Resumo: objetiva o presente estudo defender a tese da existência de flagrante inconstitucionalidade no artigo 285-A, inserido, pela Lei nº 11.277/2006, ao CPC.
Sumário: 1. O Texto em Análise. 2. A Tese da Inconstitucionalidade. 3. A Tese da Constitucionalidade. 4. Uma Proposta de Interpretação Conforme a CRFB/1988? 5. A Nossa Opinião. Bibliografia.
1. O Texto em Análise:
Disciplina o artigo 285-A, inserido ao CPC, pela Lei 11.277/2006, que, “quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos[1], poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada”.
Muito tendo falado nossa doutrina processual, sobre os contornos que envolvem essa novel hipótese de improcedência initio litis, questionando, alguns setores, a sua constitucionalidade.
2. A Tese da Inconstitucionalidade:
Segundo professa o profícuo ALEXANDRE FREITAS CÂMARA, enfrentando o artigo 285-A, caput, do CPC, “trata-se de dispositivo que, a meu juízo, é inconstitucional. Digo isto por ver, nesse dispositivo, uma violação do princípio constitucional da isonomia”.[2]
Pois os entendimentos diversos dos vários juízos acarretarão processos com seu curso normal e outros com seu curso abreviado, para as varas onde já exista entendimento consolidado, sobre dada questão, pela improcedência do pedido.
Exclamando o autorizado processualista gaúcho DANIEL MITIDIERO que: “a pretexto de agilizar o andamento dos feitos, pretende o legislador sufocar o caráter dialético do processo, em que o diálogo judiciário, pautado pelos direitos fundamentais, propicia ambiente de excelência para reconstrução da ordem jurídica e conseguinte obtenção de decisões justas. Aniquila-se o contraditório, subtraindo-se das partes o poder de convencer o órgão jurisdicional do acerto de seus argumentos”.[3]
Vale grifar: para MITIDIERO o artigo 285-A do CPC, mais precisamente, estaria a ferir o contraditório do autor e não o do réu[4].
Aditando, nesse mesmo sentido, os eminentes LUIZ RODRIGUES WAMBIER, TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER e JOSÉ MIGUEL GARCIA MEDINA que: “a regulamentação infraconstitucional da Emenda Constitucional n. 45 e a conseqüente reforma do CPC têm sido palco de diversas iniciativas, algumas já transformadas em lei, evidentemente desprovidas de maior cuidado com o respeito à Constituição Federal. Veja-se, por exemplo, a infeliz regra do art. 285-A do CPC, que, a pretexto de permitir julgamento mais célere de processos ditos repetitivos, afasta irremediavelmente o princípio do contraditório”.[5]
Sendo ainda mais contundente o parecer de NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY, segundo os quais: “o CPC 285-A é inconstitucional por ferir as garantias da isonomia (CF, 5º, caput e inciso I), do devido processo legal (CF, 5º, caput e LIV), do direito de ação (CF, 5º, XXXV, do contraditório e da ampla defesa (CF, 5º, LV), bem como o princípio dispositivo, entre outros fundamentos, por que o autor tem o direito de ver efetivada a citação do réu…”[6].
Quanto ao devido processo legal, pela afetação do feixe de direitos e de garantias tradicionais condutoras do processo, desde o seu começo até ao seu fim.
E quando ao o direito de ação, mitigado ante ao súbito bloqueio da regular formação da relação jurídica processual.
Panorama em que, para esse bloco da doutrina, globalmente considerado, não se sustentaria o artigo 285-A do CPC, por ferino ao artigo 5º, caput e incisos I, XXXV, LIV e LV, da CRFB/1988.
3. A Tese da Constitucionalidade:
Entretanto, não é pacífica, em doutrina, a tese da inconstitucionalidade do artigo 285-A do CPC, existindo vozes das mais autorizadas que afirmam que a novíssima figura não infringiria qualquer princípio constitucional, apesar da supressão de quase todo o procedimento de primeira instância: nesse sentido, v.g., ANTONIO CLÁUDIO DA COSTA MACHADO[7].
Professando o conhecido ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS que o contraditório e a ampla defesa estariam assegurados pela faculdade reconhecida ao autor de recorrer da sentença de improcedência, não negada pelo parágrafo 1º, do artigo 285-A do CPC[8].
Ou seja, se bem entendemos, ainda que tenham sido postergados, esses princípios constitucionais teriam sido assegurados.
Argumentando o professor VICENTE GRECO FILHO, em defesa do texto legal, que “o contraditório, a ampla defesa e o devido processo legal devem conviver com a efetiva prestação jurisdicional, seriamente comprometida pela multiplicação de demandas com a mesma tese jurídica e que poderiam ser decididas rapidamente com o desafogo evidente da Justiça”[9].
Vale dizer: firme no moderno vetor da ponderação de valores, e nos ideais que vêm inspirando a reforma processual, os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal enfrentam releituras, em prol da efetividade da prestação jurisdicional.
Reverberando o laureado LUIZ GUILHERME MARINONI que “a multiplicação de ações repetitivas desacredita a Poder Judiciário, expondo a racionalidade do sistema judicial. Portanto, é lamentável que se chegue a pensar na inconstitucionalidade do artigo 285-A. Somente muita desatenção pode permitir imaginar que esta norma fere o direito de defesa”.[10]
Chegando o mestre MARINONI ao infeliz excesso de afirmar que a afirmação de inconstitucionalidade teria mais a ver com a intenção de garantir alguma reserva de mercado, já que seria sabidamente interessante, do ponto de vista financeiro, reproduzir, através de maquinas, petições e recursos absolutamente iguais.[11]
Dizemos infeliz excesso, pois não cremos que esse seria o intuito de mestres não menos aplaudidos, como, v.g., NELSON NERY JÚNIOR e TEREZA ARRUDA ALVIM WAMBIER, ao defender a tese da inconstitucionalidade.
4. Uma Proposta de interpretação Conforme a CRFB/1988?
Aos olhos do moderno CASSIO SCARPINELLA BUENO, enfrentando o artigo 285-A, caput, do CPC, “se tal qual redigido for ele aplicado, não há como suspeitar-se, fundamentalmente, da constitucionalidade do dispositivo. Até por que ele agride de forma clara a cultura a que estamos habituados de, mesmo naqueles casos em que já se sabe qual é o entendimento defendido pelo julgador, haver citação antes do proferir de qualquer decisão de cunho definitivo”.[12]
Mas, buscando salvar a constitucionalidade do artigo 285-A, assim se manifesta o badalado processualista da Escola da PUC-SP:
“Proponho, contudo, em nome da leitura sistemática do processo civil a que insistentemente me refiro – e que norteia, a bem da verdade, a produção destes meus comentários à mais recente etapa da reforma do Código de Processo Civil –, uma interpretação do art. 285-A em que “sentença do juízo” seja entendida simetricamente aos já referidos dispositivos de lei, isto é, súmula ou jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior”, para empregar, aqui, o referencial amplo do caput do art. 557, na redação da Lei n. 9.756/1998. Até porque, também por força de premissas fundantes do meu pensamento sobre o direito processual civil, esta é a única forma de manter o art. 285-A afinado ao “modelo constitucional de processo”, observando-se a forma potencializada o princípio da isonomia a que fiz referência acima“.[13]
Tese essa engenhosa, mais razoável do que a intenção do legislador reformador, mas que, a toda a evidência se distancia um pouco da letra fria do artigo 285-A do CPC.
Ao seu turno, o aclamado mestre CANDIDO RANGEL DINAMARCO, a despeito de, a priori, afirmar que não vislumbra qualquer inconstitucionalidade no artigo 285-A do CPC, exige, para a sua efetivação, que o juízo, antes de proferir a sentença de improcedência, venha a determinar a intimação do autor, tal qual ocorre nas hipóteses de emenda à petição inicial, sob o argumento de que, assim procedendo, estaria resguardado o contraditório e o diálogo que lhe é inerente[14].
Tese essa também interessante, mas é clara[15] a preocupação do inconfundível processualista da Escola da USP em salvar a constitucionalidade do artigo 285-A do CPC, pois, em momento algum, foi essa a intenção da Lei 11.277/2006, ao inserir, ao CPC, o polêmico artigo 285-A.
Sendo-nos nítido que estaríamos diante de propostas de interpretação conforme a CRFB/1988.
5. A Nossa Opinião:
Buscou-se, nesse despretensioso texto, enfrentar a questão da constitucionalidade, ou não, do artigo 285-A do CPC.
E, de nossa parte, ainda que reputemos bons os argumentos daqueles que, focando, basicamente, na razoável duração do processo e na efetividade da prestação jurisdicional, propõem uma releitura dos contornos dos dogmas do contraditório, da ampla defesa, do devido processo legal e demais garantias processuais, temos que essa hipótese de improcedência initio litis seja gritantemente inconstitucional.
Tanto por mitigar[16] o contraditório e a ampla defesa do autor[17], quanto por tornar vulnerável o dogma da isonomia[18].
Quanto à ofensa ao contraditório, para que se possa entendê-la, vale invocar a conhecida lição do insigne NELSON NERY JÚNIOR, sobre os contornos que informam esse princípio:
“Em razão da incidência da garantia do contraditório, é defeso ao julgador encurtar, diminuir, o direito de o litigante exteriorizar a sua manifestação nos autos do processo. Em outras palavras, não se pode economizar, minimizar a participação do litigante no processo, por que isso contraria o comando emergente da norma comentada”.[19]
Sendo, ao menos aos nossos olhos, muito difícil não enxergar que, no artigo 285-A do CPC, o legislador veio a prescrever hipótese em que se “encurta, diminui, economiza, minimiza” a participação do autor no processo civil.
O que faz emergir, para nós, a certeza de sua inconstitucionalidade, por mitigação ao contraditório.
Quanto à afirmação de ofensa à ampla defesa do autor, não vemos, em seu bojo, qualquer falta de técnica ou de atenção, posto ser corrente em doutrina a noção segundo a qual ampla defesa significa permitir às partes a dedução adequada de alegações que sustentem sua pretensão (autor) ou defesa (réu) no processo judicial[20].
Quadro em que admitindo falar-se em ampla defesa como direito que também é reconhecido ao autor, temos para nós que, a análise do artigo 285-A do CPC revela, igualmente, sua mitigação, ante a supressão de quase todo o procedimento de primeira instância, diminuindo, assim, sensivelmente, as oportunidades para sua manifestação e para influir no convencimento do juiz da causa.
O que faz emergir, para nós, a certeza de sua inconstitucionalidade, por mitigação da ampla defesa.
Quanto à agressão ao dogma da isonomia, como já aventado, afigura-se, ao nosso sentir, a que mais frontalmente decorre da análise do artigo 285-A do CPC.
Sendo irretocável o magistério de ALEXANDRE FREITAS CÂMARA, segundo o qual “o fato de haver a possibilidade de se ter juízos em que atuam magistrados com entendimentos diferentes acerca da mesma matéria fará com que para alguns essa regra seja aplicada e para outros, não, ainda que estejam em situações jurídicas substancialmente iguais”. [21]
E fazemos questão de grifar: se, ao nosso alvitre, o artigo 285-A do CPC mitiga o contraditório e a ampla defesa, a questão, quanto à isonomia, é ainda mais grave, por tornar vulnerável[22], em desfavor do jurisdicionado, a garantia de sua efetivação.
O que faz emergir, para nós, a certeza de sua inconstitucionalidade, por tornar vulnerável a garantia da isonomia.
Entretanto, não se pode deixar de louvar o esforço de interpretação de alguns processualistas que conduz, de um lado, à necessidade de prévia intimação do autor, pelo juízo, antes de se proferir a sentença de improcedência com base no artigo 285-A do CPC, tornando mais sensível o diálogo inerente ao contraditório; e de outro lado, que se considere, como requisito para essa hipótese de improcedência initio litis, que o seu parâmetro não seja uma simples “sentença do juízo“, mas, sim, Súmula ou Jurisprudência dominante do respectivo Tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou Tribunal Superior[23].
Vale grifar: ainda que o reputemos inconstitucional, aplaudimos os esforços de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO e de CASSIO SCARPINELLA BUENO para salvar o novel texto legal.
Sendo essas, em essência, as nossas sumárias impressões sobre o palpitante tema que nos propomos a enfrentar.
Informações Sobre o Autor
Alexandre Costa de Araújo
Especialista em Direito do Consumidor e em Direito Processual Civil. Membro Honorário da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Advogado, no Rio de Janeiro.