquia de la arqueologia cultural[14], compreende um modo de entender-se os direitos fundamentais. Estes serão, antes de tudo, direitos inatos e anteriores ao Estado, e impostos como limites à atividade estatal que deve, pois, se abster, o quanto possível, de se intrometer na vida social. São direitos contra o Estado, “como esferas de autonomia a preservar da intervenção do Estado”[15]. Denominam-se-lhes, por isso, direitos de autonomia e direitos de defesa[16]. Redunda, ainda, como advertem Reale[17] e Canotilho[18], num balizamento da compreensão e interpretação do Direito e, portanto, da Constituição. Assim, interpretar-se-á a lei com o fim de salvaguardar a autonomia do indivíduo, preservando-o das interferências do Poder Público. Ademais, num conflito indivíduo versus Estado, privilegia-se aquele.


 Já com o transpersonalismo, temos o contrário: é realizando o bem coletivo, o bem do todo, que se salvaguardam os interesses individuais; inexistindo harmonia espontânea entre o bem do indivíduo e o bem do todo, devem preponderar, sempre, os valores coletivos. Nega-se, portanto, a pessoa humana como valor supremo[19]. Enfim, a dignidade da pessoa humana realiza-se no coletivo.


A terceira corrente, que ora se denomina personalismo, rejeita quer a concepção individualista, quer a coletivista; nega seja a existência da harmonia espontânea entre indivíduo e sociedade, resultando, portanto, numa preponderância do indivíduo sobre a sociedade, seja a subordinação daquele aos interesses da coletividade.


Contudo, defende-se, como Lacambra (1971)[20], que a primazia pelo valor coletivo não pode, nunca, sacrificar, ferir o valor da pessoa. A pessoa é, assim, um minimun, ao qual o Estado, ou qualquer outra instituição, ser ou valor não pode ultrapassar[21].


A nova interpretação constitucional surgida em oposição a estas três formas de apresentar o princípio em estudo, que pretendiam alcançar seu objetivo através do positivismo exagerado, assenta-se no exato oposto de tal proposição, de que as normas devem conter os conceitos para se tornarem passíveis de implementação: as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido.


A Dignidade da Pessoa Humana como princípio fundamental e, também, norma jurídico-positiva, (carregada de eficácia, alcançando a condição de valor jurídico fundamental de nossa comunidade) é um valor que não se restringe a guiar os direitos fundamentais, mas sim, rege toda a ordem jurídica constitucional e infraconstitucional. Ressalta-se, ainda, que o referido princípio é de grande valia para a interpretação constitucional em face às normas constitucionais apresentarem caráter aberto e amplo, (principalmente àquelas atinentes aos direitos fundamentais), pois sua utilização como premissa da argumentação jurídica torna o procedimento da interpretação constitucional racional e controlável.


Embora seja muito fácil identificar situações em que o princípio constitucional da dignidade é desrespeitado (o que, de certa forma, é um alerta para a luta pelo seu respeito), maior dificuldade se encontra em definir o princípio da dignidade da pessoa humana, pois, tratando-se de um princípio aberto e não taxativo, possui múltiplos significados e efeitos. Não é pretensão do presente estudo desenvolver um conceito inovador e exaustivo, mas delimitar alguns aspectos que devem ser considerados ao se efetivar o princípio da dignidade da pessoa humana como valor fonte de todo o sistema jurídico e social.


Sobre a dificuldade em se fixar um conceito do princípio da dignidade da pessoa humana, que se encontra em constante construção, desenvolvimento e aperfeiçoamento, ensina Azevedo (2002)[22]:


“É preciso, pois, aprofundar o conceito de dignidade da pessoa humana. A pessoa é um bem, e a dignidade, o seu valor. O direito do século XXI não se contenta com os conceitos axiológicos formais, que podem ser usados retoricamente para qualquer tese. Mal o século XX se livrou do vazio do ‘bando dos quatros’ – os quatro conceitos jurídicos indeterminados: função social, ordem pública, boa-fé, interesse público – preenchendo-os, pela lei, doutrina e jurisprudência, com alguma diretriz material, surge agora, no século XXI, problema idêntico com a expressão ‘dignidade da pessoa humana’” (p. )


Por isso, como proposta de conceituação jurídica da dignidade da pessoa humana, para fim de facilitar a compreensão do princípio no presente ensaio, utilizamos a síntese de Sarlet (ano), segundo o qual dignidade humana diz respeito à…


“…qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos” (p.100)[23].


Assim, podemos compreender que, se por um lado a dignidade é algo intrínseco ou ôntico do ser humano, ele só poderá ser garantido pela intervenção do Estado sobre esta condição. Todas as concepções apresentadas anteriormente segundo Reale (2002) não dispensam a presença do Estado e o respeito de algo ôntico. Poderíamos mesmo oferta uma crítica a todas as contribuições até aqui elencadas pelo seu caráter antropocêntrico, pois o homem enquanto ser humano ou enquanto ser social está sob condições ambientais que lhe potencializam e lhe restrigem possibilidades de vida em quaisquer instâncias. Pensar o homem e suas relações fora do contexto ambiental (que poderíamos designar como socioambiental) é fornecer análises limitadas às expressões abstratas e práticas assimiladas sobre dignidade humana.


4. O PROBLEMA BRASILEIRO


 


No Brasil, temos convivido há muito com práticas políticas tradicionais marcadas pelo autoritarismo congênito de nossa sociedade. Nossa formação patriarcal, patrimonialista e personalista[24], tanto como a herança colonial de uma economia calcada duplamente no grande domínio monocultural e no trabalho escravo[25], nos deixou a herança de um aparato burocrático auto-referenciado, no que diz respeito aos processos decisórios, e privatizado, quanto aos recursos e aos fins das políticas governamentais.


Numa sociedade em que o Estado sempre foi pensado como o ator privilegiado da cena política, em oposição à sociedade civil, desorganizada e alheia aos debates públicos, estes empreendidos por uma intelectualidade desenraizada, eurocentrista por natureza, presa por origem às elites oligárquicas e constitutivas de uma casta de bacharéis, a noção de direitos fundamentais não é apenas incipiente, mas o núcleo duro de uma ação transformadora radical. O problema se coloca quando trabalhamos com a idéia de Dignidade da Pessoa Humana no Brasil.


É o que nos diz, talvez de uma forma mais pessimista, Ferreira da Cunha (2000)[26]:


“Estabelecer parâmetros muito rígidos sobre ela [a Dignidade] não parece ser boa política. Mas a verdade é que o preço da dignidade anda actualmente muito por baixo. Não há, evidentemente, respeito pela dignidade do Homem quando ele é rebaixado e funcionalizado. Quando o Homem passa a ser mero contribuinte (por vezes espoliado), pagador, espectador, consumidor, acrítico leitor, etc…, não há respeito por essa dignidade. Não há dignidade quando a integridade física e moral das pessoas é violada (sic) pelo Estado, ou quando os próprios particulares abdicam da sua, a troco da fama ou de uns tostões, maiores ou menores, como em alguns programas televisivos. E o público que os vê comunga desse rebaixamento” (p.212 ).


Sendo que esta é a referência de nosso Estado Democrático de Direito sob o qual, nessa medida, o Estado, o mercado, as relações sociais, passaram a ser regulados por regras de conduta que se revestem de uma forma científica, mas possuem caráter moral-prático. O direito tornou-se um verdadeiro “leviatã” em nosso país, que prescreve regras e padrões de conduta para todos os aspectos, legitimado pela sua suposta “cientificidade”. A atrofia do pilar da emancipação da sociedade se agrava, pois a racionalidade imposta pelo direito nacional, de amplo cunho positivista, não se adapta às mudanças sociais, ficando engessado no tempo, mantendo apenas na doutrina sua suposta “moral-praticidade”. Em seu âmago deixa de ser o Direito voltado à racionalidade das relações sociais e passa a tratar tudo como um “sistema”, uma mecanização da sociedade, trata-a de forma científica, impedindo com isso a aplicação do Princípio da Dignidade Humana, pois esquece que há um humano na relação; também a comunidade, espaço no qual poderiam surgir novas possibilidades emancipatórias, no qual o império da lei permitiria que as potencialidades do cidadão fossem exploradas e melhoradas, também é prejudicada: o direito a regula totalitariamente, em todos os seus aspectos, e a esvazia de seu papel original dentro do plano paradigmático da Modernidade.


Em outro ponto, identifica-se o sufocamento da comunidade brasileira em face do Estado e do mercado. As relações capitalistas de troca e a atividade estatal superpõem-se às possibilidades comunitárias, que se atrofiam em face de interesses que, em vez de as complementarem, terminam por diminuir seu potencial de amplitude, embora nem sempre de sua existência. As comunidades, de modo geral, têm também se mantida afastadas das instituições que, em tese, lhes representariam. É por isso que se diz, por exemplo, que a participação política dos cidadãos se traduz nos períodos eleitorais: “tempo da política”. Nessa medida, a comunidade fica afastada ou distante das estruturas de representação, tendo que sobreviver muitas vezes em contraposição, e não em harmonia, com os supervalorizados princípios do mercado e do Estado. Por exemplo, isto pode ser observado na carga tributária paga no Brasil e do protecionismo de que gozam os grandes capitais investidores em nosso país, em detrimento do capital de base, que é o verdadeiro motor da nação.


Como bem leciona Sarlet (1998)[27], não restam dúvidas de que toda a atividade estatal e todos os órgãos públicos se encontram vinculados pelo princípio da dignidade da pessoa humana, impondo-lhes, neste sentido, um dever de respeito e proteção, que se exprime tanto na obrigação por parte do Estado de abster-se de ingerências na esfera individual que sejam contrárias à dignidade pessoal, quanto no dever de protegê-la contra agressões por parte de terceiros, seja qual for sua procedência.


No Brasil, após um período de ditadura caracterizada pela descarada violação dos Direitos Humanos que se desenrolou nos anos de 1964 a 1979, a Carta Magna de 1988 representou um grande avanço, adotando o Estado Democrático de Direito e alargando significativamente a abrangência dos Direitos e Garantias Fundamentais, corporificados no seu Título I e Título II.


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O Estado Democrático de Direito possui dupla responsabilidade: a primeira é a de cumprir a lei; a segunda é assegurar os direitos e garantias fundamentais, pois a partir do momento em que os consagra como valores primordiais, o Estado torna-se o maior responsável pela concretização desses direitos. Portanto, não basta apenas existirem leis, mas sim, ordenações estatais que se direcionem para a efetividade das necessidades sociais.


“Uma coisa é o direito nos textos, sob a forma de sistemas coerentes e completos, concebidos como se a sociedade brasileira fosse igualitária e participativa; outra, são as práticas decisórias no interior de um Estado cuja unidade interna ainda hoje continua fragmentada por vigentes anéis burocráticos, isto é, por círculos de informação e negociação entre segmentos tecnocráticos e frações das classes dominantes, reproduzindo as estruturas sociais altamente estratificadas e discriminatórias” (LEAL, 2000, p.154 )[28]


Não poderia ser diferente em um país de dimensões continentais, com população de possibilidades, cultura, necessidades, entorno, tão diversificados; no qual a maioria dos conflitos relativos a meio ambiente ocorre em razão de necessidades humanas básicas como saúde, educação, moradia, trabalho, alimentação. Assim, torna-se quase impossível priorizar uma dentre tantas necessidades sociais, e até mesmo escolher o critério a ser utilizado para eleger tal prioridade, tamanha a contradição existente entre os elementos que originam os problemas. Além de tais necessidades fundamentais, por vezes surgem outras que podem gerar conflitos, tais como o conforto, a propriedade privada, o consumo, o meio ambiente equilibrado.


Por isso não cabe, em nosso país, a leitura restritiva dos direitos fundamentais, que resulta em notável prejuízo ao cidadão, porque este terá seu patrimônio jurídico reduzido. Isto ocorre tanto de forma numérica, quando reduz o rol de direitos fundamentais, quanto de forma sofisticada, por meio do enquadramento dos direitos sociais como normas programáticas.


O encarceramento dos direitos fundamentais sociais no conceito frágil e inócuo de normas programáticas não faz sentido, uma vez que os valores sociais são os pilares do Estado Democrático de Direito. E o que são as cláusulas pétreas senão o reconhecimento de que aqueles valores são de suma importância e por isto precisam ser cuidadosamente protegidos dos reveses políticos, marcados pela instabilidade e pelo jogo ou troca de interesses? Assim sendo, a manutenção da nossa ordem constitucional emerge como única forma de não contradizer a finalidade dela mesma.


A globalização econômica faz com que os Estados, em geral, percam o controle de sua economia, atingindo seu poder de gestão, imprimindo ações diretivas a favorecer ou desfavorecer, a depender da ocasião, os direitos sociais. O que tem acontecido é uma tendência de retrocesso na proteção e efetividade destes direitos, por vários fatores, dentre eles a diminuição da máquina estatal, notadamente a assistencial e o desmantelo dos direitos trabalhistas mediante a flexibilização.


A crise em que vive o direito tem reflexos nos direitos fundamentais. O panorama de crise será mais ou menos agudo a depender das posições políticas adotadas. Isto se dá pelo impacto da globalização e da afirmação do modelo alcunhado neoliberal, que impõe aos países periféricos uma lógica perversa de Estado mínimo, subordinação a órgãos como o Fundo Monetário Internacional e a situações de competição desigual e, como adverte Sarlet (1998)[29], a crise, entretanto, não é fruto apenas disto: “É […] comum a todos os direitos fundamentais, de todas as espécies e ‘gerações’, além de não poder ser atribuída, no que diz com suas causas imediatas, exclusivamente ao fenômeno da globalização econômica e ao avanço do ideário e da ‘praxis’ neoliberal” (p.8).


A exclusão social e a formação de bolsões de pobreza são graves dilemas enfrentados pelo Brasil, que atuam reduzindo a capacidade de ação social no sentido de efetivação dos direitos fundamentais. A outra face da moeda é fragilidade que pode transformar-se em dominação, o que gera possibilidade de desmantelo da democracia. O poder paralelo ou crime organizado abrigado em favelas e aglomerados, que representam “pseudo-estados” no qual o poder instituído está ausente.


E aí surge o perigo de isolar em dois mundos o povo brasileiro: de um lado os moradores da cidade submetida ao poder político instituído e de outro os habitantes das favelas sob o crivo do crime organizado, podendo vir a força estatal ou violência legitimada ser utilizada com o objetivo falacioso de manter a ordem e proteger os cidadãos de bem, o que foi chamado de “fascismo do Estado paralelo” por Santos (1998)[30], caracterizado pela subversão da ordem jurídica. Sarlet (1998)[31] contextualiza de forma muito pertinente relatando os nefastos reflexos da crise dos direitos fundamentais e sociais:


“Para além disso, convém que fique registrado que – além de a crise dos direitos fundamentais não se restringir aos direitos sociais – a crise dos direitos sociais, por sua vez, atua como elemento de impulso e agravamento da crise dos demais direitos. […] Basta, neste contexto, observar que o aumento dos índices de exclusão social, somado à crescente marginalização, tem gerado um aumento assustador da criminalidade e violência nas relações sociais em geral, acarretando, por sua vez, um número cada vez maior de agressões ao patrimônio, vida, integridade corporal, intimidade, dentre outros bens jurídicos fundamentais” (p. ).


5. O DIREITO A EXISTÊNCIA MATERIAL MÍNIMA


Tendo em vista esta crise pela qual passa o direito, o estado brasileiro e a sociedade, se põe em discussão um dos mais importantes conteúdos do Princípio da Dignidade da pessoa humana, um reflexo obrigatório dele, mas quer apenas enganosamente e de forma paliativa é oferecida a nossa população, o Direito a Existência Material Mínima.


O texto constitucional brasileiro garante o direto à vida, à atividade econômica baseada na valorização do trabalho humano, na livre iniciativa, visando assegurar a todos existência digna, nos termos dos ditames da justiça social; direito à previsão legal da defesa do consumidor e a implementação de uma Política Nacional das Relações de Consumo que busca tornar tais relações saudáveis e baseadas na boa-fé objetiva como imperativo de conduta; o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum e essencial à qualidade de vida. Todos, igualmente, constitucionalmente garantidos.


A ordem jurídica não pode admitir, no estágio atual da civilização, a existência de um grande grupo de pessoas sem as mínimas condições materiais de subsistência, despidas de alimentação, educação, saúde, habitação, dentre outros requisitos. Aí se encontra o imprescindível direito à existência material mínima.


Entre nós, o cenário descortinado pelo art. 1º, III, da CF, expressa com clareza o direito exposto. A privação da propriedade, por ato emanado do Estado, subordina-se à observância de interesse público, previsto no ordenamento jurídico, com a garantia ao particular de indenização prévia (art. 5º, XXIV, CF). A obrigação do administrado de contribuir para os encargos coletivos guarda vínculo ao parâmetro da não imposição de tributo com efeito de confisco (art. 150, IV, CF).


Assim, de acordo com tal preceito, afigura-se inadmissível que o administrado seja despojado de seus recursos indispensáveis à sua existência digna, de sorte que a intervenção estatal na propriedade, pela via fiscal ou não, não deverá alcançar patamares capazes de privá-lo dos meios mais elementares de subsistência em detrimento dos poderes públicos, trazendo assim a obrigação adicional de prover ao cidadão um mínimo existencial.


Por outro lado, o direito à existência digna não é assegurado apenas pela não abstenção do Estado em afetar a esfera patrimonial das pessoas sob a sua autoridade. Passa também pelo cumprimento de prestações positivas. Dentro desta motivação que a nossa Lei Fundamental impôs, ao Estado e à sociedade, a realização de ações integradas para a implementação da seguridade social (art. 194, CF), destinada a assegurar a prestação dos direitos inerentes à saúde, à previdência e à assistência social.


Esses parâmetros protetivos não se exaurem, no entanto, das relações Estado/indivíduo. Absolutamente. Avançam suas fronteiras, de sorte a evitar o empobrecimento sem causa por ato atribuível ao particular. Dois exemplos constitucionais centram-se no: a) rol do art. 7º, I a XXXIV, da Lei Maior, estabelecendo a porção mínima de direitos assegurados ao empregado, urbano ou rural; b) respeito à defesa do consumidor nos vínculos contratuais de massa (arts. 5º, XXXII, e 170, V). E não é só. O art. 170, caput, da Lei Máxima, ao fincar as pilastras em que se ancora a ordem econômica, consistentes no concerto entre a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, assinala como finalidade daquela garantir a todos existência digna, em compasso com os ditames da justiça social.  


Feitas essas considerações, realçando o caráter de princípio fundamental fruído pela dignidade da pessoa humana, de notar-se que o mais importante, aqui como nos demais tópicos analisados, é a sua atuação como diretriz hermenêutica. Nesse sentido, são dignas de destaque algumas  manifestações  de nossa jurisprudência.


Disto resultando que a interferência do princípio se espalha, entre nós, nos seguintes pontos: a) reverência à igualdade entre os homens (art. 5º, I, CF); b) impedimento à consideração do ser humano como objeto, degradando-se a sua condição de pessoa, na limitação da autonomia da vontade e no respeito aos direitos da personalidade, entre os quais estão inseridas as restrições à manipulação genética do homem; c) garantia de um patamar existencial mínimo.


Ao que parece, surge um problema eminentemente jurídico, na medida em que se faz necessário equacionar a contradição existente entre as necessidades humanas, as quais são as mais variadas possíveis, todas com seu grau de importância. Wolkmer (1997)[32] elenca que algumas necessidades podem ter natureza existencial, como a alimentação, a água, a saúde, o ar, a segurança. Outras, natureza material: habitação, terra, trabalho, salário, entre outras. Há ainda as necessidades sócio-políticas, como o exercício da cidadania, a participação. Não se pode olvidar as necessidades culturais, entre elas a educação, a liberdade de manifestação, de crença, de religião. Existem ainda as necessidades difusas, dentre as quais a preservação ecológica, direitos inerentes às relações de consumo etc.; finalmente, as necessidades das minorias: os direitos dos homossexuais, do negro, do índio. Todas relevantes.


As ações nesta direção devem ter o sentido de, com justiça fiscal, redistribuir a renda, evitando que qualquer pessoa sobreviva abaixo de um nível considerado minimamente satisfatório. Há que se verificar, entretanto, a utilização de tais recursos, oriundos, afinal, do esforço conjunto da sociedade, pois o que se verifica, comumente, são programas de baixa ou nenhuma eficácia, de mero assistencialismo, que servem para aumentar ou manter a dependência de seus destinatários. Como fundamento do Estado brasileiro, insculpido no documento máximo de nosso estado, a Constituição, temos como fortes valores imprescindíveis à dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1.º, III e IV, CF). Dignidade da pessoa humana, no que diz respeito à sua manutenção financeira, consiste em realizar, pelo trabalho, o seu sustento e o de sua família, o que vem a ser ratificado no mesmo diploma, um pouco mais adiante (art 7.º IV, CF), no momento em que dispõe os elementos mínimos que o menor salário a ser pago nesse país deve proporcionar. Não é fora de propósito, assim, entender que fundamento é base, arcabouço sobre o qual se firma a estrutura do Estado e que, portanto, é dever absoluto e inconteste do governo promover o que o seu próprio elemento humano definiu como fundamental o inserindo no texto Constitucional[33]. O que queremos dizer é que assistência é dar ao trabalhador condições de suprir necessidades impossíveis de previsão e, portanto, de se criarem instrumentos capazes de as impedirem. Deste modo, diverge substancialmente de assistencialismo, que é dar ao que não trabalha meios de sustentação. Fica claro, assim, que o que se deve dar à pessoa humana é dignidade, e esta, por meio do trabalho. Creio que devemos ter em mente que salário é espécie de renda, renda gera consumo, consumo gera aumento de produtividade[34] e aumento de produtividade é sinônimo de aumento de riqueza. É patente, então, que emprego e empreendedorismo são necessários à prosperidade estatal.


Com isso a atuação do Estado como corporificador dos princípios constitucionais, portanto, é de cabal importância na busca do equilíbrio e integração dos partícipes das relações sociais, saindo da esfera da defesa de interesses puramente individuais, e voltando-se para a concretização do bem-comum, viabilizando de forma consistente a justiça distributiva. A partir daí, se poderá falar em consumo sustentável, preservação do meio ambiente, desenvolvimento econômico justo e viabilização do desenvolvimento sustentável e da dignidade humana.


Imprescindível, assim, é a introjeção pela sociedade do princípio, para que se possa superar referida realidade, já que, se assim não for, ter-se-á que concluir que o homem, para quem a busca de encontrar-se é uma constante, terá, ao contrário, perdido a si mesmo.


Devido a isto o Direito, e através dele a Justiça, somente passará a incorporar o dia-a-dia de cada indivíduo, se a dignidade for considerada em sua plenitude e estendida a toda a raça humana, já que toda vileza ou degradação do ser humano é injusta e, como tal, indigna e desumana. A justiça humana, por meio do sistema jurídico que a concretiza, emana e se fundamenta na dignidade humana, pressuposto da própria idéia de justiça, determinante da condição superior do homem como ser dotado de razão e sentimento, independentemente de merecimento pessoal ou social, já que é intrínseca a vida.


Por isso devemos nos socorrer das palavras de Paulo Roberto Pereira de Souza[35], “temos um enorme desafio pela frente. Um novo paradigma tecnológico e social exigirá de todos nós uma mudança de postura, mudando nossas atitudes assumindo uma posição pró-ativa para a construção de uma sociedade mais justa e de um mundo melhor.”


 


Notas:

[1] McGregor, Douglas.  “O Lado Humano da empresa”.  In: balcão, yolanda Ferreira e Cordeiro, Laerte L.. O Comportamento Humano na Empresa.  Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 48-52.

[2] PAULA, W. K de. Reeleitura da Teoria das Necessidades Humanas Básicas, Florianópolis: UFSC, 1993.

[3] LÉVY, André. A psicossociologia: crise ou renovação? IN LÉVY, A. et al. Psicossociologia análise social e intervenção. Trad. Marília Novais da Mata Machado et al., BH: Autêntica, 2001.

[4] Disponível em <http://pt.wikipedia.org/wiki/Sociedade> –  acesso em 17 de julho de 2007.

[5] JOHNSON, Allan G. Dicionário de Sociologia: guia prático da linguagem sociológica. 2 ed. – Rio de Janeiro. Jorge Zahar Ed., 1997

[6] LALANDE, André. Vocabulário técnico e crítico da filosofia. 2ª.ed. São Paulo. Martins Fontes, 1996

[7] SOUZA, Celina Políticas Públicas: uma revisão de literatura. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/soc/n16/ a03n16.pdf> – acesso em 25 de maio de 2007.

[8] MULLER, Pierre. Les politiques publiques. Paris: PUF, 1990. 

[9] LEAL, Rogério Costa. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 109.

[10] RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio.  Princípio Constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002. p.49

[11] FARIAS, Edilsom Pereira – Colisão de Direitos, Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1996. p. 47.

[12] REALE, Miguel – Filosofia do Direito, São Paulo: Ed. Saraiva, 2002. p. 277.

[13] FARIAS, E., Obra Citada, p. 47

[14] SANCHIS, Luis Prieto – Estúdios sobre Derechos Fundamentales, p. 26. Aliás, podemos entrever em algumas interpretações da Constituição e dos Direitos Fundamentais inúmeros traços individualistas

[15] NOVAIS, Jorge Reis – Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, Coimbra: Ed Coimbra, 1987. p. 73.

[16] CANOTILHO, J.J Gomes – Direito Constitucional e Teoria da Constituição 7ª ed. Coimbra: Ed. Almedina, 2006. p. 505.

[17] REALE, Miguel – Obra Citada, p. 278.

[18] CANOTILHO, J.J. Gomes – Obra Citada, p. 505, fala “que a interpretação da Constituição pré-compreende uma teoria dos direitos fundamentais”.

[19] REALE, Miguel – Obra Citada, p. 277

[20] LEGAZ Y LACAMBRA, Luiz – Problemas y Tendencias de la Filosofia del Derecho Contemporaneo, Madrid, Benzal, 1971

[21] De idêntica opinião é Reale e Farias.

[22] AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 91, n. 797, mar./2002, p. 11-26

[23] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Ed. Livraria do Advogado, 1998., p. 100

[24] HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

[25] PRADO JÚNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1989. p.205

[26]CUNHA, Paulo Ferreira da. O Ponto de Arquimedes. Natureza Humana, Direito Natural, Direitos Humanos. Coimbra: Ed. Almeida, 2000, p. 212

[27] SARLET, Ingo Wolfgang. Obra Citada, p.110

[28] LEAL, Rogério Costa. Perspectivas Hermenêuticas dos Direitos Humanos e Fundamentais no Brasil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 154

[29] SARLET, Ingo Wolfgang. Obra Citada, p. 8

[30] SANTOS, Boaventura Souza. Reinventar a democracia: entre o précontratualismo  o pós-contratualismo. Coimbra: Oficina do Centro de Estudos Sociais, 1998. p.23 e ss

[31] SARLET, Ingo Wolfgang. Obra Citada, p. 8

[32] WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 2. ed. São Paulo: Alfa Omega, 1997. p.140

[33] Por meio de representantes eleitos, cujos quais formaram a Assembléia Nacional Constituinte, e que promulgaram a Constituição do Brasil em outubro de 1988.

[34] Não sem a intervenção do Estado, pois se assim fosse, ao invés de aumento de produtividade poderíamos ter somente expansão generalizada da moeda (inflação).

[35] SOUZA , Paulo Roberto Pereira de. O direito ambiental e a construção da Sociedade sustentável.

Disponível em http://www.abaa.org.br/artigos/artigos_070501_dirsochtml.html. Acesso em 18/09/2006.


Informações Sobre os Autores

José Ozorio Costa

Acadêmico de Direito na Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Erechim

Nicolas Albrecht Opitz

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI – Campus de Erechim. Mestrando em Gestão de Políticas Públicas – UNIVALI


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