Resumo: Trata-se de ensaio acerca da análise jurídica da legalidade de Policial Civil ou Militar, ocupantes de cargo público da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, exercer atividade de magistério privado.
Palavras-chave: Policial; magistério; ensino.
Sumário: 1. Introdução. 2. Norma Constitucional. 3. Norma infraconstitucional. 3.1. Policial militar do Estado de São Paulo. 3.2. Policial civil do Estado de São Paulo. Conclusão. Bibliografia.
1. INTRODUÇÃO
Apesar do texto constitucional e da existência de legislação infraconstitucional estabelecer regras excepcionais quanto à vedação ao acumulo de cargos, funções ou empregos públicos, e produção doutrinária a respeito de seus conceitos e definições, paira ainda no setor público a confusão acerca da possibilidade do ocupante de cargo público exercer atividade de ensino, magistério ou de difusão cultural.
Este ensaio objetiva destacar e fomentar o debate compatível com a ordem constitucional e democrática brasileira.
Considerando a necessidade de limitação do presente texto, faz-se corte epistemológico estabelecendo análise da hipótese voltada ao exercício do magistério por policiais da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, porém, ao menos no aspecto constitucional, aplica-se aos demais Estados.
2. NORMA CONSTITUCIONAL
Segundo Celso Antônio Bandeira de Mello,
“Cargos são as mais simples e indivisíveis unidades de competência a serem expressas por um agente, previstas em número certo, com denominação própria, retribuídas por pessoas jurídicas de Direito Público.
Os servidores titulares de cargos públicos submetem-se a um regime especificamente concebido para reger esta categoria de agentes. Tal regime é estatutário ou institucional; logo, de índole não-contratual.
Funções públicas são plexos unitários de atribuições, criados por lei, correspondentes a encargos de direção, chefia ou assessoramento, a serem exercidas por titular de cargo efetivo, da confiança da autoridade que as preenche (art. 37, V, da Constituição). Assemelham-se, quanto à natureza das atribuições e quanto à confiança que caracteriza seu preenchimento, aos cargos em comissão. Contudo, não se quis prevê-las como tais, possivelmente para evitar que pudessem ser preenchidas por alguém estranho à carreira, já que em cargos em comissão podem ser prepostas pessoas alheias ao serviço público, ressalvado um percentual deles, reservado aos servidores de carreira, cujo mínimo será fixado por lei.
Empregos públicos são núcleos de encargos de trabalho permanentes a serem preenchidos por agentes contratados para desempenhá-los, sob relação trabalhista, como, aliás, prevê a Lei 9.962, de 22.2.2000. Quando se trate de empregos permanentes na Administração direta ou em autarquia, só podem ser criados por lei, como resulta do art. 61, § 1º, II, “a”.
Sujeitam-se a uma disciplina jurídica que, embora sofra inevitáveis influências advindas da natureza governamental da contratante, basicamente, é a que se aplica aos contratos trabalhistas em geral; portanto, a prevista na Consolidação das Leis do Trabalho.” [1]
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 veda a acumulação remunerada de cargos, empregos e funções na Administração direta ou indireta, ressalvadas exceções expressas.
“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (…)
XVI – é vedada a acumulação remunerada de cargos públicos, exceto, quando houver compatibilidade de horários, observado em qualquer caso o disposto no inciso XI.
a) a de dois cargos de professor;
b) a de um cargo de professor com outro técnico ou científico;
c) a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas;
XVII – a proibição de acumular estende-se a empregos e funções e abrange autarquias, fundações, empresas públicas, sociedades de economia mista, suas subsidiárias, e sociedades controladas, direta ou indiretamente, pelo poder público;” (destacado)
Segundo José Afonso da Silva:
“não é permitido a um mesmo servidor acumular dois ou mais cargos ou funções ou empregos, nem cargo com função ou emprego, nem função com emprego, quer sejam um e outros da Administração direta ou indireta, quer sejam um daquela e outra desta – art. 37, XVI e XVII).” [2]
Quanto à proibição de acumulação remunerada, Celso Antônio Bandeira de Mello registra:
“Também para evitar abusos, veda-se a acumulação remunerada de cargos, funções ou empregos tanto na Administração direta como na Administração indireta ou fundacional e reciprocamente entre elas, conforme dispõem os incisos XVI e XVII do art. 37, ressalvadas certas hipóteses expressamente arroladas, desde que haja compatibilidade de horários e respeitado o teto de remuneração. A saber: a de dois cargos de professor; a de um cargo de professor com outro técnico ou científico e a de dois cargos ou empregos privativos de profissionais de saúde, com profissões regulamentadas”. [3]
O que a Constituição Federal veda é o acumulo de cargo, função ou emprego dentro da Administração direta ou indireta, não se verificando proibição do exercício regular desse cargo, função ou emprego concomitantemente a atividade de docência (magistério) privada. Assim, desde que legalmente exercida, o magistério privado por ocupante de cargo, emprego ou função dentro da Administração direta ou indireta, não afronta a regra do art. 37, inc. XVI e XVII.
Sequer fale-se de exceção a regra de proibição de acumulo, pois a norma constituição trata exclusivamente de acumulo dentro da Administração, ou seja, proíbe acumulo de dois cargos, duas funções ou dois empregos dentro da Administração direta ou indireta, ou ainda combinações destes também dentro da Administração (acumulo de cargo com função, função com emprego, ou cargo com emprego).
3. NORMA INFRACONSTITUCIONAL
3.1. Policial militar do estado de São Paulo
O magistério privado por parte do policial militar, desde que não haja prejuízo ao serviço Policial Militar nem emprego de meios do Estado, não incorre em transgressão a Lei Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo.
O Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região traz luz à interpretação quanto a permissão constitucional do exercício de cargo público concomitantemente a atividade de magistério privado. A referida decisão não é produto da inusitada e isolada posição de seu relator, mas da interpretação literal do texto constitucional, lamentavelmente por vezes não compreendido por muitos ao ponto do judiciário ser movido para declarar o óbvio (como no Recurso Ordinário nº 02970115713/SP).
“A vedação do art. 37, XVI, da Constituição Federal limita-se a acumulação de dois cargos públicos, nada opondo a que se ative o funcionário em outra atividade no setor privado. Se, no caso do Policial Militar, houver proibição expressa da Corporação a que se subordina, terá ocorrido mera infração do Policial Militar com relação àquela entidade”. (TRT – 2ª Região – 7ª Turma – Recurso Ordinário nº 02970115713/SP – Rel. Juiz Gualdo Formica, decisão: 24nov.1997). (negritado)
Alexandre de Moraes registra que “a regra constitucional – CF, art. 37, XVI – é pela vedação de qualquer hipótese de acumulação remunerada de cargos públicos” [4]. A transparência do texto constitucional é tamanha que chega a dificultar a elaboração de comentários dos autores.
No mesmo sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro ao tratar de normas de exceção de acumulo de cargo, função ou emprego público, registra que “… pode exercer uma função pública de magistério, nenhuma restrição havendo quanto ao magistério particular” [5]. A referida autora apenas ressalta o obvio estabelecido pela Constituição Federal de 1988 que apenas proíbe acumulo de cargo, função ou emprego público, portanto, não proibindo atividade privada de magistério.[6]
Mesmo diante do texto constitucional, quer pelo desconhecimento de algumas autoridades administrativas dos conceitos jurídicos envolvidos ou por divergências de interpretação da regra constitucional, verifica-se inda a necessidade de recorrer à legislação ordinária para esclarecer a “legalidade” da hipótese em comento. Assim, como verdadeira inversão da pirâmide das normas, faz-se necessário por vezes buscar o direito no texto infraconstitucional por desconhecimento ou desconsideração de norma constitucional.
A Lei Ordinária (SP) nº 10.291/68, que institui,na Secretaria da Segurança Pública o Regime Especial de Trabalho Policial estabelece:
“Art. 1º – (…)
Parágrafo único – O Regime Especial de Trabalho Policial de que trata este artigo se caracteriza:
II – pela proibição do exercício de qualquer atividade particular remunerada, exceto as relativas ao ensino e à difusão cultural.” (negritado)
A Lei nº 10.291/68 expressamente incapacita qualquer interpretação distinta da permissão de atividade de ensino, independentemente de privado ou público.
Tal posição é corroborada pelos autores COIMBRA, COSTA, HENRIQUES, MELLO, ROCHA e SILVA ao comentar o art. 13, nº 26, da Lei Complementar nº 893/01 (Lei Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo):
“Quanto ao exercício de qualquer atividade estranha à policial militar deve ser demonstrado também o vínculo com determinada pessoa, seja natural ou jurídica, e determinante de uma das conseqüências previstas no tipo, que é o prejuízo ao serviço abstrato ou concreto, ou o emprego de meios, materiais ou pessoais, pertencentes ao Estado.”[7]
Os referidos autores posicionam-se de maneira clara a respeito da proibição exclusiva das hipóteses de atividade estranha à polícia militar em que haja prejuízo ao serviço abstrato ou concreto ou emprego de meios, materiais ou pessoais pertencentes ao Estado. No mesmo sentido SOARES, MORETTI e SANCHES [8].
3.2. Policial civil do estado de São Paulo
No caso do policial civil do Estado de São Paulo o legislador ordinário por meio da Lei Complementar nº 207/79 (LOP – Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo) adotou técnica distinta ao estabelecer regra referente ao regime especial de trabalho policial (RETP), dentro do capítulo “do vencimento e outras vantagens de ordem pecuniária”. Tratando-se de texto alinhado a norma que estabeleceu o REPT (art. 1º da Lei nº 10.291/68), o art. 44 da LC 207/79 reza:
“Art. 44 – Os cargos policiais civis serão exercidos necessariamente em regime especial de trabalho policial, que se caracteriza: (…)
III – pela proibição do exercício de outras atividades remuneradas, exceto as relativas ao ensino e à difusão cultural.”
Mesmo sendo cristalina a norma legal acima transcrita é pertinente o registro do comentário de ANGERAMI e PENTEADO FILHO:
“Este artigo define o que se entende por Regime Especial de Trabalho Policial, isto é, (…) à vedação do desempenho de quaisquer outras atividades remuneradas, ainda que compatíveis na carga horária, exceto aquelas respeitantes ao ensino e a difusão cultural.
Note-se que o legislador alargou o permissivo, pois aos policiais permitem-se não só as atividades de docência, como também quais outras relacionadas à difusão de cultura”.[9]
A LOP em seu art. 63 estabelece:
“Art. 63 – São transgressões disciplinares:
LIV – exercer, mesmo nas horas de folga, qualquer outro emprego ou função, exceto atividade relativa ao ensino e à difusão cultural, quando compatível com a atividade policial;”
A respeito do tipo transgressional citado, ANGERAMI e PENTEADO FILHO posicionam-se da seguinte forma:
“Ressalta-se que o legislador excepcionou a proibição de acumulação remunerada, a exemplo da diretriz constitucional do art. 37, inciso XVI, permitindo, desde que haja compatibilidade, o exercício de atividades relativas ao ensino e à difusão cultural.
À primeira vista pode parecer que ao policial civil apenas permite-se o exercício de atividades de ensino (como instrutor ou professor), o que não é verdade, pois o Estatuto Disciplinar disse também atividades de difusão cultural, o que permite, por exemplo aos policiais, quer delegados, peritos, legistas, investigadores etc., o exercício de coordenação, direção de cursos superiores, preparatórios para concursos etc., desde que exista compatibilidade de horários com o serviço policial”.[10]
CONCLUSÃO
Conclui-se que o texto constitucional veda apenas acumulo de cargos, empregos e funções públicas, não proibindo ao ocupante destes a atividade de ensino privado por não constituir cargo, emprego ou função. A regra constitucional é, com não poderia deixar de ser, geral, fixando tão somente a proibição de acumulo de cargos, empregos ou funções públicas, não vedando atividade privada, o que só poderia ocorrer pela legislação infraconstitucional, federal ou estadual. [11]
No âmbito infraconstitucional há expressa permissão por meio de Lei Estadual Paulista (Lei 10.291/68). Na esfera administrativa disciplinar da Polícia Militar e Polícia Civil, respectivamente há a permissão da Lei Complementar nº 893/01 (Lei Disciplinar da Polícia Militar do Estado de São Paulo) e Lei Complementar nº 207/79 (LOP – Lei Orgânica da Polícia do Estado de São Paulo). Soma-se ainda farta posição doutrinária no âmbito constitucional e administrativo, além de decisões judiciais já transitadas em julgado. Ressalta-se ainda que tais posições e normas infraconstitucionais estão em vigor, portanto não afrontando a norma constitucional, ao contrário só explicitam o que a norma constitucional possibilitou por meio da não vedação.
O presente texto tem por objetivo final dirimir a ‘dúvida’ ainda existente na Administração Pública e fomentar não só o debate acerca do tema mas sobretudo o magistério público e privado por parte dos ocupantes de cargo público (extensível a empregos e funções).
Informações Sobre o Autor
Eduardo Henrique Alferes
Mestre em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Pós-graduado em Direito Penal pela Escola Superior de Advocacia (ESA/OABSP). Pós-graduado em Direitos Humanos e Direito Internacional Humanitário. Especialista em Justiça e Sistema Criminal pela Universidade de São Paulo (USP).Professor universitário com docência em Direito Penal, Direito Processual e Penal Militar, e Direitos Humanos.