O linguajar jurídico-administrativo. O porquê de falar de maneira simples

Resumo: Pequeno artigo que trata da comunicação pela palavra entre o Poder Público (Administração Pública) e a grande massa da população. Esta comunicação precisa de um maior aprimoramento, que consiste basicamente na melhora da escolha do vocabulário e na objetividade da construção do contexto na informação.

Palavras-chave: Administração, linguagem jurídico-administrativa ininteligível, comunicação escrita.

Sumário: Introdução. Desenvolvimento do Tema. Conclusão. Referências

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Introdução

O aumento das relações entre o Estado e a sociedade faz com que este último se envolva cada vez mais na seara administrativa para lidar com a necessidade de solicitar ou reclamar por determinados serviços. A maioria destas relações que legalmente se impõe pela lei ou são captadas pelo que foi escolhido pelo livre arbítrio acabam por se consubstanciar em contratos administrativos que, hoje, obrigam o cidadão a conhecer o linguajar jurídico-administrativo que peca muitas vezes pela falta de clareza na interpretação, que turva o significado ou que dá uma visão errônea do significante, já que este não se fulcra na linguagem do dia-a-dia.

“(…) Falar é dar a entender alguma coisa a alguém mediante signos linguísticos. A fala, portanto, é um fenômeno comunicativo. Exige um emissor, um receptor e a troca de mensagens. Até o discurso solitário e monológico pressupõe o auditório universal e presumido de todos e qualquer um, ao qual nos dirigimos, por exemplo, quando escrevemos um texto ou quando articulamos, em silêncio, um discurso ao pensar. Sem o receptor, portanto, não há fala. Além disso, exige-se que o receptor entenda a mensagem, isto é, seja capaz de repeti-la. (…) Ora, exigindo a fala à ocorrência do entendimento, este nem sempre corresponde à mensagem emanada (…)” (Ferraz, Júnior, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 2ªed. São Paulo, 1996, p. 258-259).

A linguagem jurídico-administrativa existe para causar segragamento. Segregar conhecimento é uma forma de poder. Por várias vezes a Administração Pública se utiliza de palavras não usuais (fora do senso comum dos falantes) e termos jurídicos (que, a contrario sensu, possuem equivalentes ou sinônimos comuns a todos os falantes) para justificar certa burocracia excessiva, que muitas vezes se consubstancia na lavra de  “manuais de estilística e redação” publicados por muitos órgãos públicos.

O sociólogo e professor de Economia da Universidade de Coimbra, Dr. Boaventura de Sousa Santos ao escrever sobre o senso comum afirma que este é o menor denominador comum daquilo em que um grupo ou um povo coletivamente acredita. Se por um lado se revela como a forma de os grupos subordinados viverem as suas relações, também é interpretado pelo sociólogo como um poder, ou melhor, uma forma de construir uma resistência social, já que todos os falantes podem usar as palavras e termos advindas do sensu comum para a construção do coletivo.

Desenvolvimento do Tema

Não há conhecimento quando a relação sujeito-objeto não se completa.

Assim:

“Não há conhecimento sem a presença dos termos fundamentais do binômio sujeito-objeto, consistindo o segundo termo algo que projeta diante do primeiro. O objeto do conhecimento só adquire significado quando posto diante do sujeito que, para conhecê-lo, o distingue e relaciona. O sujeito cognoscente entra em contato com o objeto cognoscível, estabelecendo-se logo entre ambos um processo dinâmico de interdependência funcional. Não se cogita do objeto em si; nem do sujeito em sai. O objeto existe para o sujeito; o sujeito existe para o objeto. O sujeito cognoscente é o homem enquanto conhece. Sob o aspecto gnosiológico, o objeto existe para o sujeito, visto que o processo de conhecimento, na forma complexa e elevada que consideramos, é peculiar, tão-só, ao espírito humano” (José Cretella Júnior – Filosofia do direito administrativo. Rio de Janeiro. Ed. Forense: 1999, p. 20).

A despeito de não se entender a terminologia técnica jurídico-administrativa, esta ao se correlacionar com os cidadãos peca ao não utilizar uma linguagem mais simples, pois nem sempre a terminologia o apoio dicionaresco se demonstra útil. Neste sentido, buscando-se na origem da linguística a palavra e trabalhando com a noção de signos em Ferdinad de Saussure, (Capítulo I da Obra Curso de Linguística Geral),  podemos abstrair que os significados carecem de  laço com a realidade (arbitrariedade), assim, podemos sem erro substituir palavras que são usadas por um número limitado de falantes por termos ou palavras faladas pelo “comum” das pessoas a seu tempo.

“Não basta, todavia, dizer que a língua é um produto de forças sociais para que se veja claramente que não é livre; a par de lembrar que constitui sempre herança de uma época precedente, deve-se acrescentar que essas forças sociais atuam em função do tempo. Se a língua tem um caráter de fixidez, não é somente porque está situado no tempo. Ambos os fatos são inseparáveis. A todo instante, a solidariedade com o passado põe em xeque a liberdade de escolher. Dizemos homem e cachorro porque antes de nós se disse homem e cachorro. Isso não impede que exista no fenômeno total um vínculo entre esses dois fatores antinômicos: a convenção arbitrária, em virtude da qual a escolha se acha fixada. Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição, e é por basear-se na tradição que pode ser arbitrário” (SAUSSURE, Ferdinand de, p. 88)

 Estamos falando de conceitos, independente da imagem acústica do signo (in casu, a palavra). Por exemplo, o valor de “Administração” pode-se levar ao conhecimento de poder administrativo ou também de procedimentos/fazeres administrativos. Referida imagem é relacional, ou seja, ou se tem um significado ou se tem outro por exclusão do primeiro.  Particularmente o sentido linear do significante não causaria de per si maiores problemas a grande massa de falantes, o problema é na escolha de um sistema pertinente a todos.

Assim:

“A dificuldade do discurso, ao contrário do que ensinam os logísticos, é vencida por um sistema de termos próprios de cada ciência, até mesmo de cada profissão, denominada terminologia. Basta consultar um léxico comum e um dicionário de termos jurídicos, para verificar que em Direito o termo toma uma significação precisa diferente da linguagem comum. Consultem-se os dicionários de termos jurídicos a par de um dicionário comum. Na terminologia, termos que na linguagem comum são sinônimos tomam significação diferente.(…)” (grifos do autor) (Edmundo Dantès Nascimento. Lógica Aplicada a Advocacia. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 179). Referido autor exemplifica: (…) ‘“Art. 871. O protesto ou interpelação não admite defesa nem contraprotesto nos autos; mas o requerido pode contraprotestar em processo distinto.” Protesto e interpelação têm, no inciso, o mesmo significado, mas muitas vezes aparece o mesmo conceito em termos diversos “(Ob. citada, fls.182)”

Sabemos que os significados de “uso corrente” da língua são colhidos da circulação discursiva das pessoas. Temos que admitir, que a existência de intertextualidade de um texto técnico com os significados não pode ser inteligível aos destinatários de sua leitura, pois, Escrever é, como falar, uma atividade de interação, de intercâmbio verbal. Por isso é que não tem sentido escrever quando não se está procurando agir com outro, trocar com alguém alguma informação, alguma ideia, dizer-lhe algo, sob algum pretexto. Não tem sentido o vazio de uma escrita sem destinatário, sem alguém do outro lado da linha, sem uma intenção particular.

(…) Escrever, na perspectiva da interação, só pode ser uma atividade cooperativa. “Uma atividade em que dois ou mais sujeitos agem conjuntamente para a interpretação de um sentido (o que está sendo dito), de uma intenção (por que está sendo dito)” (grifos do autor) (Irandé Antunes, Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005, págs. 28/29)

O “juridiquês” nas relações com os administrados, cria uma rede semiológica de saber, de controle social e instrumento de poder alcançável somente aos poucos operadores que se fixam normalmente em um dos polos da relação. Usar ainda uma linguagem jurídica nas relações com o administrado é como rezar missa em latim, ou seja, ninguém entende. O contrário, é demonstração de falso eruditismo discursivo, de deslumbramento propedêutico que busca fomentar “castas” de falantes, pois:

“Numa sociedade estruturada de maneira complexa a linguagem de um dado grupo social reflete-o tão bem quanto suas outras formas de comportamento. Deste modo, essa linguagem vem a ser uma marca desse status social. As classes superiores dão-se conta desse fato e tentam preservar os traços linguísticos pelos quais se opõem às classes inferiores. Tais traços são considerados corretos e passa a haver um esforço persistente para transmiti-los de geração a geração. Esta atitude cresce em intensidade à medida que o impacto das classes inferiores se torna cada vez maior. O estuda da linguagem surge a fim de conservar-se inalterada a linguagem correta das classes superiores em seu contato com os outros modos de falar dentro dessa sociedade.” (Joaquim Mattoso Câmara Jr., História da Linguagem. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2011, pág. 16).

Exemplos:

“- No documento expedido ao administrado: “cite-se, intime-se, notifique-se” quando só se quer dar notícia, porque não usar o verbo informar que é usual (informamos que). Porque “supracitado”, “acima citado”, ao invés da pessoa destinatária já mencionada (expressões usadas em correspondências usuais, hoje, eletrônicas).

– Quando de recebe algum documento, porque não recebemos, ao invés de “temos em nosso poder” ; “levamos a seu conhecimento”. Melhor: Informamos (se tem em poder ou não, a quem interessa? Poder na posse?)

– “Dirigimo-nos à V.Sa.”. Melhor: Encaminhamos ou Remetemos a você (o particular não está preocupado com o “dirigir” e sim o motivo da correspondência (é isso que interessa);

– “Encaminhamos para dirimir dúvidas e suscitar esclarecimentos”. Melhor: Para esclarecer dúvidas ou buscar esclarecimentos. O particular não dirime seus problemas, nem costuma suscitar algo. Exemplo de palavras pouco usuais;

– “Certame”. “Convocamos V.Sa. para o certame que ocorrerá” Se concurso público, melhor: Concurso ou Disputa. Se licitação, melhor usar somente o nome da modalidade diretamente: Pregão, leilão, etc.;

– “Comunique-se ao cônjuge supérstite”. Melhor: Cônjuge sobrevivente;

– “Exordial”. Melhor: Inicial (peça que inicia, que começa);

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– “A Câmara de Recursos avocou para si o julgamento”. Melhor: Chamou para si;

-“Os documentos coligidos no recurso”. Melhor: Anexados;

– “Após a desapropriação e emissão na posse pela Administração”. “Melhor: Após a entrada na posse”;

– etc.;”

Assim, vejamos, trecho do artigo da Professora Cláudia Roesler[1]:

“Por isso”, quando se deseja uma maior precisão numa determinada área recorre-se a formação de linguagens artificiais, com termos técnicos, cujo papel é o de permitir um manuseio mais adequado das palavras Porém, essa ‘tecnificação’ da linguagem significa também o aumento da possibilidade de incompreensão, porque só serve para esclarecer aqueles que já possuem o código. Quando usamos a linguagem técnica do direito, por exemplo; tornamos nossa fala quase indecifrável para quem não o tenha estudado” (…) (grifei)

 A proposta é simplificar os termos sem empobrecer a linguagem. Entendemos que “democratizar a palavra”, sem vulgarizá-la, é garantir o direito à informação em todos os níveis sociais. É uma grande falácia dizer que os operadores do Direito ou funcionários públicos sejam obrigados a utilizar a linguagem jurídica ou formal administrativa (linguagem técnica) ao invés da linguagem usual.

Corrobora com esse entendimento o trabalho da Prof.ª Susana Morais, Comunicação e Estranheza: Contingências da Intersubjetividade. Nesta obra, a Prof.ª dedica o capítulo 1 de seu livro as teorias de Jürgen Habermas e Karl-Otto Apel. Cite-se em Habermas o seguinte trecho:

“Habermas distingue, assim, actos de fala e atividades não linguísticas, fazendo corresponder aos primeiros essa vocação incontornável para o entendimento mútuo (MORAIS, Susana, p.12)

“Las acciones em sentido estricto, em el caso ejjemplar acciones no linguísticas sencillas del tipo mencionado, las destribo como atividades teleológicas com que um actor interviene em el mundo, para realizar mediante la elección y utilización de los médios apropriados los fines que se propone. Las manifestaciones linguísticas las describo como actos com que um hablante puede entenderse com outro acerca de algo em el mundo” (Habermas, 1990: 67) apud (ob. citada, p.13). Continua a autora:

“A linguagem assim entendida não potencia apenas a condição de falantes: enquanto meio por excelência das interacções sociais, permite aos sujeitos assumirem-se também como actores sociais e revela-se um meio fundamental da construção da intersubjectividade  na comunicação. Na condição do humano como sujeito de linguagem, estão pressupostos, para além do uso de regras linguísticas, princípios determinantes para que o entendimento tenha lugar – como é a igualdade entre os interlocutores, a garantia de que ninguém pode ser excluído da comunicação e que todos podem usar a palavra e pronunciar-se. Nessa medida, o conceito de competência comunicativa em que se assentam estas  teorizações ultrapassa a capacidade para construir fases gramaticalmente correctas. Igualmente inerente à condição de sujeitos de linguagem é a imprescindibilidade de um quadro normativo regulador da relação comunicacional. Compreensibilidade e validade dos actos de fala são, não obstante a valorização semelhante que recebem, requisitos distintos”.(ob. Citada, p.13) (grifei)

Conclusão

A formação dos funcionários públicos, operadores do Direito e demais profissionais que militam com serviços na seara jurídico-administrativa ainda são impingidos a usarem uma linguagem rebuscada, ou pelo menos difícil para a grande massa de administrados que são os destinatários da grande maioria das comunicações públicas. A adoção de uma linguagem lastrada no senso comum dos falantes é medida imperiosa e de justiça social, pois a linguagem técnica estruturada de maneira a inviabilizar  a aquisição do pronto conhecimento da informação cria um obstáculo muitas vezes intransponível ao exercício da cidadania.

 

Referências
ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras. Coesão e Coerência. São Paulo: Parábola Editorial: 2005;
CÃMARA JÚNIOR,  Joaquim Mattoso. História da linguística. 7ª ed. Petrópolis, RJ. Editora Vozes: 2011;
CRETELLA JÚNIOR, José. Filosofia do direito administrativo. Rio de Janeiro. Ed. Forense: 1999;
FERNANDA MUSSALIM, Anna Christina Bentes (orgs.) Introdução à linguística – domínios e fronteiras – V. 1. 5ª ed. São Paulo: Cortez, 2005;
FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, decisão, dominação. 2. Ed. São Paulo: 1996;
ROESLER, Cláudia Rosane. Noções Introdutórias à linguagem jurídica. Florianópolis: 2000 Mineo, fls. 47 (in Hermenêutica Jurídica – Coletânea de Textos – Organizador: Dr. Valdir Gassen – junho de 2013);
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução à Sociologia da Administração da Justiça in FARIA, José Eduardo. Direito e justiça – A função social do judiciário. São Paulo. Editora Ática, 1994;
SAUSSURE, Ferdinad de; Curso de Linguística Geral. 27ª ed. São Paulo, Editora Cultrix: 2006;
 
Nota:
[1] Doutora em Filosofia e teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, professora no CESUSC e Univalli, em Florianópolis.


Informações Sobre o Autor

Fausto Nunes dos Santos

Servidor Público Federal Analista Judiciário – Bacharel em Direito. Especialista em Direito Administrativo. Especialista em Direito Contratual. Pós-Graduando Lato Sensu em Filosofia


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