O olhar por trás das lentes: As estratégias de dominação subliminares

Trata-se de artigo que objetiva demonstrar as técnicas de controle e dominação utilizadas pelos meios de comunicação impresso contra os movimentos sociais, de maneira que traz para si a opinião pública com a utilização de termos que são tipicamente suados para aqueles que cometem crimes, sendo, portanto igualados e enfraquecidos em suas lutas.

Do rio que tudo arrasta se diz que é violento Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem. (Bertold Brecht)

Este artigo tem por objetivo apontar que a prática utilizada pelos meios de comunicação, aqui sendo observada a mídia impressa, visa legitimar o discurso dominante para assim manter o status quo de submissão, ao arregimentar para si a opinião pública. Não vou entrar na questão dos atos em si, isto é, se foram excessivos ou não, mas sim na maneira como a Mídia se apresenta e retrata um grupo social que luta por seus direitos, anunciando sua deslegitimação.

Muito ouvimos falar no MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra). Entretanto, o que muitos não sabem é que este não é o único movimento social que luta não só pelo acesso e permanência na terra, mas também por cidadania para todos e reconhecimento de seu status de cidadão atualmente existente no Brasil. Uns são regionais, outros são nacionais, quanto à sua atuação, mas todos almejando a diminuição da gde desiguladade de direitos na ocupação igualitária do espaço público. Assim, devo começar situando que grupo social é este identificado e objeto de apontamentos neste artigo.

A ocupação da Câmara dos Deputados, que assistimos no dia 06 de junho de 2006, foi realizada pelo MLST (Movimento de Libertação dos Sem Terra). O MLST é uma dissidência do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e foi criado em 1997, sendo considerado como o terceiro maior grupo de trabalhadores sem-terra, após somente do MST e Contag.

Em notícia veiculada na Folha de São Paulo (on line[1]), no dia 13/05/2005, sob o título Fracassa tentativa de MLST de entregar reivindicação para Palocci, temos a informação de que o referido Movimento, por meio de uma comitiva composta de 12 (doze) membros, não conseguiu entregar sua pauta de reivindicações para o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, pois fora impedida no Ministério.

Um mês antes, no dia 14 de abril daquele ano, o prédio do Ministério da Fazenda foi ocupado por cerca de 1200 pessoas e em troca da desocupação a pauta referida era para ser entregue diretamente ao Ministro. A ocupação durou mais de seis horas. Eles só saíram após uma negociação com integrantes do governo. Um mês após esta ocupação (13/05), conforme a notícia acima mencionada,

“os membros do Movimento foram recebidos na entrada do Ministério, pela coordenadora de Logística e Informática, Rose Mira, que sugeriu que entregassem a ela a pauta de reivindicações. Os sem-terra não concordaram e pediram que ao menos cinco deles pudesse ir até o gabinete do ministro. O pedido foi negado. Eles não quiseram entregar o documento no setor de protocolo do ministério, que fica no térreo”.

Nesta ocasião, afirmou Bruno Maranhão, um dos coordenadores do movimento: “Isso mostra a incapacidade política desse ministro. Ele sabe se relacionar com banqueiros, com grandes comerciantes, mas não sabe se relacionar com sem terra”. Não se pode negar a clareza dessa afirmativa, pois os fatos denunciam “a verdade”. É reconhecido que o Estado que se instalou em nosso país segue a lógica capitalista da dominação da maioria com os argumentos que envolvem os discursos do Estado Mínimo e da Economia ampliada. Ampliada para quem? Estado mínimo que interessa a quem? A frase é conhecida e se repete, como permanência em nossa história de dominações: transforma-se caso de política em caso de polícia.

Os integrantes do MLST, neste episódio atual, dia 06 de junho de 2006, foram indiciados pelos crimes de invasão, dano, desacato, formação de quadrilha, corrupção de menores e tentativa de homicídio. Agora eu pergunto. E o dolo? Sabemos que para haver crime, o elemento subjetivo (dolo) tem que estar presente, sob pena de haver atipicidade do fato. E claramente a intenção dos membros do Movimento não era a prática de nenhuma dessas condutas, mas sim se fazer ouvir e apresentar suas reivindicações.

Os atos praticados pelos movimentos sociais provocam forte tensão sobre as estruturas do poder, na medida em que as ocupações de terras e de prédios públicos ou particulares abertos ao público constituem-se sempre manchete de jornal, sendo comumente apontadas como antidemocráticas e ilegais.

A ocupação de prédios públicos ou privados constitui uma tradição na história da desobediência civil, como se pode lembrar das condutas observadas, por exemplo, em Martin Luther King, bem como em nossa atualidade por militantes ecológicos e manifestantes civis ao protestarem ativamente contra a política nuclear, ou a poluição do meio ambiente, provocando incidentes considerados fora das leis vigentes.

O discurso midiático continua tratando trabalhadores rurais que lutam por sua dignidade, cidadania, pelo direito de ser brasileiro como criminosos. Assim, por meio da imprensa, os grupos dominantes estigmatizam os movimentos rurais, caracterizando-o como violento e o associando à corrupção e ao terrorismo. Como a violência e a corrupção não são toleradas pela sociedade, estes investimentos e estratégias de controle social em que se ressalta o caráter de dominação conseguem adesões populares contra suas lutas, enfraquecendo-as, retirando delas a potencialidade de suas possíveis conquistas e, por vezes, desmobilizando segmentos organizativos importantes.

Tomando por base as formulações de Foucault (1988), verifica-se que a estratégia da criminalização é simples e facilmente formulada na teoria geral do contrato, pois o “criminoso” ao romper o pacto social, torna-se inimigo de toda a sociedade, não obstante se torne co-partícipe da punição que se exerce sobre ele. A infração lança o indivíduo contra todo o corpo social, formando-se, assim, um formidável direito de punir. Verifica-se também, por parte da imprensa uma colaboração neste quadro, um preconceito que se amplia discriminando os movimentos sociais, por meio de preconceitos e de enorme carga imagética contra as lutas e revoltas justas do povo brasileiro.

Em razão do ocorrido no Congresso, a Comissão Pastoral da Terra emitiu o seguinte consenso[2]:

 “A CPT sempre esteve ao lado dos trabalhadores e eles têm direito a se manifestar. O ato, por mais radical que tenha sido, mostra a insatisfação dos trabalhadores diante de um Congresso que;

1-absolve os parlamentares envolvidos com o mensalão,

2-se envolve em muitos outros escândalos, como o dos “sanguessugas”,

3-engaveta projetos de interesse dos camponeses e camponesas, como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC nº438/01) que expropria as áreas onde há a prática do trabalho escravo, e outros projetos de interesse da sociedade civil

4-rejeita o relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Terra (CPMI) e aprova um substitutivo que propõe classificar as ocupações de terras como crime hediondo e ato terrorista. O substitutivo ainda coloca os  trabalhadores, vítimas da violência no campo, como responsáveis pela mesma. 

5-o envolvimento dos parlamentares em escândalos que lesam profundamente o patrimônio público e o descaso com que o Congresso Nacional trata as questões sociais não são classificados como violência. O povo se sente afrontado ao ver parlamentares de partidos que sempre praticaram a corrupção e a defesa de interesses particulares se apresentarem hoje como defensores da ética e da moralidade públicas”.

Várias são as manchetes dos jornais impressos que trazem a marca da estigmatização:

O Globo – 06/06/2006 – Vandalismo no Congresso

O jornal mais uma vez utiliza palavras chaves para que a população se coloque contrária à atuação dos movimentos sociais, pois assim consegue desmobilizar e desqualificar para minorar o real objetivo do grupo, que não é a baderna ou o vandalismo, nem mesmo o crime, na esteira do raciocínio dominante, mas sim, como foi na ocasião, se fazer notar e “ouvir” já que as portas não lhes são abertas como são aos grandes grupos econômicos, que movimentam grandes somas e recursos políticos, maioria das vezes internacionais.

O grupo queria a aprovação de uma lei, pelo Congresso, que desapropriasse uma terra na qual ocorre trabalho escravo, aprovação da proposta da emenda constitucional sobre trabalho escravo, rediscussão das dívidas dos agricultores, além da demora do Congresso em votar o Orçamento, o que estaria prejudicado a agricultura familiar.

Rosi, militante do MLST e filha de agricultores na Bahia, afirmou que o grupo foi a Brasília reivindicar apoio do governo e reclamou, acertadamente: “A gente não tem terra. Quando tem, não tem dinheiro, não tem nada!”.

O Globo (versão on line) de 07/06/2006: Sem-terra: fita mostra plano de invasão.

Nesta reportagem, o jornal informa que os membros do MLST tinham um vídeo no qual, de acordo com a lógica que tanto importa, seria a prova de que estavam “estudando” a ocupação, isto é, para utilizar seu linguajar, estavam “premeditando o crime”. Claro. Crime premeditado é muito mais grave, possui agravante e, portanto, sua pena será mais alta do que a não planejada.

Jornal do Brasil – 07/06/2006 – Sem-Terras sitiam Câmara.

O esteriótipo começa na manchete principal por meio da palavra sitiam, visto que esta normalmente é usada para situação de guerra.

Logo após, ainda utilizam a seguinte frase: Grupo tem histórico de radicalismo. Ao se ler esta parte da reportagem, verifica-se que há uma brevíssima e superficial história de sobre a ocupação do Ministério da Fazenda no ano passado, sem mencionar qualquer outra motivação. Como se o meio de comunicação em tela quisessem demonstrar: “vejam como está não é a primeira vez! São assim mesmo: bárbaros!”

E mais. Onde está o radicalismo? Ocupações são condutas legítimas de exercício de cidadania.

O Globo – 07/06/2006 – O Movimento dos Sem-limites

Na mesma Casa em que atualmente só se ouve notícias de corrupção, mensalão e esquemas, trabalhadores rurais são impedidos de entrar e expressar seu descontentamento pessoal, de grupo social e de cidadãos nacionais. Que façam isso da porta para fora e em silêncio, que é para não quebrar o esquema!

Jornal do Brasil – 08/06/2006 – Vandalismo premeditado

Também dizer que a atuação foi premeditada é mais um absurdo que coloca toda ordem dos discursos no discurso da ordem, na esteira do pensamento foucaultiano. Na mesma Casa em que atualmente só se ouve notícias de corrupção, mensalão e esquemas, trabalhadores rurais são impedidos de entrar e expressar seu descontentamento pessoal, de grupo social e de cidadãos.

Jornal do Brasil – 08/06/2006 – Líder do Movimento resiste à prisão

O repórter responsável pela notícia nomeia os membros do Movimento como vândalos. Já se descreve desta forma para que o leitor sequer lembre que são atuantes de um movimento social, que são trabalhadores rurais que reivindicam por seus direitos. Assim, “lembram” (são induzidos) somente a vê-los como delinqüentes, baderneiros e vândalos, todos termos corriqueiramente empregados.

Depois ainda noticia sobre a vida pregressa do líder do Movimento, Bruno Maranhão, afirmando que o mesmo é filho de ex-usineiros e vem de família abastada, além de ter tido participação ativa na resistência contra a ditadura militar. Também assim o fazem para desqualificar o Movimento e tentar indicar aos leitores desavisados de que o Movimento é cooptado e não que é, na verdade, formado por trabalhadores rurais e sim por pessoas que querem se aproveitar do movimento para ampliar suas riquezas. Entretanto, deve-se perguntar o que o seu fundador em sua vida e formação o desqualifica de ser membro do Movimento? Quantos de classe abastada em tantos outros movimentos não se voltaram contra as rudezas da opressão e anulação de direitos?

Ainda sobre esta questão sobre o fato de Bruno Maranhão ter terras em Pernambuco, Augusto Nunes, jornalista do referido jornal, afirma que “comunista não ara terra herdada. Comunista invade terra alheia”. Temos mais um exemplo do esteriótipo que se quer enraizar e incutir na população. Não só retiram a possibilidade de o mesmo ser membro de um movimento social como também generalizam e incluem todos aqueles que possuem uma visão política à esquerda na dimensão de baderneiros e oráculos da desordem.

O que resta para o leitor é a lógica: se é comunista é criminoso! Entretanto, criminosa é esta afirmação, que não só generaliza, desqualifica e desmobiliza, mas também faz um não serviço, pois ao invés de informar, mantém o povo em uma situação de desconhecimento, pois estes movimentos sociais não invadem terra alheia, e sim ocupam áreas públicas ou privadas, mas, quanto a estas, não são quaisquer, escolhidas a esmo. São terras desapropriadas e não entregues a quem de direito (os trabalhadores rurais), ou que tem trabalho escravo, ou, ainda, aquelas que pleiteiam a desapropriação.

Mais a frente, Augusto Nunes retoma o ataque generalizante e afirma que “comunistas desprezam instituições democráticas”, mas, apesar da grande inverdade desta afirmação, o que comunista realmente despreza é ver o povo ser desrespeitado em seus direitos mais básicos… é ver o povo passar fome em terra abundante!

Volto a dizer. Aqui não entro na discussão das condutas em si consideradas excessivas, mas sim na forma como a Mídia trata os movimentos sociais com o fim de desmobilizá-lo e retirar o apoio popular, que se leva pelo senso comum e aceita como verdade tudo que lhe querem passar e assim, apesar também de dominados, passam a repetir o discurso dominante e a reforçá-lo e aceitá-lo para si também como bom.

A mídia em muito contribui para desqualificação dos movimentos agrários como legítimo direito à organização como movimento social. Sua atuação e objetivo são vistos pelas elites como ameaça à “ordem” pública, daí, criminalizá-lo, colocando obstáculos às suas ações e atividades dentro da dita ordem e da conquista pelos direitos que lhes são devidos. Verifica Zygmunt Bauman (ano) que o rol de setores populacionais visados como ameaçadores à ordem social e, portanto, rotulados como desviantes aumentou. Assim, legitima-se sua expulsão por meio do encarceramento, como método eficiente para neutralizar a ameaça e acalmar a ansiedade pública, tanto da classe dominante como da classe média, que “compra” o discurso ideológico daquela.

Também não vou entrar na esfera da vida privada do sr. Bruno Maranhão, isto é, se o mesmo tem ou não terras e rendas, pois aqui não cabe a análise, mas irei tecer alguns comentários, vez que importa demonstrar a tática usada pela imprensa. Ao se dar importância à situação econômica do fundador do MLST faz com que a população se volte contra o Movimento até questionando sua legitimidade enquanto movimento de trabalhadores rurais sem-terra e mais que isso pobres.

E mais. Pergunto eu: um ativista social para abraçar uma causa precisa padecer do mesmo mal? Uma pessoa que colabora, por exemplo, no recolhimento de pessoas em situação de rua e as encaminhe, seja educacionalmente seja com um trabalho, também tem que ser morador de rua?

Na revista semanal Época (fls. 40, de 12/06/06), os jornalistas tratam o movimento no mesmo sentido criminalizatório, mas, como toda versão fraca e inconsistente de quem meramente repete o discurso dominante, acaba afirmando que a intenção, inclusive citando a fita de vídeo, era “fazer barulho e pressionar o governo a liberar mais verbas do Orçamento para o movimento”. Se a intenção é fazer barulho, não se está implícita a violência e muito menos prática de crimes mencionados haja visto o objetivo de “pressionar para liberação de verbas”.

Em quadro anexo, na pág. 41 da mesma revista, sob o título Invasão Premeditada, em momento nenhum se vê na fala de quaisquer dos três líderes apontados incitamento à violência. Um diz, no primeiro quadro: “vamos dizer ao Brasil que tipo de reforma agrária queremos”. Ao dizer isso, entendo que o líder José Antônio esteja demonstrando que a “reforma agrária” nunca se efetiva de verdade, não sai do papel, mesmo quando se dá terra ao trabalhador, pois como disse a agricultura Rosi (ver citação acima) se tem terra não se tem dinheiro e nada se tem, pois uma sem a outra é nada!

O outro líder, não identificado, afirma que ninguém precisa ficar “encarando” a polícia legislativa, enquanto o outro, igualmente não identificado, afirma que a função dos membros do movimento era garantir que as portas não se fechassem. Enfim, onde está a violência incitada, o crime premeditado? O que se planejou foi uma atividade política que obviamente deve ser estudada, caso contrário, aí sim, seria arruaça. Ou será que o Green Peace (que é socialmente aceito) também não planeja suas ações?

Interessante observar a postura da Revista Época (data) em reportagem seguinte (pág. 44) à do MLST. Trata-se de notícia intitulada A chefe dos vaqueiros, na qual narra a estória da deputada federal, fazendeira e líder ruralista Kátia Abreu.

Afirma aqui o jornalista Matheus Leitão que a mesma “defende as reivindicações de praxe do setor: a renegociação das dívidas dos produtores rurais, a concessão de benefícios e a liberação dos alimentos transgênicos”. Ora, excetuando a reivindicação de reforma agrária, pois esta (latifundiária) não precisa, as outras são as mesmas dos movimentos sociais agrários, com outra diferença, mesmo os que têm terra (advinda de desapropriação) não tem dinheiro para tocá-la (e a deputada em questão tem terra, tem dinheiro e precisa demais).

Será tão difícil notar a diferença de tratamento? É óbvia a diferença, pois os membros dos movimentos são meros trabalhadores rurais, sem terra, sem dinheiro e sem cidadania. Pobre é desrespeitado e deve se calar, pois se se manifestar será rotulado como criminoso e terá toda a comunidade contrária às suas reivindicações, com a ajuda dos meios de comunicação.

Uma reportagem do “mesmo setor”, por assim dizer, também não é a toa e faz parte da mesma estratégia de dominação, pois vende a imagem de que os latifundiários são pacíficos e vítimas desses “pobres” que lutam por suas vidas. Afirma ainda o jornalista, em contraponto à reportagem dos sem-terra, tachados de arruaceiros e criminosos, que “Kátia convive de maneira cordial com os parlamentares que representam os movimentos sem terra, ferozes adversários ruralistas”. Vejam bem a diferença. Cordial para a latifundiária, feroz para os ligados a movimentos.

Será que uma ocupação, que nada mais é do que exteriorização de reivindicações, de lutas, afronta mais o Estado Democrático de Direito do que tudo que vemos e ouvimos sobre escândalos, lavagens de dinheiro e grandes esquemas envolvendo enormes cifras? Para estes nada acontece… Tem até samba da pizza! Mas para aqueles que lutam, por uma vida melhor aí sim… Criminosos eles são. Como ousam reivindicar melhores condições de vida para si e seus familiares? Isso só pode ser crime e se não for, arranjamos (os grupos dominantes) logo alguns que “sirvam”.

É assim que funciona. O direito penal está aí para isso, para legitimar o discurso e posicionamento dominante e “colocar o pobre em seu lugar”. É a dita seletividade do direito penal cumprindo mais uma vez a sua função. A criminalidade é um rótulo que certos sujeitos recebem por meio dos processos de interação social, sendo o criminoso uma qualidade atribuída.

O controle pode ser tanto formal (através dos órgãos institucionalizados de controle, como normas, sistema penitenciário, policiais, promotores de justiça, entre outros) como informal (a família, a escola, a mídia, a religião, e outros). A função do controle social, segundo Andrade (2003), tanto o formal quanto o informal, é selecionar quem pode e quem não pode conviver na sociedade, retirando da mesma os inconvenientes. O controle penal é espécie do gênero do controle social. Deve-se ficar claro que o sistema penal realiza o processo de criminalização e estigmatização em consonância com um sistema maior, que insere o controle social informal.

Uma das funções do estereótipo é recortar e redefinir a sociedade em termos de oposições e diferenças de forma a permitir que se desenvolva o medo, ampliando-se o sentimento de insegurança e os discursos que criminalizam e penalizam aqueles que não se encaixam nas normas, padrões estabelecidos, onde se incluem todos aqueles que lutam por seus direitos e que são considerados como desviantes: são os que subvertem a lei e a ordem.

Rotula-se o excluído, o diferente, como perigoso e, portanto, criminoso, sendo, importante reprimi-los em nome da segurança pública. Identificam os conflitos agrários como decorrentes da violência individual dos ditos invasores, saqueadores e suas lideranças, buscando-se assim declarar guerra contra o violento comportamento dos “invasores”, levando à justificação do combate repressivo em defesa da sociedade e da propriedade. Reproduz-se o discurso ideológico dominante que polariza entre o bem (latifundiários vitimados) e o mal (cruéis “invasores”). Para que se justifique a guerra, necessário se faz alimentar a sensação de insegurança, cabendo aqui aos meios de comunicação este papel de mantenedor do medo. Retomo Foucault (2003) ao afirmar que o direito nada mais era do que uma forma singular e regulamentada de conduzir uma guerra entre indivíduos e de encadear atos de vingança. O direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra (Foucault, 2003:56).

Para este filósofo, as ações judiciais são um modo de fazer circular os bens, sendo por isso que os mais poderosos visam controlar os litígios, impedindo que eles se desenvolvessem espontaneamente entre os indivíduos e porque tentaram apossar-se da circulação judiciária e litigiosa dos bens, o que implicou a concentração das armas e do poder judiciário, que se formava na época, nas mãos dos mesmos indivíduos (p.64). Na verdade, Foucault referia-se a uma característica presente na sociedade feudal, entretanto, pode-se perceber que pouco ou nada se alterou nesta estrutura, de lá para cá, pois podemos ainda ver os detentores do poder dominando o Judiciário, muitas vezes, ao seu bel interesse.

O autor de Em defesa da sociedade (1999) entende que nas sociedades ocidentais, desde a Idade Média, a elaboração do pensamento jurídico, deu-se em torno e em função do poder régio, para que lhe servisse de instrumento ou de justificação. Lembra, ainda, que em meados daquele mesmo período histórico, a reativação do direito romano foi um dos grandes instrumentos técnicos constitutivos do poder monárquico, autoritário, administrativo e absoluto.

O direito é visto, então, como instrumento desta dominação que, também, veicula e aplica relações que não são relações de soberania, mas de dominação. O sistema de direito e o campo judiciário são o veículo permanente de relações de dominação, de técnicas de sujeição. Deste modo, o essencial é indicar que o problema está circunscrito e emblematicamente situado no âmbito da dominação e das sujeições.

Encerro com a fala de Gilmar Mauro, membro da coordenação nacional do MST[3], que é muito apropriada e que tudo resume:

“(…) eles batem no Movimento Sem Terra porque é um grupo de gente, de povo, de pobre organizado e pobre organizado é um perigo para a elite brasileira. Eles têm nojo, ojeriza, de pobre organizado e vão combater sempre. O dia que o editorial do Estadão falar bem de nós, nós vamos ter que reavaliar o Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra, pois certamente estaremos no caminho errado. Não dá para esperar aplauso de quem é dono dos meios de comunicação, ao mesmo tempo é dono do poder econômico do país.”

Como diz Foucault, “vencer alguém é privá-lo de suas armas” (2003:64). Na verdade, é exatamente isto que intentam fazer ao criminalizar os movimentos sociais agrários, uma vez que as ocupações nada mais são do que armas políticas utilizadas com o fim de pressionar o Governo a agir, e sem elas, significa inviabilizar a luta, vencer o Movimento, destruir as possibilidades dos oprimidos ocuparem em plenitude o espaço público a que têm direito.

 

Referências Bibliográficas
ANDRADE, Vera Regina Pereira. A construção social dos conflitos agrários como criminalidade. In. Introdução Crítica ao Estudo do Sistema Penal. Florianópolis: Editora Diploma Legal, 2003.
BALDEZ, Miguel Lanzellotti. A questão agrária: a cerca jurídica da terra como negação da justiça. Discursos sediciosos Ano 2, n.º 3, Rio de Janeiro, 1997. p. 105 e seguintes.
BARATTA, Alessandro. Filósofo de uma criminologia crítica. In: Mídia e Violência Urbana. Rio de Janeiro:Faperj, 1994.
______. Criminologia Crítica E A Crítica Da Criminologia. Rio de Janeiro: Freitas Bastos Editora, 1999.
BATISTA, Nilo. Mídia e sistema penal no capitalismo tardio. Discursos sediciosos – crime, direito e sociedade. Ano 7, n.º 12, Rio de Janeiro, 2002, p. 271 e seguintes.
FERNANDES, Bernardo Mançano. A Modernidade no Campo e a Luta dos Sem Terra. In Revista De Cultura Vozes, número 1, ano 90. Editora Vozes. Petrópolis, 1996.
FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. Curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. Microfísica do poder. 7ª edição. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
______. Vigiar e Punir. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 1988.
______. A verdade e as formas jurídicas. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2003.
Periódicos
O Globo, de 06 e 07/06/2006 – Caderno O País.
Jornal do Brasil, de 06 e 07/06/2006.
Documentos Eletrônicos
Folha de São Paulo (on line), dia 13/05/2005, http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u68975.shtml
Notas:
[2] Texto da CPT veiculado via correio eletrônico na rede de discussão Renap (Rede De Advogados Populares).
[3] Discurso proferido em seminário realizado no dia 26 de junho de 2002, promovido pelo Grupo Tortura Nunca Mais/RJ, em comemoração pelo Dia Internacional Das Nações Unidas De Luta Contra A Tortura.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Cristiane de Souza Reis

 

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)

 


 

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