Resumo: O movimento de manifestação internacional denominado “Slutwalk” ou “Marcha das Vadias”, como origem no Canadá, tem sido realizado nas principais cidades do planeta, sustentando que as vestimentas e atitudes da mulher não devem ser utilizadas como justificativa ou fator contribuinte para a ocorrência de violência sexual. Nesse diapasão, encontra-se na doutrina posição que sustenta que a vestimenta da mulher vítima de estupro é causa de diminuição da pena do violentador, uma vez que esta teria contribuído para ter sido vítima de agressão sexual. Assim, busca-se contrapor ambos os argumentos, objetivando deslegitimar a posição machista que ainda considera ter sido a mulher responsável, de certo modo, pela violência que sofreu, ao mesmo tempo em que o autor do crime tem sua pena diminuída.
Palavras-chave: marcha das vadias; comportamento da vítima; circunstância judicial; violência sexual.
Sumário: 1. Introdução; 2.o movimento de manifestação internacional “slutwalk” ou “marcha das vadias”; 3. A circunstância judicial de redução da pena pelo “comportamento da vítima” do artigo 59 do código penal; considerações finais; referências bibliográficas.
1. INTRODUÇÃO
O movimento de manifestação internacional denominado “Marcha das Vadias” ou “Marcha das Vagabundas” tem se estendido por todas as principais cidades do mundo ocidental, trata-se de movimento que levanta a ideia de que as vestimentas e atitudes da mulher livre não deve ser utilizada como justificativa ou fator contribuinte para a ocorrência de violência sexual
Nesse norte, encontra-se na doutrina penal ainda a posição de muitos juristas que sustentam que a vestimenta da mulher vítima de estupro é causa de diminuição da pena do violentador, uma vez que esta teria contribuído para ter sido vítima de agressão sexual.
Assim, para a confecção deste trabalho se buscou contrapor ambos os argumentos, objetivando deslegitimar a posição machista que ainda considera ter sido a mulher responsável, de certo modo, pela violência que sofreu, ao mesmo tempo que o autor do crime tem sua pena diminuída.
Destarte, o objeto deste artigo científico é a circunstância judicial do comportamento da vítima na aplicação da pena. Seu objetivo é contrapor a doutrina que sustenta a diminuição da pena pelo fato da mulher violentada estar vestida de forma considerada “provocante”.
Foi utilizado o método indutivo, operacionalizado, principalmente, pelas técnicas da pesquisa bibliográfica e do referente.
2. O movimento de manifestação internacional “slutwalk” ou “Marcha das Vadias”
O movimento de manifestação internacional denominado “Marcha das Vadias” ou “Marcha das Vagabundas” tem sua origem em abril do ano de 2011, na Cidade de Toronto, no Canadá. Trata-se de ações coordenadas com o objetivo de protestar contra a crença da que as mulheres vítimas de estupro provocam os atos de violência sexual em decorrência da vestimenta que usam, sendo comum em tais protestos as mulheres usarem roupas tidas como “provocantes”.
Os ativistas do movimento apontam seu início em razão do discurso do policial Michael Sanguinetti, proferido na Universidade de Toronto, que tinha como intuito prevenir os constantes crimes sexuais na localidade. Em um determinado momento de sua explanação, o policial afirmou que para as mulheres não serem vítimas de estupro deveriam parar de se vestir como vadias, levando cerca de 3.000 pessoas ás ruas de Toronto para manifestarem contra o que afirmaram ser uma ideia de prevenção de caráter machista.
A “Marcha da Vadias” se propagou por diversos países, sendo realizada em cidades como Los Angeles, Chicago, Amsterdã, Buenos Aires, entre outras. No Brasil, já ocorreu nas cidades de São Paulo, Brasília, Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, Londrina, Florianópolis, Criciúma, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Vitória, Recife, Salvador e Fortaleza.
A primeira manifestação realizada no Brasil ocorreu em 4 de junho de 2011, reunindo, segundo dados da Polícia Militar do Estado de São Paulo, cerca de 300 pessoas, sendo seguida por Recife, Belo Horizonte e Brasília, esta última com a participação de 800 pessoas.
Na Cidade de São Paulo, as manifestações nos anos de 2011 e 2012, foram organizadas na Rua Augusta, apontando as organizadoras que se trata de um local de prostituição onde muitas mulheres costumam sofrer preconceitos.
Segundo Priscilla Manzenotti o movimenta reivindica o direito das mulheres de se vestirem e agirem como quiserem, sem serem reprimidas por sua sexualidade. De acordo com Julia Zambini o movimento é realizado por feministas que buscam a igualdade de gênero, afirmando a antropóloga que “ser chamada de vadia é uma condição machista […] os homens dizem que a gente é vadia quando dizemos 'sim' para eles e também quando dizemos 'não'”. ( MAZENOTTI).
Aponta Manzenotti que na manifestação realizada em Brasília no ano de 2011, as mulheres gritavam palavras de ordem como “quem manda no meu corpo sou eu” e “cuidado, seu machista, a América Latina vai ser toda feminista. Utilizando muitas delas seu corpo para escreverem frases como “respeito é sexy” e “sou livre”.
Sal Freire destaca que o movimento tem como missão mostrar que as mulheres têm o direito de serem livres, afirmando a jornalista que “reivindicar a liberdade nunca é demais e a liberdade de se vestir como se quer é fundamental em qualquer sociedade e cultura. Sou o que eu quiser. Eu sou livre”. (MAZENOTTI).
Afirma Daniela Montper, uma das organizadoras da marcha na Cidade do Rio de Janeiro em 2012, que os protestos reúnem um público bem diferenciado, composto por homens e mulheres de diferentes idades. Segundo a organizadora o movimento assume caráter de apontar para a sociedade brasileira que a culpa da violência sexual e do abuso sexual é do agente causador do ato e não da vítima. Assim, segundo Daniela, quando a sociedade fica julgando à vítima, na busca de motivos que tenham ensejado o ato de violência, procurando motivos para afirmar que ela mereceu a violência, acaba cometendo novamente uma violência, agora de caráter social. (ÚLTIMA INSTÂNCIA).
3. A circunstância judicial de redução da pena pelo comportamento da vítima do artigo 59 do Código Penal
Dispõe o artigo 59 do Código Penal Brasileiro que o julgador ao aplicar a pena deverá ser atentar ao comportamento da vítima. Tratando-se de circunstâncias judicial presente em nosso ordenamento deixado a discricionariedade do magistrado para a fixação do quantum da pena. (DAMÁSIO, 2002).
Observa Damásio Evangelista de Jesus que em alguns crimes, como os de natureza sexual, o comportamento do sujeito passivo pode facilitar ou provocar a prática delituosa, circunstância esta a ser considerada pelo juiz na dosagem concreta da pena. (DAMÁSIO, 2002).
Celso Delmanto salienta que o Código Penal Brasileiro, da mesma forma que já fazia o português de 94 e 95, não considerou o comportamento da vítima como atenuante, incluindo como circunstâncias judiciais. Nesse sentindo, para o Jurista a tal circunstância poderá tanto beneficiar a situação do réu como agravá-la, sendo fato a ser apreciado de modo amplo em cada caso concreto (DELMANTO, 2007). No mesmo sentido, defende Luiz Regis Prado que esta circunstância judicial poderá aumentar ou diminuir a reprovabilidade da conduta típica e ilícita. (PRADO, 2000).
Nesse lume, Eugenio Raúl Zafaroni e José Henrique Pierangeli também defendem a corrente que visualiza a possibilidade desta circunstância abrandar ou aumentar a pena do agente em razão do comportamento da vítima. (ZAFARONI; PIERANGELI; 2006).
Flávio Augusto Monteiro de Barros levanta a bandeira de que a circunstância judicial do comportamento da vítima poderia apenas atenuar a pena-base de réu, não sendo aceitável que o prejudique. (MONTEIRO, 2004).
No que concerne a justificativa do legislador ter adotado o comportamento da vítima como circunstância judicial, aponta Júlio Frabbrini Mirabete que esta se faz com base em fator criminógeno, constituindo-se em provocação ou estímulo à conduta criminosa, bem como o pouco recato de algumas vítimas nos crimes contra a liberdade sexual. (MIRABETE, 2006).
Aponta Mirabete que estudos de vitimologia demonstram que em várias situações as vítimas podem ser “colaboradoras” do ato criminoso, defendendo muitos estudiosos a figura da “vítima nata”, enquadrando-se nesta categoria pessoas de personalidade insuportável, criadoras de casos, extremamente antipáticas, pessoas sarcásticas, irritantes, homossexuais e prostitutas, entre outros. Estariam mais sucedâneas a sofrerem atos criminosos uma vez que, na psicologia doentia de neuróticos, ao praticar condutas de violência contra esses indivíduos estaria atingindo a sua justiça própria. (MIRABETE, 2006).
Fernando Capez salienta que embora inexista compensação de culpas em Direito Penal, caso a vítima tenha contribuído para a ocorrência do crime, o comportamento da vítima tem o condão de abrandar a apenação do agente, apontando o Jurista a existência de diversos estudos de vitimologia que demonstram que o sujeito passivo do crime contribui para a eclosão do ato criminoso. Nesse sentindo, exemplifica Capez que “a jovem de menor pudor pode induzir o agente de estupro pelas suas palavras, roupas e atitudes imprudentes; as prostitutas, marginais, também são vítimas em potencial”. (CAPEZ, 2011).
Assim, leciona Capez, que apesar de tais comportamentos não justificarem a prática da conduta criminosa, são responsáveis por diminuírem a censurabilidade da conduta do autor do delito (CAPEZ, 2011).
Guilherme de Souza Nucci em referência a Miguel Reale Júnior, René Ariel Dotti, Ricardo Andreucci e Sérgio Pitombo, observando a Exposição de Motivos do Código Penal, disserta que:
“[…] o comportamento da vítima constitui inovação em vistas a atender aos estudos de vitimologia, pois algumas vezes o ofendido, sem incorrer em injusta provocação, nem por isso deixa de acirrar ânimos, outras vezes estimula a prática do delito, devendo-se atentar, como ressalta a Exposição de Motivos, para o comportamento da vítima nos crimes contra os costumes em especial a exploração do lenocínio, em que há por vezes uma interação e dependência da mulher para com aquele que a explora”. (NUCCI, 2007, p. 444).
Nucci ressalta porém que isso não quer dizer que a vítima de crime sexual não esteja protegida pela lei penal, nem que o agente deva ser absolvido, mas sim que a pena deste não deve ser agravada. O mesmo não ocorreria, segundo o Jurista, quando a vítima do crime for pessoa recatada e tímida, colhida em seu recanto doméstico por um agressor sexual, de modo que, neste caso, a vítima seria exasperada, pois o perfil vítima ou seu comportamento não deram margem ao ataque sofrido. (NUCCI, 2007).
Ney Moura Teles sobre o tema afirma que no caso da jovem que em trajes sumários, desfila de forma provocante, diante de homens desconhecidos, em lugares poucos recomendáveis, está, de certo modo, despertando neles a cobiça e o desejo libidinoso. Nesse sentido, afirma Teles, que caso essa mulher seja agredida em sua liberdade sexual, terá, mesmo que não intencionalmente, colaborado para o fato criminoso. (TELES, 2006).
3. O movimento de manifestação internacional “slutwalk” ou “Marcha das Vadias” sob a ótica do “comportamento da vítima” do artigo 59 do código penal
Enquanto o movimento internacional “Slutwalk” – “Marcha das Vadias” – protesta contra a ideia machista de que a mulher deve evitar usar determinadas roupas para que não seja uma vítima potencial de violência sexual, boa parte da doutrina sustenta que as vestes consideradas provocantes, usadas pela vítima, devem atenuar a pena-base do autor do fato.
Assim, para essa corrente doutrinária a mulher que se traja com vestes curtas, e que é estuprada, de certo modo, contribuiu para o ataque, sendo a pena do agressor diminuída na primeira fase de aplicação da pena. Porém, no caso da mulher estuprada que se vestiu de maneira mais casta, não cabe falar na possibilidade de redução da pena, uma vez que suas roupas não influenciaram na escolha do agressor para estuprá-la.
Não cabe questionar neste trabalho o comportamento da vítima como forma de agravar ou atenuar a pena-base, mas sim combater o discurso de alguns juristas e aplicadores da lei de que a roupa da vítima é argumento para diminuir a pena do agressor. Trata-se de posicionamento que privilegia o estuprador, ao mesmo tempo em que pune a vítima, tendo em vista que esta, além ter sofrido agressão sexual, é considerada de certo modo culpada pela violência que sofreu, como se dissesse “estou vestida dessa forma porque quero ser estuprada”.
É nesse sentido que o movimento de manifestação internacional “Slutwalk” ou “Marcha das Vadias” se posiciona, no combate ao argumento machista de que a mulher, como sexo frágil, deve evitar atrair os olhares dos homens, os predadores sociais, evitando contribuir para não serem vítimas de violência sexual. Quem sustenta essa tese na aplicabilidade da pena, acaba por afirmar que a mulher tem seu direito à liberdade de ir e vir, de se vestir da forma que preferir, talhado, sob pena de concorrer em culpa para seu próprio estupro.
Tão machista que é esta ideia, que parece incomum que um juiz puna uma mulher que praticou violência sexual contra um homem, diminuído a sua pena pelo fato de ele estar usando trajes provocantes, como camisetas ou bermudas curtas. Assim, perceptível que essa tese só beneficia o estuprador homem, que “não pode ser culpado estritamente por não ter controlado seus instintos mais selvagens quando vê uma mulher com roupas provocantes”.
Nesse diapasão, tal posicionamento deve ser combatido, pois quando aceito, acaba sendo forma de violência institucionalizada, que diminui a mulher como sujeito de direto, uma vez que reconhece que esta contribuiu para o seu próprio estupro quando optou por usar determinadas roupas ao invés daquelas.
Diante disso, cada vez mais o movimento de manifestação sob a bandeira da “Marcha das Vadias” ganha mais adeptos ao redor do mundo, realizando-se nas principais cidades do planeta. De forma irreverente, questiona-se o porquê de muitas parcelas da sociedade ainda sustentarem o machismo como algo comum, como se o mundo fosse masculino, obrigando as mulheres a terem como epicentro comportamental a vontade dos homens.
Quando este pensamento é aplicado como forma de justificar um tipo de violência tão brutal como aquele de teor sexual, percebe-se como a sociedade ocidental evoluiu tão pouco nestes últimos séculos, voltando a mulher a um estado de “menos sujeito” do que o homem.
Destarte, apesar da grande evolução que sofreu o direito brasileiro nas últimas décadas, devemos lembrar que até pouco tempo a mulher se tornava relativamente incapaz quando casava, sendo o marido o seu guardião, que o filho da “outra” com o homem casado não era reconhecido, e que a concubina não tinha direitos. Além disso, ainda em muitos estados deste país a honra se lava com sangue, e a boa mulher, objeto, é aquela que permanece quieta e obediente para não apanhar.
Muito se conquistou no âmbito do direito, mas que ninguém se engane, o pensamento machista ainda se mantém em muitas teses, sendo responsabilidade das novas gerações de juristas continuarem a quebrar paradigmas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não se concede sustentar em pleno século XXI o argumento de que a vestimenta que a mulher usava quando sofreu o estupro é motivo para diminuir a pena do agressor. Trata-se de posição machista que situa a mulher como culpada concorrentemente com o homem pela violência da qual foi vítima, a punindo duplamente.
Diante disso, ganha força cada vez mais movimentos de manifestação como o da “Marcha das Vadias”, irreverente em sua forma, mas que aponta para uma realidade brutal e habitual em vários países, a de que o comportamento da mulher em exercer sua liberdade é utilizada como tese de defesa pelo violentador.
Em nossa doutrina, ainda há quem sustente que a vestimenta da mulher é causa de diminuição de pena, porém, cada vez mais, perde espaço esse argumento, promovendo um Direito mais igualitário sobre as questões de gênero.
Informações Sobre o Autor
Raphael Fernando Pinheiro
Bacharel em Direito na Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Pós-graduando em Direito Constitucional