A Receita Federal vem debatendo uma nova visão para o IRPJ, tendo como bases o Lucro Real e o Resultado Fiscal das empresas; mas quais são os pontos positivos e as inconsistências desta leitura?
*Por Ana Campos
A partir de janeiro de 2008, seguindo um movimento internacional impulsionado pela aprovação da Lei Nº 11.638/07 (Lei Societária), o Brasil passou convergir as normas contábeis às normas internacionais, com o objetivo de otimizar a padronização destas informações, tendo como foco os investidores e adotando um critério derepresentação fidedignaem que a essência das transações e dos eventos contábeis de uma organização se sobrepõe a forma ou as regras tributárias vigentes no país.
Em outras palavras, passou-se a se dar maior espaço para a análise das efetivas características das operações no contexto contábil, tendo em vista, uma “apresentação adequada […] dos efeitos das transações, outros eventos e condições de acordo com as definições e critérios de reconhecimento para ativos, passivos, receitas e despesas como estabelecidos na Estrutura Conceitual”, conforme o item 15 do Pronunciamento CPC 26.
A grande questão surgida a partir das mudanças implementadas com a Lei Nº 11.638/07 foi a dicotomia criada entre a contabilidade e as regras fiscais (que, ao contrário da visão contábil padronizada internacionalmente, privilegiam a forma – ou seja, as leis tributárias – sobre a essência, ou contexto contábil) para a apuração, por exemplo, do Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ).
Para termos uma ideia, a apuração do Lucro Real (base de cálculo do IRPJ) é auferida, hoje, a partir do lucro contábil que, após uma série de ajustes, torna-se base para a tributação. Tendo em vista a subjetividade das normas contábeis, as constantes alterações destas prerrogativas, e as regras tributárias bastante formais (sempre configuradas em leis, cujas penalidades são multas, perda de mercadorias, ou mesmo, perda de liberdade), todo o processo de cálculo e definição do IRPJ torna-se bastante complexo.
Com o objetivo de trazer maior simplificação para este processo de apuração do IRPJ, a Receita Federal tem discutido em fóruns especializados uma nova visão para o Imposto de Renda Pessoa Jurídica, a partir da definição de Lucro Real tendo como base o Resultado Fiscal das Empresas.
Embora a pauta ainda não conte com uma audiência pública oficial e, a meu ver, é um tema que ainda está em evolução dentro da própria RFB, vale a pena discutirmos os pontos positivos e as possíveis lacunas do que já foi apresentado, até o momento, pela Receita.
O modelo atual de apuração do IRPJ
Mas antes, é importante analisarmos, ainda que de modo simplificado, como ocorre atualmente a apuração do IRPJ do regime tributário de Lucro Real. A rigor, as empresas hoje definem, primeiramente, o Lucro Líquido, com base na perspectiva contábil.
Estabelecido o Lucro Líquido, caberá às empresas efetuarem ajustes positivos e negativos, para apuração da base de cálculo do IRPJ. Assim, o Lucro Real é o lucro líquido registrado pelas empresas devidamente ajustado por valores de: (a) despesas indedutíveis (temporariamente, ou não); e (b) receitas não tributáveis (temporariamente, ou não).
Esta mecânica, que já era de complicada aplicação, tornou-se ainda mais complexa, pois os ajustes agora não buscam somente padronizar dados contábeis para atender regras tributárias, mas também buscam trazer o Lucro Líquido a valores mais próximos daqueles cuidados pela RFB até o advento da Lei No. 11.638/07.
A preocupação genuína da Receita Federal
A preocupação da Receita Federal com o modelo atual de apuração do IRPJ é pertinente. Isto porque, segundo levantamento da própria RFB, o número de adições e exclusões decorrentes dos novos critérios contábeis para a definição da base de cálculo do IRPJ chega a 63% (ou 216 ajustes ao Lucro Líquido de um total de 346).
Ademais, a Receita Federal tem razão em apontar o excesso de edição de normas contábeis que trazem instabilidade para a aplicação da legislação do IRPJ. Além disso, a própria “bifurcação” atual entre o mundo contábil e o mundo tributário, muitas vezes, aumenta o retrabalho das empresas e pode gerar confusão, falta de clareza e dúvidas.
Sobre este último ponto, podemos citar o exemplo do caso de leasing de um carro. Ele deve ser considerado um ativo imobilizado ou uma despesa? Do ponto de vista estritamente tributário, oleasing(arrendamento mercantil), que atende aos requisitos da Lei no. 6.099/74 é um aluguel – ainda que envolva ou não um componente de compensação financeira – e, portanto, deve ser considerado uma despesa, quando falamos em termos fiscais.
Todavia, em se tratando do ponto de vista contábil, oleasingde um veículo utilizado em uma empresa, pode ser considerado um ativo imobilizado, a depender de sua utilização, tendo em vista a prevalência da representação fidedigna ou da essência sobre a forma.
Pontos principais da ‘Nova Visão para o IRPJ com Base no Lucro Real’
Mas qual é, então, a nova proposta que vem sendo discutida pela Receita Federal para um modelo mais simplificado e objetivo de apuração do IRPJ, a qual, segundo a RFB, pode trazer também maior segurança jurídica para as empresas, redução de obrigações acessórias e do próprio Custo-Brasil?
De modo simplificado, nesta perspectiva, o Lucro Líquido Contábil deixa de ser o ponto de partida para a base de cálculo do IRPJ das empresas, as quais passarão a considerar o seu Resultado Fiscal, valor obtido a partir da subtração entre as Receitas Fiscais, menos as Deduções Fiscais. Segundo a Receita, a partir do novo modelo, seriam eliminados as adições e exclusões, o LALUR, e se favoreceria uma apuração direta do Imposto de Renda Pessoa Jurídica.
As origens das Receitas Fiscais e Deduções Fiscais não foram especificadas, mas podemos especular que deverão se originar de dados entregues via SPED, com a entrega de EFD-Contribuições e EFD-IPI/ICMS, que apresentam informações de receitas, controle de estoques, além, obviamente, da apuração tributária. A Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (DCTF) e guias recolhidas supririam os dados relativos aos valores recolhidos e compensados.
A RFB reconhece, entretanto, que os dados de SPED não alcançam e não são o meio adequado para o controle de algumas figuras; daí, haverá a necessidade do controle (no que eles chamaram de Parte 2) da realização fiscal do ativo não circulante, da formação e amortização de ágio sob a perspectiva tributária, e dos elementos da formação do custo (que, a princípio, deveria envolver Mão-de-obra direta – que estaria formalizada no e-Social? –, Matéria-prima e outros custos diretos).
De acordo com a Receita Federal, não haverá criação de uma Contabilidade Fiscal com esta metodologia.
A percepção de especialistas
Embora contenha méritos, o novo modelo esboçado pela Receita Federal vem recebendo críticas relevantes.
Em artigo assinado pelo presidente do Conselho Diretor da Associação Brasileira das Companhias Abertas (ABRASCA), Alfried Plöger, por exemplo, é assinalado que, ao se abandonar as regras da contabilidade internacional, a proposta da Receita Federal traz ainda mais insegurança jurídica e complexidade, uma vez que se perde a referência das normas contábeis vigentes no país e que, como vimos, seguem a tendência padronização internacional.
Além disso, é comentado que o objetivo da simplificação não será atingido, uma vez que as empresas terão, sim, de manter controles e continuar a apurar o lucro contábil de seus negócios. Por fim, a ABRASCA fala ainda da criação de uma Contabilidade Fiscal, sem que se possa abrir mão da contabilidade societária; além de apontar a amplitude do conceito de deduções fiscais.
Conclusão: uma leitura crítica do possível novo modelo
Embora tenha seus méritos em apontar uma real instabilidade das normas contábeis brasileiras e do próprio excesso de adições e exclusões vigentes no processo atual de apuração do IRPJ, a nova proposta da Receita Federal, em sua forma presente, abre novas lacunas e carrega consigo fragilidades que merecem ser reforçadas.
A primeira delas, na minha visão, é a afirmação exagerada de que não haverá a criação de uma contabilidade fiscal. Como bem aponta a ABRASCA, o lucro contábil continuará a ter de ser apurado, bem como, questões como o controle da depreciação de um bem ou de um ativo imobilizado e, se você tem de criar uma nova contabilidade, não há, de fato, uma simplificação.
Outro ponto importante envolve a apuração das deduções fiscais. De fato, o plano das receitas fiscais conta com declarações de natureza puramente fiscal (SPED, e-Social, etc.) e, portanto, são passíveis de apuração relativamente simplificada. Mas e no caso das Receitas Fiscais com Serviços? Qual será o dado de origem? Os contribuintes entregam Declarações de ISS em todos os 5.570 Municípios Brasileiros? E aqueles contribuintes que recolhem o ISS como entidades profissionais, que recolhem o imposto com base em valor fixo multiplicado pelo número de sócios? Serão requeridas as informações das Receitas Fiscais destes contribuintes? A RFB padronizará as informações sobre Receitas com Serviços, talvez mediante a implantação da Nota Fiscal de Serviços Eletrônica (NFS-e), que ainda é projeto no SPED[1]?
Em se tratando de deduções, custo com mercadorias e folha de pagamento podem, a princípio, ser extraídos do EFD-IPI/ICMS e e-Social – muito embora, seja preciso lembrar que o bloco K, que traria importantes informações sobre o custo, ainda não é obrigatório para todos os contribuintes (Ajuste SINIEF 25/19).
E as dificuldades não param por aí. E os insumos de uma empresa de serviços, por exemplo? Ou as despesas com terceiros? Dependendo da prestação do serviço contratado, a retenção do IRRF não é requerida e, portanto, não constará em Declaração do Imposto de Renda Retido na Fonte – DIRF (que poderia ser outra fonte de dado). Em outras palavras: sem a manutenção de controles ou de uma contabilidade fiscal sobre esses custos, teremos de “minerar” – e muito – para conseguir localizar cada dedução de nossas operações.
Com isso, vale afirmar que, se objetivo (justo e relevante) da Receita Federal é simplificar e trazer maior objetividade para a apuração do IRPJ, é essencial, no mínimo, amadurecer e, possivelmente, desenhar novos direcionamento para que este processo seja, de fato, mais eficiente, tanto para o contribuinte quanto para o Estado.
*Ana Camposé Especialista em Aquisições e Reestruturações e sócia fundadora da empresa Grounds, empresa de consultoria inteligente especializada nas áreas contábil, tributária, trabalhista, previdenciária e financeira.
Sobre a Grounds
A Grounds é uma empresa de consultoria inteligente especializada nas áreas contábil, tributária, trabalhista, previdenciária e financeira. O core business da companhia abrange todas as áreas da empresa, se diferenciando assim dos serviços de advogados, por exemplo. No último ano de atuação, a Grounds solucionou mais de 40 projetos de due diligence, consultoria fiscal-financeira e assessoria permanente em vários segmentos de atuação: Investimentos e Private Equity, Energia e Infraestrutura, Serviços, Varejo e Indústria em geral. Saiba mais em:http://grounds.com.br/