Resumo: Este artigo propõe-se a estudar a constituição do patrimônio de afetação nas incorporações imobiliárias residenciais e examinar recente inovação processual disposta na Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015 (o novo Código de Processo Civil – CPC). Preliminarmente, há uma breve abordagem acerca do condomínio edilício residencial e, no tópico seguinte, analisa-se suscintamente a atividade da incorporação imobiliária, naturalmente atrelada ao condomínio de edifícios e aos direitos constitucionais de moradia e função social da propriedade imobiliária. Finalmente, explica-se a importância da afetação do patrimônio das incorporações, que se revela uma das melhores soluções legislativas da atualidade para garantir a construção e a entrega das unidades imobiliárias, fomentando a economia, gerando empregos, e proporcionando a segurança não só dos adquirentes, mas também das instituições financeiras e dos próprios incorporadores. Paralelamente, em face da não obrigatoriedade do instituto da afetação, analisa-se uma novidade processual no âmbito da execução – a impenhorabilidade de créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias – que consagra a eficiência da segregação de patrimônio para o atingimento dos fins da incorporação imobiliária.
Palavras-chave: Incorporação imobiliária, Patrimônio de afetação, Não obrigatoriedade, Impenhorabilidade, novo CPC.
Sumário: Introdução. 1. Incorporação imobiliária. 1.1. Condomínio edilício residencial. 1.2. A atividade de incorporação. 2. Patrimônio de afetação. 2.1. Breves considerações. 2.2. A impenhorabilidade no novo CPC. Conclusão. Referências.
Introdução
É fato que a verticalização das moradias tornou-se necessidade e comodidade nos centros urbanos, devido a fatores como a escassez e o alto preço dos terrenos aliados ao grande crescimento populacional. E a efetivação do direito a moradia previsto na Constituição Federal encontra nas grandes incorporadoras, via de regra, um de seus maiores obstáculos, pois a compra de um apartamento pode se tornar uma fonte inesgotável de preocupações, tendo em vista os constantes atrasos na entrega e até mesmo a quebra de algumas empresas.
Para minimizar os danos causados aos adquirentes de imóveis pela irresponsabilidade das incorporadoras, o legislador brasileiro adotou a teoria do patrimônio de afetação, positivada na Lei nº. 10.931 de 02 de agosto de 2004. Esta teoria será o tema central deste artigo, o qual também abordará, de maneira breve, os institutos do condomínio edilício e da incorporação imobiliária, sempre com foco nos imóveis residenciais (apartamentos), a fim de contextualizar e facilitar o entendimento e consequências acerca da afetação de tais empreendimentos.
O patrimônio de afetação existe para trazer mais proteção aos adquirentes, às instituições bancárias e às próprias incorporadoras, como se pretende demonstrar neste artigo. A afetação é uma blindagem que visa assegurar o adimplemento de uma obrigação – a entrega das unidades quando finalizado o empreendimento. Através do patrimônio afetado (segregado) garante-se que a receita de uma incorporação não seja desviada, evitando-se abusos e fraudes em prol de uma finalidade comum e, “na prática, o regime de afetação não altera a natureza do negócio jurídico da incorporação, mas apenas protege e assegura que o acervo afetado cumpra sua função”[1].
Em paralelo, diante da não obrigatoriedade dessa segregação patrimonial nas incorporações, analisaremos o artigo 833, inciso XII, da Lei nº. 13.105, de 16 de março de 2015 (novo Código de Processo Civil – CPC), que trata da impenhorabilidade dos créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra, e nitidamente privilegia a teoria da afetação na prática processual moderna.
1. Incorporação imobiliária
1.1. Condomínio edilício residencial
O Código Civil de 2002 traz, em capítulo próprio (Capítulo VII do Título III), dispositivos acerca do condomínio especial em edifícios, assim definido por Orlando Gomes: “justaposição de propriedades distintas, perfeitamente individualizadas, ao lado de condomínio de partes do edifício, forçadamente comuns”[2]. É nos grandes centros urbanos, de crescimento verticalizado, que emerge essa figura especial – o condomínio “por andares” – em que o proprietário é, sozinho, o dono de seu apartamento, mas é forçosa e permanentemente condômino de outras partes do edifício como um todo.
Sob o ponto de vista econômico, o aumento demográfico e a crescente escassez de terrenos aptos à construção de moradias (e a consequente elevação dos valores) são algumas das justificativas para a construção de edifícios. Além disso, em relação às áreas comuns, os condôminos comungam as despesas necessárias para a conservação, e, por consequência, barateiam o custo, beneficiando todos os moradores ao mesmo tempo.
É plenamente possível instituir condomínio edilício por ato testamental. Todavia, as principais formas de se constituir o condomínio edilício são por atos intervivos, como quando o próprio dono do terreno se responsabiliza pela construção e posterior destinação de cada unidade do edifício, ou quando ele utiliza-se de um incorporador para tanto, tendo como objetivo final justamente a instituição do condomínio edilício.
1.2. A atividade de incorporação
O conceito da atividade de incorporação imobiliária encontra-se no parágrafo único do artigo 28 da Lei nº. 4.591 de 16 de dezembro de 1964 (que dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias) e envolve mobilizar fatores de produção concomitantemente à venda das unidades que serão construídas e individualizadas no competente Registro de Imóveis.
Uma das finalidades da incorporação imobiliária, como se pode perceber, é, essencialmente, o lucro. Afinal, é justamente esse lucro que faz com que os empreendedores aceitem assumir os riscos dessa atividade empresarial.
Em oposição ao lucro desenfreado da atividade de incorporação, está a existência do direito fundamental à moradia e a função social da propriedade. Tais princípios, intimamente ligados, asseguram que a compra de um imóvel residencial, o maior sonho de muitas pessoas, aconteça da forma mais justa e segura possível.
O direito à moradia foi elevado a direito social pela Emenda Constitucional nº 26/2000 e, como os outros direitos sociais e fundamentais, deve partir da ideia de dignidade da pessoa humana. Se o direito de propriedade é garantia individual, o direito de moradia surge mais amplo, sob o moderno manto da solidariedade[3].
Em relação à função social da propriedade, a par de sua definição em sua faceta constitucional – de não ser a propriedade um direito absoluto, a consagrar direitos como os de desapropriação, usucapião etc. –, há que se destacar sua faceta no ramo imobiliário, tendo em vista a atual concepção de constitucionalização do direito civil.
Para Fernando Augusto Cardoso Magalhães, em artigo publicado na Revista Obras Online de maio de 2010 e no site do Instituto Brasileiro de Estudos Imobiliários, a função social da propriedade imobiliária seria justamente “promover a construção de moradias de qualidade e a custo viável para a grande parcela da população brasileira, que ainda clama por casa própria”[4].
No artigo, o autor destaca a importância da atividade de incorporação imobiliária para o próprio desenvolvimento socioeconômico do país, gerando empregos e circulação de riquezas e concretizando o direito à moradia. Ao mesmo tempo, destaca os altos custos dessa atividade, derivados dos diversos entraves burocráticos que atrapalham a captação de investimentos e refletem na ineficiência da incorporação.
Melhim Namen Chalhub, advogado do Rio de Janeiro e um dos maiores especialistas no assunto deste artigo, a corroborar as ideias acima, dispõe sobre a importância da atividade incorporadora e destaca a eficiência da afetação do patrimônio de cada obra com o fito de cumprir a função social da propriedade: “a afetação (…) é um encargo que incide sobre o imóvel visando o cumprimento da função social da propriedade, mediante consecução da incorporação”[5].
A responsabilidade do incorporador para com os adquirentes deve, portanto, levar em consideração todos esses princípios constitucionais ao longo da execução do empreendimento. Essa dinâmica da incorporação, contudo, não segue um padrão rígido, sendo possível identificar procedimentos comuns ao desenvolvimento dessa atividade conforme analisaremos a seguir.
O primeiro passo deve ser a definição do terreno adequado ao empreendimento que se quer desenvolver. Posteriormente, deve o incorporador adquirir o terreno – ou então realizar promessa de compra e venda, ou mesmo promessa de cessão, e até mesmo com permuta[6].
Com o terreno, enfim, à sua disposição, pode o incorporador partir para o processamento de todas as informações necessárias para a consecução e aprovação do projeto definitivo pelos órgãos competentes. Munido, então, do projeto aprovado, é necessário que o incorporador elabore o Memorial de Incorporação, reunindo e discriminando todos os detalhes inerentes à atividade de incorporação que deseja realizar, e depois de elaborado, registre-o no Cartório de Registro e Imóveis.
Este registro é ato preliminar obrigatório, sendo que depois dele o incorporador está apto a fazer a oferta pública das unidades (ou frações ideais) do edifício. Iniciada a oferta, ao procurarem a empresa incorporadora, os adquirentes terão suas condições financeiras analisadas, seja pelo incorporador ou por instituição financeira que se proponha a realizar o financiamento. É o momento que tanto o incorporador quanto o adquirente têm de examinar todos os detalhes do negócio, a fim de realizarem um contrato seguro para as duas partes.
Quando a obra estiver finalizada, e averbada, finalmente, sua construção no Registro de Imóveis, estando também individualizadas as unidades, será possível a instituição do condomínio edilício estudado no tópico anterior. É o objetivo final da incorporação.
Dentre as leis que regulam essa atividade de incorporação, destaca-se a já mencionada Lei nº 4.591/64 (especialmente os artigos 28 a 67), atualizada pelas Leis nº 4.864/65 e nº 10.931/04 – esta última, a que acrescentou à Lei nº 4.591/64 os artigos 31-A a 31-F que tratam do patrimônio de afetação.
O Código Civil de 1916, conforme Caio Mário da Silva Pereira, não previa a possibilidade de condomínios por planos horizontais, reproduzindo a noção tradicional da divisão da terra em glebas[7]. Assim, apenas com o advento da Lei nº 4.591 em 1964 é que o incorporador passou a ter suas responsabilidades delineadas no ordenamento jurídico.
Esta lei trouxe mais segurança para o adquirente e para o negócio jurídico como um todo, já privilegiando o necessário equilíbrio nos contratos imobiliários. Ademais, muito antes do surgimento do Código do Consumidor, que é da década de 90, a Lei nº 4.591/64 já se utilizava das ideias de boa fé objetiva e função social do contrato.
Destaque-se, ainda, que o autor do anteprojeto desta Lei nº 4.591/64, o Professor Caio Mário, propôs a criação de um Conselho que fiscalizasse as incorporações, porém esta proposta não foi levada adiante quando de sua elaboração[8]. Foi apenas na atualização da referida Lei (em 2004), por meio do anteprojeto proposto por Melhim Chalub que foi positivada a ideia de uma Comissão fiscalizadora, sendo que aliada às ideias do patrimônio de afetação (vide artigo 50 da Lei 10.931/04).
O artigo 29 da Lei nº. 4.591/64 traz o conceito de incorporador, que não se confunde com o corretor, o mandatário etc., porque aquele encaminha todo o processo – seja também construtor ou não, dono do terreno ou não –, no intuito de, ao final, ver o condomínio constituído e as unidades individualizadas. Tem o importante dever de registrar no Cartório de Registro de Imóveis o memorial de incorporação, composto pelos vários documentos que trazem os detalhes da futura incorporação, bem como demonstram o preenchimento dos requisitos necessários para iniciar a atividade de incorporar.
É o responsável por toda a atividade empresarial que desenvolva, conforme o artigo 31 caput da referida Lei, sendo que havendo vários incorporadores, eles serão solidariamente responsáveis, vide artigo 31, §3º. O incorporador é, enfim, um sujeito com diversas facetas, que assume obrigação de resultado para com o adquirente, e detém bastante poder na atividade de dar corpo a um condomínio, pois está munido de imenso capital para a obra, e é quem define os detalhes de como o empreendimento será realizado.
Ao tempo em que o incorporador arca com os riscos advindos da economia, do clima, dos maus investimentos, pode vir a tornar-se, por sua vez, o maior risco para o adquirente. Um dos maiores exemplos aconteceu no final da década de 90, com a incorporadora ENCOL. À época considerada a maior construtora no país, faliu em 1999, tendo deixado aproximadamente 40 mil clientes e 700 obras para trás.
Entre as décadas de oitenta e noventa, conforme texto no site Marketing Imobiliário, mesmo nos momentos de crise, a ENCOL não deixou de lançar empreendimentos e anuncia-los no mercado, admitindo até mesmo carro e telefone como pagamento para a aquisição do imóvel (vide imagens da Folha de São Paulo da época, no referido texto)[9]. Aceitar carros usados, dentre outras promoções, é prática a ressurgir em época de crise econômica e aumento nos estoques de imóveis[10].
Costuma-se associar a falência da ENCOL ao modelo de administração adotado pela empresa, conhecido como “bicicleta”. Isso porque os novos empreendimentos financiavam os anteriores, sendo que a empresa não podia parar de “pedalar” nunca.
Sejam quais forem os reais motivos por trás desse escândalo, é certo que os adquirentes foram os maiores prejudicados. Por isso, foram feitas as mais diversas manobras judiciais para auxiliar aqueles que investiram todo o seu patrimônio e não obtiveram seus apartamentos ao final, como aconteceu no Condomínio do Empreendimento Costa Verde no Rio de Janeiro[11].
Criar uma lei que normatizasse adequadamente a atividade da incorporação imobiliária e evitasse casos como esses, que apenas avolumam o Judiciário, era tarefa de difícil cumprimento. A afetação do patrimônio de cada incorporação surgiu como uma das soluções para evitar que catástrofes como a da ENCOL voltem a acontecer, à medida que permite uma melhor aplicação dos recursos e maior facilidade para resoluções extrajudiciais, individualizando cada empreendimento, evitando a falência da incorporadora e os prejuízos a todas as suas obras.
2. Patrimônio de afetação
2.1. Breves considerações
A possibilidade de separar o acervo patrimonial de um imóvel residencial em construção, através do regime de afetação, mostra-se, ao menos de início, a melhor solução para as incorporadoras e demais partícipes do negócio. O patrimônio de afetação nesses empreendimentos visa exatamente “proteger a incorporação afetada contra os riscos patrimoniais de outros negócios da empresa incorporadora, visando a que seus eventuais insucessos em outros negócios não interfiram na estabilidade econômico-financeira da incorporação afetada”[12].
Um patrimônio “afetado” (um bem de família, uma renda vitalícia) é incomunicável por natureza, justamente para conferir a proteção almejada, e, no caso dos imóveis, assegurar que a atividade de incorporação atinja seu objetivo. Depois de averbado o “termo de afetação” no Cartório de Registro de Imóveis, tanto o terreno quanto as acessões, bem como as receitas provenientes já da venda das unidades futuras passam a integrar um patrimônio em separado.
A afetação não visa extinguir, naturalmente, todos os riscos e prejuízos. Mas delimita-os às obrigações decorrentes apenas do empreendimento que se busca concluir. O fato de haver uma contabilidade separada torna mais fácil também para a incorporadora controlar e fiscalizar se as receitas estão sendo direcionadas de acordo com o que foi programado, além de ser necessária uma conta-corrente bancária específica para a movimentação dos recursos.
Outro efeito prático decorrente dessa blindagem é a possibilidade (vide artigo 31-F da Lei nº 10.931/04) de a Comissão de Representantes dos Adquirentes, prevista na Lei das Incorporações (artigo 50), poder assumir a administração da incorporação afetada independentemente de intervenção judicial, e até mesmo promover a venda, em leilão extrajudicial, das unidades, e prosseguir a obra com autonomia, não sendo atingida pelos efeitos da falência, podendo, ao final, recolher à massa falida o saldo positivo (quando houver)[13].
Vale ressaltar que da mesma forma que a empresa incorporadora não pode utilizar as receitas afetadas da incorporação para outros de seus empreendimentos, também não podem os adquirentes, ao assumirem a administração desse patrimônio, desviarem tais recursos para o pagamento de débitos que não estejam vinculados a essa determinada incorporação.
Com base na função social da atividade empresarial, a Lei de Falências (Lei nº. 11.101/05) evoluiu e substituiu o rígido processo de concordata pelo flexível processo de recuperação judicial e, de maneira semelhante, a teoria do patrimônio de afetação, positivada na Lei 4.591/64 através da atualização trazida pela nova Lei 10.931/04, surge para flexibilizar a negociação entre os credores e devedores de um empreendimento específico, de modo a também preservar a atividade empresarial e atingir o fim desejado: a individualização e entrega das unidades do imóvel afetado.
Essa flexibilização se dá, por exemplo, no momento em que a Comissão de Representantes dos Adquirentes passa a administrar a incorporação e a resolver os débitos daquela determinada incorporação com os recursos que dela própria advenham, restaurando o equilíbrio econômico-financeiro.
Em setembro de 2001 houve a edição da Medida Provisória n° 2.221/01, regulamentando o patrimônio de afetação, mas restaram alterados importantes aspectos do anteprojeto elaborado pelo estudioso Melhim Chalhub junto ao Instituto dos Advogados Brasileiros, sendo o principal deles a retirada do caráter obrigatório do patrimônio de afetação. Uma novidade digna de elogio surgida nessa época, com a Lei nº 3.065/04, de autoria do Poder Executivo, foi a criação de um Regime Especial Tributário para os patrimônios afetados, o qual garante a desoneração de vários tributos em parcela única e permite melhor controle com uma alíquota única.
Ainda em março de 2004, o Poder Executivo enviou à Câmara dos Deputados o referido Projeto de Lei n° 3.065/2004, para que fosse anexado ao Projeto de Lei n° 2.109/99. Ou seja, adotou-se a estrutura do anteprojeto original, com a peculiaridade de ser opcional a afetação, acrescentando a regulamentação de um Regime Especial Tributário, também opcional. Em julho de 2004 a Câmara dos Deputados aprova o Projeto de Lei n° 2.109/99, com o anexo do Projeto de Lei do Executivo n° 3.065/04, e surge a Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, a qual acrescentou os artigos 31-A a 31-F à Lei de Incorporações (Lei nº 4.591/64).
Para Chalhub, a incorporação imobiliária se ajusta com perfeição à ideia de afetação patrimonial, considerada sua estrutura e função econômica e social. Por ser a incorporação imobiliária um instrumento de proteção da própria economia popular, disciplinando a captação de recursos para cada empreendimento, afirma ele que pecou o legislador por deixar os adquirentes (vulneráveis) à mercê dos incorporadores, tornando facultativa a afetação (vide artigo 31-A)[14].
O patrimônio permanece afetado desde o pedido de averbação do termo de afetação até a averbação da construção com as unidades individualizadas no Cartório de Registro de Imóveis, já no nome de seus adquirentes, e depois de resgatada a dívida do incorporador perante os bancos (se houver). Vale ressaltar também que a separação do patrimônio proposta pela Lei 10.931/04 não exime o incorporador e seu patrimônio geral das responsabilidades perante os adquirentes, pois se a empresa de alguma forma prejudica o patrimônio afetado, responde com seu patrimônio geral (vide artigo 31-A, §2º).
Se há cessão dos créditos decorrentes da venda de unidades por parte do incorporador, o montante recebido passa, naturalmente, a integrar o patrimônio afetado (vide artigo 31-A, §4º). E no caso de uma incorporação se desdobrar em outras, a afetação pode incidir sobre cada fragmento (por exemplo, sobre cada bloco de edifícios), podendo ser lançados em momento específico, de acordo com a conveniência da incorporadora, e com sua autonomia financeira assegurada.
As instituições bancárias também se beneficiaram com outros novos dispositivos da Lei 10931/04, pois se definiu que não são responsáveis pelos prejuízos advindos de vícios na construção ou da atividade de incorporação, como ressaltado no artigo 31-A, §12, o qual destaca a responsabilidade exclusiva do incorporador e do construtor.
O termo de afetação não exige maiores formalidades, sendo, em verdade, uma declaração, subscrita pelo incorporador e pelos titulares de algum direito aquisitivo sobre o terreno em questão, e que deve ser averbado no Cartório de Registro de Imóveis do referido terreno (preferencialmente, anexado ao Memorial de Incorporação), conforme o artigo 31-B da Lei 4.591/64.
O artigo 31-D cuida dos deveres do incorporador, que, naturalmente, deve bem administrar e preservar tudo que envolva o patrimônio de afetação, podendo se valer, inclusive, de medidas judiciais. E, no caso de má administração, pode ter que vir a responder com seus bens pessoais.
A boa administração exige não só a contabilidade separada do patrimônio de afetação em relação ao patrimônio geral, bem como a segregação dos bens, direitos e obrigações daquele, a fim de possibilitar, também, a apresentação trimestral aos adquirentes do balancete e relatório sobre o estado da obra e prazos. Assim, torna-se possível o acompanhamento da obra e a prevenção ou rápida reparação de qualquer desequilíbrio, podendo ser o caso, até, de destituição do incorporador.
A atividade realizada pelo incorporador se submete aos tributos inerentes ao exercício de empresa, como COFINS (contribuições para o financiamento da seguridade social), IRPJ (imposto sobre a renda das pessoas jurídicas), CSLL (contribuição social sobre o lucro líquido), contribuição para o PIS/PASEP (contribuição para os programas de integração social e de formação do patrimônio do servidor público). À medida que o patrimônio afetado se destaca do patrimônio geral, o recolhimento destes tributos deveria se relacionar especificamente com as receitas da incorporação do qual derivam.
Para tanto, a Lei 10.931/04 criou o regime opcional aplicável às incorporações em que se tenha constituído o patrimônio de afetação (artigos 1º a 11 da referida Lei). O incorporador escolhe se quer pagar apenas uma alíquota única sobre a receita mensal recebida, ao invés de recolher cada um separadamente.
A Lei 4.591/64, como já se analisou anteriormente era, em verdade, bastante completa, mas o direito é dinâmico, novas perspectivas surgem no mercado imobiliário e a segurança jurídica se faz necessária, por tratar-se de um meio que envolve grandes montas de dinheiro e o “sonho da casa própria” de muitas pessoas.
Nesse sentido, a tendência era a de que a opção pelo patrimônio de afetação se tornasse regra, exatamente por assegurar a boa administração do montante investido em cada incorporação, beneficiando todos os sujeitos do negócio. No entanto, as incorporadoras nem sempre o adotam, preferindo correr os riscos de que um empreendimento mal sucedido atrapalhe todos os seus outros negócios.
Quando questionadas acerca do porquê de não adotarem o patrimônio de afetação nas incorporações, as empresas se utilizam dos mais diversos argumentos: seja por ainda desconhecer os benefícios da lei, ou por causa da obrigação de prestar de contas trimestral e detalhadamente, ou mesmo por medo de que o grupo de adquirentes da Comissão de Representantes não tenha o conhecimento necessário para atuar ou atue de má fé diante do privilegiado acesso às diversas informações do empreendimento etc[15].
E, naturalmente, ainda há incorporadoras que não suportam a impossibilidade do trânsito de recursos entre os seus empreendimentos[16]. Trata-se de algo que o caso ENCOL já comprovou ser um imenso risco. E quando os problemas acontecem, os adquirentes recorrem ao Judiciário, o que apenas piora a situação desse Poder já tão avolumado.
Importante mencionar também que a constituição de Sociedade de Propósito Específico (SPE) bem como a contratação de seguro da obra (consideradas por alguns como sendo melhores soluções do que o patrimônio de afetação) têm como desvantagem diante do patrimônio de afetação a necessidade de autorização judicial para prosseguir com a obra. O patrimônio de afetação, em verdade, surge como excelente forma extrajudicial de resolução de conflitos, de modo a liberar o Judiciário de tarefas que possam sobrecarregá-lo desnecessariamente – é a reforma do Judiciário por meios alternativos[17].
Vale mencionar, ainda, que diante do maior equilíbrio contratual entre incorporadora, financeira e adquirente, é possível que haja diminuição dos custos em geral, concomitantemente à diminuição dos riscos. O adquirente pode receber seu imóvel no prazo, as instituições financeiras podem ter uma garantia ligada a esse patrimônio afetado, e o incorporador assegura andamento a vários empreendimentos, pois as contas são separadas e cada incorporação se sustenta por si.
2.2. A impenhorabilidade no novo CPC
A Lei de Falências, outrora mencionada, do ano seguinte à Lei 10.931/04, já trouxe dispositivo que ratifica as ideias da teoria da afetação, pois deve ser observado quando da instituição do patrimônio afetado nas incorporações. Com a aplicação desse dispositivo resta assegurada na falência a continuação da obra, separados os bens, direitos e obrigações afetados do patrimônio geral, vide artigo 119, IX daquele diploma legal.
Já o novo CPC, no artigo 833, inciso XII assim dispõe:
“Art. 833. São impenhoráveis:
XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra”
Trata-se a priori de dispositivo de grande importância prática, a corroborar a importância da separação (e proteção) dos créditos derivados da alienação de unidades imobiliárias de uma determinada incorporação e o patrimônio total da empresa incorporadora, homenageando os direitos constitucionais à moradia e função social imobiliária outrora analisados.
O dispositivo do novo CPC propõe uma segregação compulsória dos créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias aplicável a todo tipo de incorporação, sem a necessidade de afetar o patrimônio nos termos da Lei 4.591/64. Poder-se-ia cogitar, assim, quando da entrada em vigor do novo Código, a desnecessidade de afetação das incorporações imobiliárias.
Contudo, conforme se demonstrou ao longo deste artigo, há diversas outras benesses proporcionadas pela afetação prévia de uma incorporação (a formação de Comissão de Adquirentes, as prestações de contas trimestrais, a conta bancária específica etc.), devendo a interpretação da colocação daquele dispositivo no novo CPC, em verdade, dar-se no sentido de que o legislador evolui e adota, em uma perspectiva prática e processual, a necessidade de segregação do patrimônio[18].
Ademais, a finalidade da afetação prévia do patrimônio passa por uma necessidade de efetiva prevenção (de quebra e de inadimplemento) por parte do incorporador, enquanto que o dispositivo do novo CPC já trata do patrimônio de uma incorporação cuja empresa responsável está sofrendo execução judicial.
Além disso, pode haver dificuldade de aplicação do dispositivo do novo CPC na prática, tendo em vista que nem todas as empresas incorporadoras possuem uma clara separação dos patrimônios de cada obra e das receitas delas oriundas. Se há um patrimônio global e confuso da empresa, torna-se complicado tanto para o exequente quanto para o executado provarem seus argumentos em juízo.
Explicamos: para o credor exequente, pode ser difícil comprovar a possibilidade de penhora, pois certamente há nesse confuso patrimônio da incorporadora créditos impenhoráveis oriundos da venda de unidades imobiliárias vinculados a uma determinada obra. Tal situação pode, inclusive, premiar a incorporadora desorganizada.
A incorporadora executada, por sua vez, também pode encontrar obstáculos ao defender a impenhorabilidade de seu patrimônio uma vez que coexistem créditos diversos, e o novo CPC resguarda prioritariamente aqueles oriundos da venda de unidades imobiliárias vinculados a uma determinada obra.
A afetação do patrimônio da incorporação, portanto, mostra-se, ainda, como uma das melhores alternativas, podendo até tornar-se desnecessária a aplicação do dispositivo do novo CPC, dada a higidez que tal afetação proporciona aos empreendimentos. Relembre-se que a averbação não gera enormes custos para os adquirentes, afinal, o termo é lavrado sem grandes formalidades em uma página do livro de registros e não há custos muito maiores decorrentes da segregação dos registros contábeis, da movimentação financeira em separado e da criação de um CNPJ em caso de o incorporador optar pelo Regime Especial Tributário[19].
As normas, a consagrar adequada aplicação dos recursos de uma incorporação imobiliária a fim de cumprir o contrato e a prevenir desnecessárias contendas judiciais, já existem. Em tempos de crise econômica e apreensão no setor imobiliário[20], a responsabilidade nos contratos imobiliários merece maior atenção.
Conclusão
A incorporação imobiliária, como se viu, tem como maior objetivo a individualização das unidades de um edifício, com a consequente instituição de um condomínio, sendo exatamente o que acontece nos apartamentos, o modo de residência mais comum nas grandes cidades atualmente e vendidos pelas grandes incorporadoras.
Essas incorporadoras executam atividade empresarial das mais vorazes. A busca pelo lucro faz com que muitas empresas, ainda que especialistas nessa área, percam o controle sobre as finanças das incorporações, misturando-as de maneira descuidada e irresponsável, transformando o sonho de muitos adquirentes em pesadelo.
Sempre se buscou alternativas, seja através de um seguro para a construção, seja através da constituição de uma sociedade de propósitos específicos para cuidar das referidas finanças. Mas o risco, ainda que menor, permanecia, especialmente quando da insolvência da empresa. Com a falência da ENCOL, foi necessário que o legislador realmente se debruçasse sobre o problema, para que casos semelhantes não eclodissem novamente.
Aplicar a teoria de afetação nas incorporações imobiliárias foi uma das melhores soluções legislativas encontradas, conforme se demonstrou ao longo deste estudo, a satisfazer a obrigação principal, a entrega das unidades individualizadas, ao passo que protege os sujeitos que participam desse negócio.
Finalmente, destacou-se dispositivo do novo CPC, que somente entrará em vigor em 2016, tratando da impenhorabilidade de créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias vinculados à execução da obra em atividade de incorporação imobiliária. Como se mencionou, a colocação desse dispositivo no novo CPC ratifica a relevância da segregação dos patrimônios de uma incorporadora.
Conquanto o novo Código processual não tenha “abraçado” por completo a teoria da afetação, posto que não tornou obrigatória sua instituição prévia em todas as incorporações (e nem poderia, por não se tratar de matéria eminentemente processual), ressalta-se a evolução do legislador ao decidir pela necessária segregação do patrimônio em sede de execução e proporcionar a segurança daquela teoria aos conflitos judiciais.
Informações Sobre o Autor
Clarissa de Carvalho Freire Falcão
Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Pós-graduada em Direito Civil Negocial e Imobiliário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogada