Sumário: 1. Do objetivo – 2. A dignidade da autodeterminação social: princípio ético da constituição humana do cidadão – Referência bibliográfica.
1. DO OBJETIVO
Quando buscamos o Poder Judiciário, a fim de reivindicar ou resguardar um direito, temos em vista assegurar a efetividade das normas que regem a convivência em sociedade diante de um conflito de interesses. Por trás dessa ânsia está a segurança jurídica e a certeza do direito. A segurança jurídica consubstancia-se no sentido que se deve entender a regra positivada em lei; já a certeza do direito se manifesta na garantia da aplicação de tal regra, no sentido consagrado por aquele entendimento. A soma dessas duas noções encerra a efetividade da norma: segurança daquilo que seja correto e a certeza de sua aplicação.
Por outro lado, é comezinho que o sentido que se espera da norma seja aquele que revele o mais profundo apego a dignidade da pessoa humana, tendo em vista a consagração do humanismo como categoria constitucional.[1]
No conteúdo de tal princípio se insere o princípio da autodeterminação social, como garantia de formação concreta do ser humano, integrado na sociedade, preparado para o exercício autônomo e criador de suas funções sociais (emancipação intelectual e visão crítica de mundo), ou seja, um cidadão.
A efetivação dos direitos fundamentais, inerentes ao estatuto mínimo da dignidade humana, passa necessariamente pelo princípio da proibição do retrocesso social e a forma como deve ser manejado.
Do ponto de vista da estabilidade constitucional, como corolário de segurança jurídica, o ordenamento brasileiro admite a repercussão implícita de princípios que pontifiquem as regras gerais delineadas.
Desse modo, o Estado de Direito (que se queira democrático) se faz mais efetivo, em condição mais estável, quanto mais se permita aproximar do equilíbrio propalado nas normas positivadas, considerando que representam a evolução social daquele determinado grupo humano. Nesse sentido, um princípio que garanta a proibição de retrocesso surge como lenitivo das vicissitudes do sistema normativo.
2. A DIGNIDADE DA AUTODETERMINAÇÃO SOCIAL: PRINCÍPIO ÉTICO DA CONSTITUIÇÃO HUMANA DO CIDADÃO
O verbete “Autonomia”, no Dicionário de Ética e Filosofia Moral, de Monique Canto-Sperber,[2] registra que era empregada originalmente no registro político para significar a independência ou a autodeterminação de um Estado. Rousseau esteve na origem da ampliação do conceito de autonomia na esfera jurídico-política (embora não tenha empregado esse termo), com sua definição de liberdade como “obediência à lei”. Kant, por sua vez, introduz a concepção em que a autonomia é inicialmente definida como “a propriedade que tem a vontade de ser por ela mesma sua lei (independentemente de toda propriedade dos objetos do querer)”.
Na mesma passagem, Kant sustenta que a autonomia, assim entendida, é o princípio supremo da moralidade, como condição de possibilidade de um imperativo categórico. Desse modo, seria legítimo atribuir a autonomia à vontade de todos os agentes racionais, neles incluída, conseqüentemente, a vontade humana.
Para Kant, o imperativo categórico está vinculado a agentes racionais, simplesmente porque são racionais, e portanto, aquele que não aceitar um tal argumento incorre em ser irracional – ou seja, um julgamento moral deve ser respaldado por razões plausíveis.
Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant formula a regra do imperativo categórico da seguinte forma: aja somente conforme aquela máxima pela qual simultaneamente você pode desejar que tal ato torne-se uma lei universal. Outra formulação também foi apresentada: aja de maneira que aborde a humanidade, seja em seu nome, seja no de outra pessoa, sempre como um fim e nunca como um meio.
São humanistas as ações que visam o ser humano, tais como a autodeterminação. Essa idéia está presente em todas as formas de atividade humana, porque sintetiza o comportamento do indivíduo diante de si mesmo e dos outros, da natureza e do tempo. Em resumo, é o homem como sujeito de sua liberdade. Está estreitamente ligado ao valor dignidade, inerente a todo ser humano. Por isso, tomado o princípio da livre determinação como imperativo categórico inserto no seio da Constituição Federal brasileira, que consagra liberdades de pensamento, consciência, expressão, crença, culto, locomoção, seria irracional ceifar qualquer dessas liberdades do ser humano.
No entanto, numa sociedade em que há cada vez menos espaço para as liberdades e escolhas individuais, o predeterminismo – no direito (processual, inclusive) e na educação, sobretudo (já que não há educação neutra) – torna-se marcante. Bourdin fala em perda da identidade em um local plural, que sufoca os perímetros claros de uma identidade local, duráveis e justificados pela natureza, pelos traços culturais ou por uma legitimidade histórica.[3] Focaliza-se o direito e a educação no presente estudo, pois estão sujeitos a ser utilizados como instrumento de dominação ou de controle social pela domesticação.
Sendo assim, impõe-se questionar como, em que medida, tem sido resguardado o princípio de autodeterminação na educação e no direito? Existem políticas públicas preocupadas com o tema? Qual o papel do Estado na preservação dos traços culturais ou da legitimidade histórica de nossa identidade e de nosso direito à autodeterminação? De que maneira pode a educação produzir consensos sociais básicos e preparar para a integração na sociedade?
De fato, são muitas as questões que requerem nossa máxima atenção, em vista da maior qualidade possível à promoção do ser humano. No entanto, nesse pequeno espaço será necessária a delimitação do assunto, restringindo-o à verificação da observância do princípio de autodeterminação no direito processual, como valor ético inerente à formação humanista.
A história da autodeterminação está ligada à da doutrina da soberania do povo proclamada pelos revolucionários franceses que afirmaram a necessidade de se fundar o governo na vontade do povo e não na do monarca, de modo que as pessoas descontentes com o governo do país onde se encontram deveriam poder dele se separar e se organizarem como bem quisessem. Isso significa que o elemento territorial numa unidade política perdeu sua predominância feudal em favor do elemento pessoal: os cidadãos deixam de ser simples bens dependentes da terra.
Aparentemente a expressão surge primeiro nos escritos dos filósofos radicais do século XIX, na Alemanha. Também nas conferencias socialistas a expressão é utilizada, embora com propósitos diversos. Originalmente, o princípio da autodeterminação tanto foi concebido do direito individual de rebelião contra a tirania quanto o de lutas sucessivas dos povos contra diferentes formas de dominação, aparecendo, pois, como princípio de libertação e de luta contra a dominação.
Enquanto o conceito de soberania implica necessária e automaticamente num status político particular, o da autodeterminação não. O que mais importa no conteúdo dessa expressão é o direito de escolher em que ele implica; além disso, trata-se de uma norma imperativa de direito internacional geral e que não pode ser derrogada por nenhuma outra. É a pedra angular sobre a qual se assenta o protagonismo dos povos. A autodeterminação tornou-se um valor independente e absoluto.
Somente no Estado Democrático de Direito, o indivíduo é considerado em seu devido valor, porque a democracia representa meio necessário à realização das aspirações do homem. O indivíduo como valor depende da filosofia de sua época, especialmente da filosofia política. É de se notar, no entanto, que não se toma o individualismo no sentido dado pelo liberalismo, da civilização do bem-estar consumista, de relativização em que a felicidade se sobrepõe à ordem moral, uma cultura materialista e hedonista.
O princípio de autodeterminação se refere ao sentido de liberdade do ser, por isso é de natureza filosófica. Revela-se a partir de sua visão de mundo, ou seja, da consciência que se tem a respeito de sua realidade, o que, no limite, o leva a perceber, sob diferentes prismas, o real e atribuir-lhe significado.
O fenômeno da autodeterminação é visto a partir da perspectiva de conscientização, uma vez que é a consciência de ser-no-mundo que torna possível, ao homem, vivenciá-lo em propriedade. Por isso, está sujeito à determinada realidade social, e é constituído de significados sociais, cuja compreensão supõe motivos e intenções, a partir dos quais essas manifestações se tornam significativas.
Mas será que esse princípio é respeitado quando, tendo em vista a solução de um litígio, se permite um retrocesso social?
tc_kant.htm>, acessado em 15/04/2008.
Informações Sobre o Autor
Frederico A. Paschoal