Resumo: A saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade, envolvendo variáveis de tempo e espaço, conforme definição da OMS. Nesse sentido, a saúde é um bem que merece proteção jurídica. Na atualidade, os avanços da medicina tecnológica, a dimensão social do direito à saúde e a noção de dignidade da pessoa humana são aspectos que exigem um debate bioético sobre o tema do acesso à saúde. A dificuldade do acesso universal à saúde decorre, principalmente, da escassez de recursos. No Brasil, o Poder Judiciário assume um importante papel no resguardo do direito à saúde, que deve ser assegurado por meio de um efetivo acesso à justiça.
Palavras-chave: Acesso à Saúde. Bioética. Acesso à Justiça. Direitos Humanos. Processo Justo.
Abstract: Health is a state of complete physical, mental and social wellbeing, and not merely the absence of disease or infirmity, involving variables of time and space, as defined by the WHO. In this sense, health is an asset that deserves legal protection. Nowadays, advances in technology medicine, the social dimension of the right to health and the notion of human dignity are issues requiring bioethical debate on the issue of access to health. The difficulty of universal access to health care is mainly due to the scarcity of resources. In Brazil, the judiciary plays an important role in the protection of the right to health, which must also be ensured by an effective access to justice.
Keywords: Access to Health. Bioethics. Access to Justice. Human Rights. Due Process.
Sumário: 1 Introdução; 2 O acesso à saúde; 2.1 O acesso à saúde e a bioética; 2.2 A caracterização do direito de acesso à saúde e da garantia de acesso à justiça como direitos fundamentais e humanos; 3 O direito ao processo justo como via para a oferta de proteção efetiva à saúde; 3.1 Os meios alternativos de resolução de conflitos e a proteção ao direito à saúde; 3.2 O direito à duração razoável do processo e a tutela do direito à saúde em juízo; 4 Conclusão; Referências Bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo trata da crescente judicialização do acesso à saúde no Brasil e da necessária observância do direito a um processo justo nessas demandas judiciais.
O objetivo geral do texto é demonstrar que nas ações em que se pleiteia o acesso à saúde também deve ser exigido um processo judicial justo, facilitando o acesso à justiça e garantindo os meios que asseguram os direitos envolvidos no conteúdo do direito ao processo justo.
De início, na primeira parte, abordaremos a relação do acesso à saúde com a bioética. Em seguida, apresentaremos os dois principais sistemas de acesso à saúde e, ao final, será analisada a confluência entre o acesso à saúde e o acesso à justiça.
No segundo ponto do artigo, a proposta é esclarecer quais seriam os direitos envolvidos no conteúdo do direito ao processo justo com maior repercussão em demandas que tratam do acesso à saúde. Nesse aspecto, examinaremos os meios alternativos de resolução de conflitos e o direito à duração razoável do processo.
2 O ACESSO À SAÚDE
A Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1948, proclamava que “A saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermidade” (WHO, 1948).
Esse conceito foi criticado pela doutrina, sustentando-se que seria utópico, pois dificilmente um indivíduo gozaria de higidez em todos esses aspectos.
No entanto, a definição foi importante por considerar, além das características pessoais, a organização social e o meio ambiente em que o ser humano está inserido. Da mesma forma, superou a definição que compreendia a saúde apenas como a ausência de doenças.
Posteriormente, surgiram novas propostas ao conceito da OMS, envolvendo variáveis de tempo e espaço, sendo que atualmente o entendimento é no sentido de que o conceito depende de uma contextualização (BOTELHO, 2011).
Em síntese, a saúde é caracterizada como um estado natural de perfeito bem-estar do ser humano, um estado de pleno gozo de suas faculdades físicas, psíquicas e sociais, dependentes do tempo e do espaço. Assim, a saúde pode ser considerada um bem, o qual merece proteção jurídica.
2.1 O acesso à saúde e a bioética
Na atualidade, o avanço tecnológico tem possibilitado ao ser humano diversos tratamentos de saúde, que há pouco tempo inexistiam. Como é notório, essa tecnologia é disponibilizada a uma parcela ínfima da sociedade, devido aos custos e aos meios de acesso.
Nesse passo, é importante ressaltar a dimensão social do conceito de saúde, que a considera como um direito de todos aos benefícios do desenvolvimento tecnológico, estando associada à questão da justiça distributiva e da solidariedade social. Logo, esse aspecto da definição aproxima a saúde dos conceitos de cidadania e dignidade.
Por certo, os avanços da medicina tecnológica, a dimensão social do direito à saúde e a noção de dignidade da pessoa humana são aspectos que exigem uma reflexão ética sobre o tema do acesso à saúde.
A bioética aprofunda o estudo de outras matérias relacionadas à medicina, sendo a saúde vista somente como uma questão social. Entretanto, o tema do acesso à saúde merece uma maior atenção sob o ponto de vista ético, principalmente nos dias atuais, quando muitos dos conflitos que se estabelecem na área da saúde tem uma repercussão ética.
Nessa esteira, observou Berlinguer (1996, p. 16): “O tema da saúde raramente está presente no debate bioético. Este privilegia tão-somente as situações extremas como os nascimentos ‘artificiais’, os transplantes de órgãos, as condições de sobrevivência terminal, descuidando-se do fato de que a saúde e a doença são para todos um campo universal de experiência, de reflexão e até de escolhas morais. À saúde frequentemente é negado o título de nobreza como objeto da ética e, na melhor das hipóteses, lhe é atribuído apenas o valor (que para alguns é considerado filosoficamente irrelevante e intelectualmente plebeu) de ‘questão social’.” (grifou-se).
Apesar da resistência no enfrentamento do tema sob o aspecto ético, a reflexão vem se ampliando, mormente em países da América Latina, onde as desigualdades sociais provocam uma maior dificuldade no acesso do cidadão à saúde plena e efetiva, o que acarreta constantes questionamentos de ordem ética.
A respeito, comenta Goldim (2009, p.59): “A reflexão bioética sobre temas das áreas da saúde e do ambiente se ampliou e aprofundou em diferentes locais do mundo. (…) Na América Latina, as discussões sobre acesso a sistemas de saúde, sobre pobreza e preservação ambiental, se associaram aos grandes temas de discussão mundial, como privacidade, transplantes, reprodução assistida, eutanásia e suicídio assistido.”
Portanto, a reflexão bioética pode ser considerada como um importante meio de auxílio na busca por soluções aos conflitos éticos na área do acesso à saúde. Esses problemas decorrem essencialmente da escassez de recursos e dependem de sistemas de alocação.
Os principais sistemas de alocação de recursos na área da saúde são o sistema de tradição liberal, que tem por base o mercado, e o sistema de tradição social, estruturado através da despesa pública.
Quanto ao sistema de tradição liberal, o exemplo mais conhecido é o norte-americano, onde o acesso ocorre por meio do seguro saúde. Nesse sistema, o principal problema enfrentado é a deficiência da cobertura securitária. Estima-se que 18% da população não idosa carece de cobertura securitária para a saúde. As causas frequentemente apontadas são o preço e a higidez do mercado de seguros. Diante dessa situação, em 2010, o presidente Barack Obama propôs a Lei do Ato de Saúde Acessível (“The Affordable Care Act”), conhecida como “Obama Care”, que obrigava todos os americanos a adquirirem seguro privado de saúde até 2014, sob a ameaça de multa. O governo subsidiaria as famílias que não tivessem condições de bancar o seguro integralmente (MAIS…, 2013).
Sobre o sistema liberal, a teoria de Dworkin (2012) defende que a saúde não seria o bem mais importante do indivíduo, pois existem outros bens que competem com a saúde, tais como a educação, a segurança e a previdência. O autor sustenta que o critério de acesso à saúde pela necessidade, independente do custo, é complexo, uma vez que dependeria da interpretação do que seria uma necessidade. Ainda, argumenta que a regra do resgate, a qual não permite o sofrimento ou a morte da pessoa quando existe um tratamento, enfrenta críticas quando se pensa em prioridades, como no caso de manutenção de enfermos terminais.
Nessa linha, Dworkin (2012, p. 435-436) apresenta os seguintes questionamentos: “Como avaliar a necessidade? Será que alguém “necessita” de uma operação que talvez lhe salve a vida, mas haja poucas probabilidades de isso acontecer? A necessidade de um tratamento que salve a vida de uma pessoa deve sofrer interferência da qualidade que sua vida teria se o tratamento tivesse êxito? A idade do paciente importa? Será que uma pessoa de 70 anos precisa ou merece menos o tratamento do que uma pessoa mais jovem?”
Ao que se constata, no sistema liberal de acesso à saúde são aplicados conceitos econômicos, verificando-se o custo de direitos através de uma análise econômica do direito. Consoante Posner (1998), regras de direito devem ser interpretadas com base na eficiência, o que significa a maximização do bem-estar social.
A propósito, questiona Sandel (2013, p. 52): “Será então que toda ação humana pode ser entendida à luz de um mercado? A questão continua sendo objeto de debate entre economistas, cientistas políticos, juristas e outros especialistas. Mas o impressionante é a força adquirida por essa imagem – não só no mundo acadêmico, mas na vida cotidiana. Em grande medida, as relações sociais foram reconfiguradas nas últimas décadas à imagem das relações de mercado. Uma medida dessa transformação é o crescente uso de incentivos monetários para resolver problemas sociais.”
Já em relação ao sistema de tradição social ou sistema público universalista da saúde, o exemplo é o Brasil. No nosso país, o direito à saúde somente era disponibilizado aos trabalhadores segurados do Instituto Nacional de Previdência Social (INPS) e depois do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Contudo, a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso à saúde passa a ser um direito de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar esse direito.
O Sistema Único de Saúde foi criado com o objetivo de atender a todas as necessidades do cidadão, integrando ações, como a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Além do mais, é possível a complementaridade pelo setor privado, mediante a contratação dos serviços de saúde, caso o setor público se mostre incapaz de atender a demanda, o que é comum no Brasil. A respeito, segundo levantamento divulgado em 2011 pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 58,1% dos entrevistados apontou a falta de médicos como o maior problema do SUS. De fato, o número de leitos hospitalares sofreu uma redução de 10,5% entre 2005 e 2012, conforme apurou o Conselho Federal de Medicina (CFM). Diante dessa situação calamitosa, mais de 30% da população paga um valor extra pelos planos privados de saúde (CIGANA; TREZZI, 2013).
A desigualdade no sistema de saúde brasileiro foi descrita recentemente pelo Tribunal de Contas da União, que concluiu relatório sistêmico de fiscalização da saúde no país, com a compilação dos trabalhos mais relevantes na área, realizados em 2013. Nesse estudo pioneiro, o TCU avaliou o sistema de saúde brasileiro por meio de indicadores e constatou significativas desigualdades, tanto na comparação do modelo público com o privado, quanto dentro do próprio Sistema Único de Saúde (SUS), quando comparadas as regiões do país, as capitais e o interior. O trabalho identificou problemas graves, como a insuficiência de leitos, a superlotação de emergências hospitalares, a carência de profissionais de saúde, a desigualdade na distribuição de médicos, a falta de medicamentos e insumos hospitalares, a ausência de equipamentos ou equipamentos obsoletos, não instalados ou sem manutenção, a inadequada estrutura física e a insuficiência de recursos de tecnologia da informação (TCU…, 2014).
Nesse contexto, a difícil situação da saúde pública nos países latino-americanos motivou a realização do IV Encontro Latino-Americano de Direito à Saúde e Sistemas de Saúde, em abril de 2014, na cidade de Bogotá, Colômbia, que teve como tema: “transparência e prestação de contas, para fazer público o que é público” (ENCUENTRO LATIONOAMERICANO SOBRE DERECHO A LA SALUD Y SISTEMAS DE SALUD, 2014). Os países presentes assumiram compromissos para tornar públicas as informações sobre os sistemas de saúde, através da prestação de contas, divulgação de conflitos de interesses e criação de observatórios (CASAGRANDA, 2014).
No sistema universalista, Neves (2014) aborda o tema da alocação de recursos em saúde como uma das mais recentes e urgentes problemáticas para a Bioética, articulando quatro princípios que devem ser considerados na busca por uma solução, que são os princípios da dignidade humana, da participação, da equidade e da solidariedade.
Em consequência, surge o conflito entre o “mínimo existencial” e a “reserva do possível”, quando se intenta um acesso universal ao direito à saúde. Observa-se que o conceito de “mínimo existencial” teve origem na Corte Constitucional Alemã, que extraiu esse direito do princípio da dignidade da pessoa humana. Logo, o direito ao “mínimo existencial” asseguraria recursos mínimos para uma existência digna, seria o núcleo essencial de um direito fundamental. Por outro lado, a “reserva do possível”, que também nasceu no Tribunal Constitucional Alemão, decorre da reduzida capacidade econômico-financeira do ente público (BOTELHO, 2011).
No intuito de dirimir a celeuma, a doutrina e a jurisprudência estabeleceram critérios para avaliar a possibilidade de prestação pública dos direitos, que são os limites fático e jurídico, além da razoabilidade. O limite fático é a capacidade financeira do Estado para prestar o direito. Já o critério jurídico consiste na possibilidade jurídica de disposição desses recursos. Por fim, a razoabilidade depende da interpretação no caso concreto para avaliar se é razoável que o indivíduo exija do ente público a prestação daquele direito social (GLOECKNER, 2013).
2.2 A caracterização do direito de acesso à saúde e da garantia de acesso à justiça como direitos fundamentais e humanos
O Pacto de San José da Costa Rica (Convenção Americana dos Direitos Humanos – 1969), integrado ao ordenamento pátrio desde a edição do Decreto n° 678/92, sublinha em seu art. 8°.1 que “toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente (…)”.
No Brasil, a Constituição Federal prevê, no Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), o direito ao acesso à justiça em seu artigo 5º, XXXV, quando declara que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.” Esse dispositivo veicula o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação (WATANABE, 1980). Ademais, conforme prevê o art. 6º da Constituição Federal, o direito à saúde, como direito social, também é um direito fundamental.
Nesse diapasão, considerando que a garantia de acesso à justiça e o direito à saúde, além de estarem previstos no ordenamento constitucional brasileiro, são direitos que transcendem o ordenamento positivo nacional, assumindo atualmente uma validade universal, através de tratados internacionais, pode-se dizer que também são direitos humanos.
Todavia, o problema dos direitos humanos é a dificuldade da sua efetividade. A respeito, Villey (2007, p. 5-6) critica a amplitude conferida a esses direitos, o que tornaria difícil a sua concretização: “O erro deles é prometer demais: a vida, a cultura, a saúde igual para todos: um transplante do coração para todo cardíaco? Haveria só com o direito de todo o francês “à saúde”, com o que esvaziar o orçamento total do Estado francês, e cem mil vezes mais! (…) As promessas das Declarações têm ainda menos possibilidades de ser cumpridas porque suas formulações são incertas, indeterminadas. (…) É delicioso ver-se prometer o infinito: mas, depois disso, surpreenda-se se a promessa não for cumprida!”
Segundo Comparato (2001), uma das principais falhas da teoria dos direitos humanos é não ter percebido que o objeto dos direitos prestacionais é justamente uma política pública. O direito humano de acesso à saúde é um direito que o cidadão tem a ações positivas do Estado. Esse direito prestacional pode ser efetivado por meio de ações fáticas ou normativas. Como vimos, a gestão administrativa deve disponibilizar, através do SUS, um acesso universal, célere, gratuito e descentralizado ao sistema de saúde. Entretanto, como é cediço, muitas vezes o acesso à saúde somente é disponibilizado por meio de um processo judicial, o que acarreta a chamada judicialização do direito à saúde.
3 o direito ao processo justo COMO VIA PARA A OFERTA DE PROTEÇÃO EFETIVA À SAÚDE
O Direito ao Processo Justo também pode ser considerado como um direito que o jurisdicionado possui de exigir ações positivas do Estado. Nesse passo, os critérios para uma avaliação do Processo Justo podem ter por fundamento o que propõem Comoglio (2004, p. 409) ao elencar as bases constitucionais mínimas do processo civil justo para a América Latina, definindo o seguinte: “A jurisdição se exerce e se atua mediante um processo <<justo>> (ou equitativo). Se considera <<justo>> todo tipo de processo cujas garantias fundamentais sejam reguladas pela lei, em respeito pleno dos direitos invioláveis do homem (…). (tradução nossa)[1].”
No caso específico do acesso à saúde, considerando que se busca solução efetiva e celeridade para os conflitos dessa ordem, o processo justo pode ser alcançado, dentre outras formas, através da utilização de meios alternativos para a resolução de conflitos e do respeito à duração razoável do processo. Inicialmente, é recomendável que se busque uma solução por meio da mediação ou da conciliação. No entanto, caso inexitosa essa tentativa de acordo, é fundamental que nas demandas judiciais em que se postula o acesso à saúde o processo tenha uma duração razoável, diante da urgência que é inerente a esse tipo de ação.
Nessa perspectiva, refere Rotunno (2011, p. 15): “Na lição de Bernardo Sorj, ‘a judicialização do conflito social leva à transferência das expectativas de atendimento de demandas e resolução de conflitos sociais para o poder judiciário, que seria o único fiador da convivência e o único poder confiável.’ De fato, vários problemas têm sido evidenciados. A demora na prestação jurisdicional é apenas um deles. (…) São ínfimos os espaços para negociação e composição na via judiciária. Assim, passa a ser crucial a procura por outras formas de solução de conflitos, que possam, com autoridade e reconhecimento, satisfazer as partes envolvidas.”
Em síntese, o direito à saúde tem como fundamento o princípio da dignidade da pessoa humana, sendo um direito social, indisponível, imprescritível e, acima de tudo, um direito humano. Por essas razões, quando o Estado, através de seus órgãos administrativos, não disponibiliza o devido acesso à saúde, cabe ao Poder Judiciário resguardar o acesso amplo à justiça, permitindo uma tutela jurisdicional efetiva e célere em demandas desta ordem.
3.1 Os meios alternativos de resolução de conflitos e a proteção ao direito à saúde
A partir da década de 1960, com maior ênfase nos anos 70, nasce nos Estados Unidos um movimento do meio jurídico e político conhecido como ‘Alternative Dispute Resolution’ (ADR).
Cappelletti (1994) considera a ADR como a terceira onda de acesso à justiça, a qual denomina de justiça coexistencial, porquanto as partes têm uma participação corresponsável na solução dos conflitos. A primeira onda consagrava a gratuidade das custas judiciais e a defensoria pública para os necessitados, tendo a segunda onda previsto as ‘class actions’, legitimando ações coletivas.
Decerto, os meios alternativos de resolução de conflitos representam instrumentos de efetivação do direito ao processo justo. Em demandas de saúde, a solução rápida e consensual, decorrente da utilização da mediação e da conciliação, proporciona, acima de tudo, a concretização do direito fundamental à saúde do jurisdicionado. Vem ao caso mencionar Alvarez (2003, p. 304): “[…] o poder das partes para resolver seus próprios conflitos é a expressão de uma sociedade democrática e o acesso à justiça para os grupos mais necessitados é a expressão de uma sociedade justa.” (tradução nossa)[2].
Nessas demandas, a conciliação prévia pode ser uma alternativa eficaz de resolução de conflitos. A respeito, Gilmar Mendes (2009), Ministro do Supremo Tribunal Federal, mencionou a experiência das Defensorias Públicas do Rio de Janeiro e de São Paulo, que buscam a conciliação e alternativas no plano administrativo, principalmente para os casos que envolvem direitos no Sistema Único de Saúde (CONCILIAÇÃO…, 2009).
Outro exemplo pode ser visto no Distrito Federal, onde a Câmara Permanente Distrital de Mediação em Saúde (CAMEDIS), instituída em parceria com a Defensoria Pública do Distrito Federal (DPDF) e a Secretaria de Estado de Saúde (SES), foi selecionada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) como experiência a ser avaliada no estudo sobre direito à saúde no país (CÂMARA…, 2014a).
Na mesma trilha, o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso propôs à Secretaria de Estado de Saúde (SES) a criação de uma Câmara de Conciliação para fomentar acordos extrajudiciais dos usuários do sistema de saúde. Um grupo de trabalho formado por integrantes do Poder Judiciário e da Secretaria da Saúde vai elaborar um modelo a ser formalizado via termo de parceria entre os órgãos (CÂMARA…, 2014b).
Ainda, no âmbito de atuação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, recomendou-se a criação de Comissão Permanente de Conciliação para a área de Saúde, em cada unidade da federação. Tal órgão seria composto por representantes do Poder Judiciário, Ministério Público Federal, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, representante da Ordem dos Advogados do Brasil, representante da Procuradoria do Estado e representantes dos Municípios, assessorada por uma Comissão Técnica multidisciplinar (médicos, farmacêuticos, psicólogos, outros profissionais da área de saúde e integrantes do meio acadêmico) com atribuição de identificar as causas passíveis de conciliação e estabelecer medidas de ordem prática para realização de audiências de conciliação (BRASIL, 2014).
Por fim, recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo informou que será implantado um núcleo para mediar ações envolvendo assistência à saúde, é o chamado Núcleo de Apoio Técnico e de Mediação (NAT). O Tribunal de Justiça de Minas Gerais possui experiência similar desde 2012, em parceria com o Comitê Estadual de Saúde de Minas Gerais e o Hospital das Clínicas (Celeridade…2015).
3.2 O direito à duração razoável do processo e a tutela do direito à saúde em juízo
Entende-se que o prazo razoável do processo é aquele que permite o exercício de todos os direitos e faculdades processuais no menor tempo possível. Para isso, deve ser considerado o comportamento das partes (atuação processual do autor e do réu), a complexidade da causa (fática e jurídica), comportamento das autoridades (prestação jurisdicional), a passagem do tempo (litigantes doentes ou idosos) e a importância do direito em litígio (direitos fundamentais sobre direitos meramente patrimoniais), como esclarece Guerreiro (2007).
Especificamente no que se refere às ações que buscam a proteção do direito fundamental à saúde, é importante destacar alguns procedimentos judiciais que asseguram um acesso à justiça em tempo razoável. Nessas demandas, o tempo é o fator de maior relevância, visto que o seu transcorrer pode acarretar a piora do estado de saúde do postulante ao direito.
Em vista disso, em ações que pleiteiam o acesso à saúde existe a possibilidade de o juiz deferir a tutela provisória de urgência, que pode ser concedida em caráter antecedente ou incidental, quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo, conforme dispõe o art. 294, parágrafo único e o art. 300, caput do Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015).
Outrossim, nos termos do art. 1º da Lei nº 12.016/2009, o procedimento do mandado de segurança serve para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça. No caso das demandas que postulam o fornecimento de medicamentos, ensina Gomes (2012, p. 20): “O direito líquido e certo para a concessão de medicamento pode ser comprovado de plano com a prescrição médica. Resta claro que a dúvida em relação ao medicamento incidirá responsabilidade civil do médico, não violação ao direito do paciente. Em outras palavras, a dúvida que incide sobre a real necessidade ao medicamento, já atestado pelo médico, influi diretamente na dúvida da própria prescrição médica.”
Por derradeiro, o rito dos Juizados Especiais da Fazenda Pública, previsto na Lei nº 12.153/2009, do mesmo modo possibilita uma tramitação mais célere das ações judiciais que envolvem o direito à saúde, destacando-se que não há prazo diferenciado para a prática de qualquer ato processual pelas pessoas jurídicas de direito público, inclusive a interposição de recursos (art. 7º). Contudo, a competência nesse procedimento é limitada ao valor de 60 (sessenta) salários mínimos (art. 2º).
4 CONCLUSÃO
A Constituição Federal de 1988 representou uma evolução teórica no sistema constitucional brasileiro, a qual deveria ter acarretado reflexos na realidade social e política do país. A função das normas programáticas era justamente estimular as mudanças que a sociedade necessitava. Porém, não foi o que ocorreu.
Na atualidade, verificam-se constantes omissões dos poderes públicos em relação ao resguardo de direitos sociais previstos na Carta Magna, como é o caso do acesso universal à saúde. Além de tudo, o Poder Legislativo se mostra inerte em promover mudanças na legislação do sistema de saúde pública do país e o Poder Executivo desenvolve uma péssima gestão dos recursos públicos destinados ao setor.
Nessa conjuntura, a crise do sistema de saúde brasileiro vem sendo enfrentada pela atuação ativa de Advogados, Defensores Públicos, Promotores de Justiça e Juízes de Direito. A procedência de ações judiciais dessa natureza, além de proteger um direito fundamental do cidadão, representa uma resposta de caráter positivo do Poder Judiciário, reconhecendo-se um direito prestacional em favor do jurisdicionado, que não é cumprido pelos demais Poderes.
O Estado deve amparar a defesa dos direitos fundamentais do cidadão e reprimir a violação da dignidade da pessoa humana de todas as formas possíveis, a princípio pelo ordenamento jurídico ou pela gestão pública, senão pelo próprio Poder Judiciário.
Ademais, nas demandas judiciais da saúde é apropriada a aplicação do referencial da alteridade para o reconhecimento de direitos existenciais do ser humano. Na bioética tal parâmetro representa um de seus fundamentos.
Dessa forma, os julgamentos serão mais humanos e sensíveis ao reconhecimento de direitos existenciais, compreendendo-se o sofrimento enfrentado pelo cidadão que é privado do devido acesso à saúde.
Informações Sobre o Autor
Frederico Antônio Azevedo Ludwig
Especialista em Direito Constitucional pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Advogado licenciado atua como Assessor de Procuradoria de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul