O pensamento de São Tomás de Aquino e o julgamento com base em princípios jurídicos

Resumo: O presente artigo visa analisar a proximidade entre o pensamento de São Tomás de Aquino relativo à virtude da prudentia e a importância atual dos princípios jurídicos como maneira de adequar as leis aos casos particulares. Para o filósofo, prudente é a boa decisão tomada após a análise da realidade, permitindo-se, inclusive, a superação da norma posta para julgar o caso concreto com base em princípios superiores e critérios de equidade. Situação semelhante ocorre no contexto atual: o intérprete deve analisar as particularidades do caso para interpretar adequadamente a norma e, consequentemente, aplicá-la de acordo com os ideais de justiça da nossa sociedade.

Palavras chave: São Tomás de Aquino; prudentia; princípios jurídicos.

Abstract: The present article aims to analyze the closeness between the thought of Saint Thomas Aquinas about the virtue prudentia and the actual relevance of the legal principles as a manner to adapt the law to the particular cases. For the philosopher, prudent is de right decision taken after the analysis of the reality, even if it’s needed to forget the written law in order to judge the case based in superiors principles and equity criteria. Similar situation occurs nowadays: the judge needs to analyze the particularities of the case in order to well interpret the law and consequently apply it according to the justice ideals of our society.

Keywords: Saint Thomas Aquinas; prudentia; legal principles.

Sumário: Introdução. 1. A prudentia em São Tomás de Aquino. 2. As partes potenciais da prudentia e a epiqueia. 3. As partes potenciais da prudentia e o julgamento por princípios. 3.1. Princípios. 3.2. O uso atual dos princípios e o pensamento de São Tomás de Aquino. Conclusão. Referências.

Introdução

Este estudo realiza uma revisão acerca do pensamento de São Tomás de Aquino sobre a prudência, enfatizando os conceitos de gnome e epiqueia, respectivamente parte potencial da prudência e virtude anexa à justiça, que estão relacionados à necessidade de, em alguns casos, afastar-se da lei posta para julgar de acordo com outros critérios, principalmente quando o respeito à previsão legal esteja apto a gerar uma situação de injustiça.

Paralelamente analisa-se a importância dos princípios jurídicos em nossa realidade, que são utilizados pelos aplicadores do direito como meio de adequação das leis aos casos concretos, seja complementando insuficiências, seja solucionando lacunas.

Objetiva-se, assim, demonstrar a intimidade entre o pensamento antigo do filósofo e a atualidade, vez que, em razão das constantes mudanças sociais, o problema das leis injustas ou insuficientes se protrai no tempo, sendo o estudo das soluções existentes sempre atual.

1. A prudentia em Tomás de Aquino

Para iniciar o estudo sobre a prudentia de Tomás de Aquino é preciso verificar, como ressalta Jean Lauand (apud AQUINO, 2005. p. VIII), que estamos diante de vocábulo que passou por alterações semânticas ao longo do tempo, mudanças essas que implicaram em uma inversão de seu conteúdo: antigamente a prudência era vista como uma qualidade positiva, mas na atualidade passou a ter conotação negativa.

Em virtude das modificações ocorridas, o vocábulo prudência tem, atualmente, a seguinte acepção: “sf (lat prudentia) 1. Virtude que nos faz prever e evitar as faltas e os perigos e que nos leva a conhecer e praticar o que nos convém. 2. Cautela, precaução. 3. Circunspeção, sisudez, seriedade, tino. 4. Moderação. 5. Cordura” (MICHAELIS, 2014).

Ou seja, prudência, atualmente, representa a cautela que se deve ter ao tomar, ou não, decisões. Seu conceito está diretamente relacionado à ideia de precaução, bem como à necessidade de arriscar. Para Tomás de Aquino, entretanto, ao lado da justiça, da coragem e da temperança, a prudência representava uma das quatro virtudes cardeais da Antiguidade (SILVA, 1998).

A prudentia de São Tomás de Aquino consiste na virtude cardeal de saber tomar uma decisão certa diante da observação da realidade. Explica o filósofo: “[…] a arte de decidir corretamente, isto é, com base não em interesses oportunistas, não em sentimentos piegas, não em impulsos, não em temores, não em preconceitos etc., mas, unicamente, com base na realidade, em virtude do límpido conhecimento do ser. Prudentia é ver a realidade e, com base nela, tomar a decisão certa” (2005, p. X).

Trata-se da reta razão aplicada ao agir (recta ratio agibilum): é a relação entre o fim que se objetiva e a escolha do correto agir para alcança-lo.

Nesse sentido percebe-se que ela apresenta duas facetas: o conhecimento dos fatos e a ação adequada diante deles. Isso porque a virtude de tomar a decisão certa é cognoscitiva e prescritiva, sendo o centro da vida moral (LAUAND, 2002).

Explica Kathia Bazuchi (2011, p. 75) que as decisões tomadas de forma prudente serão sempre boas. Isso porque o agir de forma prudente impede que a decisão tomada esteja eivada de algum erro de discernimento. Sendo assim, em que pese serem possíveis inúmeras ações boas em cada situação, aquela tomada de maneira prudente sempre o será.

Conforme o ensinamento de Tomás de Aquino, a prudentia é composta por três partes, quais sejam: as integrais, as subjetivas e as potenciais.

São partes integrais da prudentia a razão, a inteligência, a circunspecção, a previdência, a docilidade, a prevenção, a memória e a sagacidade.

As partes subjetivas, por sua vez, são a prudência pela qual uma pessoa governa a si mesma e a prudência pela qual governa grupos.

Finalmente, Tomás de Aquino elenca como partes potenciais da prudência a eubulia (conselho), a synesis (juízo sobre as coisas que acontecem ordinariamente) e a gnome (juízo sobre as coisas nas quais é necessário afastar-se das leis comuns). E é sobre estas últimas que vamos concentrar o presente estudo.

2. As partes potenciais da prudentia e a epiqueia

Na Questão 51 São Tomás de Aquino trata das partes potenciais da prudência. São elas: a eubulia, a synesis e a gnome.

A eubulia é considerada como virtude humana, uma vez que consiste no bom conselho, ou em aconselhar bem. Nesse sentido leciona São Tomás: “Ora, a eubulia implica bondade do conselho e se chama assim porque eu significa, em grego, bom, e boulé, conselho” (2005, p. 57).

Distingue-se da prudentia justamente porque esta leva o homem a comandar bem, enquanto a eubulia o leva a aconselhar bem.

Essa diferença, ademais, gera uma relação de subordinação entre a eubulia e a prudentia, conforme explica o filósofo: “E, assim como aconselhar está subordinado ao comandar, assim também a eubulia à prudência, como virtude principal, sem a qual nem ela mesma seria virtude, do mesmo modo que também as virtudes morais não são virtudes sem a prudência, nem as outras virtudes sem a caridade” (AQUINO, 2005, p. 59).

Em seguida, a synesis aparece como a virtude relacionada com o bem julgar. Nas palavras de São Tomás: “a synesis leva a um juízo reto não na ordem especulativa, mas no âmbito das ações particulares, para a quais também se volta a prudência” (2005, p. 60).

Assim como ocorre com a eubulia, a synesis também não se confunde com a prudentia. Conforme explica Juan Fernando Sellés (1999), a synesis capacita o agente para julgar bem enquanto à prudentia pertencem o fim e o complemento, ou seja, decidir o que é necessário para agir. Percebe-se, então, que ao passo que a prudentia objetiva determinar o que se convém ou não realizar, sendo preceptiva, a synesis tem função meramente judicante.

A gnome, por sua vez, corresponde à virtude de julgar de acordo com princípios superiores às regras comuns, com base nas quais julga a synesis. Ela se verifica nos casos em que se deve ter “perspicácia de juízo” (AQUINO, 2005, p. 63) para “fazer algo à margem das regras usuais” (AQUINO, 2005, p. 63).

Trata-se de maneira de julgar que se relaciona ao âmbito da ação, ou seja, à análise do caso concreto para tomar a decisão justa, mesmo que para isso seja necessário superar as leis postas e decidir de acordo com princípios.

E no que concerne a essa decisão tomada com base em outros pressupostos que não as normas, explica São Tomás: “Ora, no âmbito da ação, às vezes dá-se o caso de ter de fazer algo à margem das regras usuais, por exemplo não entregar um depósito a seu dono, um inimigo da pátria etc.” (2005, p. 63).

No artigo 1 de II-II, 120, São Tomás de Aquino trata da virtude da epiqueia, intimamente relacionada com a gnome, razão pela qual é aqui estudada ao lado das partes potenciais da prudentia.

A epiqueia é explicada pelo filósofo como uma virtude anexa à justiça. Ela aparece quando o meio para se chegar à melhor decisão é desrespeitar a letra da lei e julgar de acordo com o bem comum, buscando-se atingir a equidade diante do caso sub judice.

Essa maneira de julgar que deriva da epiqueia surge porque é impossível, conforme entende São Tomás, que uma lei se aplique perfeitamente para todos os casos concretos. Isto é, porque em alguns casos a aplicação pura e simples da norma posta não implicará na realização da justiça.

Explica São Tomás de Aquino: “Os atos humanos – sobre os quais incidem as leis – são singulares e contingentes, e, portanto, podem se dar com uma infinita variedade de modos. Daí que não seja possível estabelecer uma lei que não falhe em algum caso concreto. Os legisladores, ao elaborarem as leis, visam o que acontece na maioria dos casos, e observar a lei em alguns casos atenta contra a equidade da justiça e contra o bem comum, que é o que a lei visa” (2005, p. 64).

Diante da constatação de que as leis podem ser falhas para realizar a justiça em todos os casos, prossegue São Tomás (2005, p. 65) explicando que, em algumas situações concretas, respeitar o quanto estabelecido na lei é mau; sendo bom, ao contrário, tomar a decisão com base nos critérios de justiça e de utilidade comum, desrespeitando a letra da lei. E é justamente isso que faz a epiqueia.

Sobre o sentido que é dado à epiqueia leciona John Daly: “Ela vem do grego e ficaria em latim “superjustitia”: aquilo que está acima da justiça. É, com efeito, segundo Sto. Tomás (seguindo Aristóteles), antes de tudo uma virtude que faz parte da virtude cardeal da justiça. Mais particularmente, é uma parte subjetiva da justiça legal, que respeita a intenção do legislador antes que a letra da lei e que é, assim, de certo modo a parte mais nobre da justiça legal. Ou ainda, com relação ao respeito à lei escrita, é a virtude que modera o respeito que lhe é devido em consciência. Ela se chama “suprajustiça” não porque ela ultrapasse toda a justiça mas porque ela ultrapassa a justiça que consiste em simplesmente obedecer à lei escrita” (2012).

Percebe-se, aqui, a estreita conexão que se estabelece entre a epiqueia e a gnome. Isso porque, enquanto a gnome se relaciona à virtude de deixar a lei de lado para julgar de acordo com princípios superiores, a epiqueia é a virtude de saber que a justiça será melhor atingida se a letra da lei não for observada.

Explica John Daly a relação existente entre elas: “Dizemos fazer uso da epiqueia ou invocar a epiqueia para desobedecer, por uma causa suficiente, à letra de uma lei. Sto. Tomás fala inclusive do “epieikes”: o homem que faz um ato de epiqueia. E enquanto princípio segundo o qual se julga da conveniência de afastar-se da letra de uma lei para ser mais fiel à verdadeira justiça legal, ela habita na inteligência e depende estreitamente da gnome, uma das partes da prudência” (2012).

Nessa linha de raciocínio também se posiciona Ricardo Dip: “Diz S. TOMÁS não ser possível instituir uma lei jurídica absolutamente universal, de sorte que o legislador considera apenas os dados ordinários, que falham algumas vezes, exigindo-se um juízo excepcional, perspicaz, próprio da virtude da gnome, que é outro hábito potencial da prudência, visando à consecução casual do que é justo non secundum legem scripta, mas segundo aquilo que dita a justa razão e o bem comum. Esse fim singular é próprio da epiquéia, parte subjetiva da justiça, que antes se ajusta ao espírito da lei do que a sua letra. Mas a epiquéia, enquanto hábito que inclina a vontade a cumprir o justo em circunstâncias particulares, e a gnome, enquanto julga dos meios de realizá-la, não se dirigem a afastar-se da regra e medida universal do justo, senão que a apartar-se da letra da lei quando, num dado caso particular, cumprir essa letra é afrontar-lhe o espírito e os fins exatamente a que ela visa: trata-se aí do que se indicou ser a cláusula rebus sic stantibus de cada norma” (2012, p. 24).

Conclui-se, portanto, que a synesis e a gnome são partes potenciais da prudência que versam sobre atos singulares enquanto a epiqueia, por sua vez, é virtude relacionada diretamente à justiça.

Assim, ao se deparar com o caso concreto, nem sempre a decisão prudente será aquela tomada estritamente com base na disposição legal que regulamente a situação de forma genérica, mas a decisão tomada após analisar o melhor meio para se atingir a justiça, mesmo para isso seja necessário afastar a letra da lei posta e julgar com base em princípios ou em critérios de equidade.

Esse entendimento que se retira do pensamento de São Tomás de Aquino, apesar do período histórico no qual foi construído, não se afasta muito de nossa realidade atual, na qual os julgadores devem buscar julgar cada caso de acordo com critérios de justiça e não somente pela mera subsunção do fato à lei.

Isso porque esse critério positivista de subsumir todos os casos concretos à lei posta pode gerar, algumas vezes, situações de injustiça, já que nem sempre a norma escrita é apta para solucionar a questão da maneira mais adequada.

Diante de algumas situações particulares a lei pode ser insuficiente e, em outras, injusta. E não deve o aplicador do direito, verificando situações como essas, deixar de aplicar outros critérios de julgamento que o levarão a tomar decisões mais justas tão somente para fazer prevalecer a letra da norma posta.

Passaremos agora a analisar o meio como, atualmente, os princípios jurídicos são usados pelo intérprete na busca de adequar a norma aos casos concretos e, assim, atingir o ideal de justiça esperado pela sociedade.

3. As partes potenciais da prudentia e o julgamento por princípios

3.1. Princípios

Conforme leciona o professor Roque Carrazza, o termo princípio possui o significado de início, começo. Trata-se do ponto de partida de um sistema. Vejamos: “Etimologicamente, o termo “princípio” (do latim principium, principii) encerra a ideia de começo, origem, base. Em linguagem leiga é, de fato, o ponto de partida e o fundamento (causa) de um processo qualquer. […] Por igual modo, em qualquer Ciência, princípio é o começo, alicerce, ponto de partida. Pressupõe, sempre, a figura de um patamar privilegiado, que torna mais fácil a compreensão ou a demonstração de algo. Nesta medida, é, ainda, a pedra angular de qualquer sistema” (2010, p. 42).

Os princípios jurídicos, por sua vez, são enunciados lógicos, implícitos ou explícitos, que vinculam o aplicador do Direito no momento de interpretação e aplicação das normas jurídicas (CARRAZZA, 2010, p. 44-45).

São, portanto, regramentos básicos não positivados que incidem sobre determinado instituto jurídico com o fim de auxiliar na interpretação das normas e na solução de eventuais lacunas (DONNINI, 2011, p. 158). Prestam-se para “regular comportamento ainda não regulado ou regulado de forma insuficiente” (DONNINI, 2011, p. 158). Ou seja, atuam tanto como orientadores no processo legislativo, bem como elementos de interpretação no momento da aplicação do Direito.

Os princípios não se confundem com as regras em razão de dois critérios de diferenciação: a generalidade e a determinabilidade dos casos de aplicação. Isto é, os princípios são normas dotadas de alto grau de generalidade, que prescrevem condutas dentro das possibilidades fáticas e jurídicas do caso concreto (mandamento prima facie); enquanto as regras prescrevem comandos que devem ser cumpridos.

Eles trazem valores que devem ser observados pela sociedade e pelo ordenamento jurídico. Explica Humberto Ávila: “[…] são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção” (2006, p. 78-79).

Enquanto as regras são normas que devem ser cumpridas observando-se a correspondência entre a sua previsão e a situação sub judice, conforme explica referido autor: “As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos” (ÁVILA, 2006, p. 78).

O presente estudo visa analisar a importância dos princípios jurídicos quando a lei por si só, uma vez elaborada com base em parâmetros gerais, não se presta para o adequado julgamento de determinado caso, vez que sua aplicação daria margem a uma situação de injustiça.

Nesses casos, por meio deles será possível adequar a norma posta ao caso sub judice e proceder a uma decisão adequada.

3.2. O uso atual dos princípios e o pensamento de São Tomás de Aquino

Ao se deparar com uma situação concreta, muitas vezes o operador do direito tem de lidar com a ausência de norma específica ou com a insuficiência da previsão existente para bem julgar o caso. E é nesse momento que ele recorre aos princípios jurídicos – em todas as suas funções – para buscar a solução mais adequada e, principalmente, mais justa possível.

Esse comportamento, apesar de muito recorrente em nossa realidade, já era mencionado por pensadores antigos como Tomás de Aquino, que, como vimos, elaborou os conceitos de gnome e epiqueia para explicar que, muitas vezes, para tomar a decisão correta, é preciso apartar-se da letra da lei quando observá-la implique em afrontar os fins a que ela visa.

Cabe aqui trazer a atemporal lição de Aristóteles, que explica que a adequação da norma ao caso em análise deve se dar de modo a julgá-lo da maneira como teria sido idealizada pelo legislador se ele tivesse regulado a questão. Vejamos: “O que origina o problema é o fato de o equitativo ser justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal. A razão disto é que toda lei é universal, mas não é possível fazer uma afirmação universal que seja correta em relação a certos casos particulares. Nos casos, portanto, em que é necessário falar de modo universal, mas não é possível fazê-lo corretamente, a lei leva em consideração o caso mais freqüente, embora não ignore a possibilidade de erro em conseqüência dessa circunstância. […] Por conseguinte, quando a lei estabelece uma lei geral e surge um caso que não é abarcado por essa regra, então é correto (visto que o legislador falhou e errou por excesso de simplicidade), corrigir a omissão, dizendo o que o próprio legislador teria dito se estivesse presente, e que teria incluído na lei se tivesse previsto o caso em pauta” (2008, p. 125).

Percebe-se que, mesmo com a evolução dos sistemas jurídicos, é impossível elaborar um ordenamento que abarque todas as situações existentes e vindouras que a sociedade levará à Justiça em busca de uma solução.

A constante evolução das relações humanas impede que os juristas sejam capazes de prever todas as questões que geram conflitos passíveis de serem solucionados pelo judiciário. Sempre surgirá uma nova questão ou um novo viés para uma questão já prevista e, com isso, também sempre surgirá a necessidade de se recorrer a outros elementos além da lei posta.

E é justamente a atualidade dessa questão, já tratada há anos por diversos juristas e filósofos, que chama a atenção no presente estudo. O pensamento de São Tomás de Aquino é perfeitamente aplicável para a nossa atualidade e se verifica presente nos métodos existentes para solucionar essa problemática. Aqui, mais especificamente, se relaciona intimamente com o uso que fazemos dos princípios jurídicos. Vejamos.

Os princípios se prestam a fazer essa adequação da previsão legal ao caso concreto justamente em razão das funções que exercem no sistema jurídico.

Em razão da sua função integrativa, são utilizados pelo intérprete para incluir elementos não expressamente previstos nas regras, conforme leciona Humberto Ávila: “No plano da eficácia direta, os princípios exercem uma função integrativa, na medida em que justificam agregar elementos não previstos em subprincípios ou regras. Mesmo que um elemento inerente ao fim que deve ser buscado não esteja previsto, anda assim o princípio irá garanti-lo. Por exemplo, se não há regra expressa que oportunize a defesa ou a abertura de prazo para manifestação da parte no processo – mas elas são necessárias -, elas deverão ser garantidas com base direta no princípio do devido processo legal. Outro exemplo: se não há regra expressa garantindo a proteção da expectativa de direito – mas ela é necessária à implementação de um estado de confiabilidade e de estabilidade para o cidadão -, ela deverá ser resguardada com base direta no princípio da segurança jurídica. Nesses casos há princípios que atuam diretamente” (2006, p. 97).

Ou seja, os princípios atuam como fonte normativa subsidiária, exercendo a função de regras jurídicas nos casos em que não se verifique uma lei específica para dar solução ao caso concreto (BARROSO, p. 123).

Uma segunda função exercida pelos princípios é a definitória. Por meio dela, eles se prestam a delimitar a previsão contida na lei, adequando-a às situações individuais, conforme prossegue Humberto Ávila: “[…] relativamente às normas mais amplas (sobreprincípios), os princípios exercem uma função definitória, na medida em que delimitam, com maior especificação, o comando mais amplo estabelecido pelo sobreprincípio axiologicamente superior” (2006, p. 98).

A função interpretativa dos princípios também colabora para essa adaptação da previsão legal, vez que por ela é possível interpretar os textos normativos de maneira ampliativa ou restritiva (ÁVILA, 2006, p. 98).

Ainda sobre a função interpretativa, destaca Leonardo Alves Barroso que os princípios atuam como norte para a compreensão e a aplicação das leis. Vejamos: “Na função interpretativa, os princípios desempenham o papel de direcionar, coerentemente, as soluções jurídicas dos casos submetidos à apreciação do intérprete, atuando como instrumentos de auxílio à interpretação jurídica e, portanto, são verdadeiros vetores que orientam as demais normas do ordenamento jurídico, dando compreensão às regras normativas, sendo denominados de princípios descritivos ou informativos” (p. 123).

Finalmente, percebe-se que os princípios exercem, ainda, uma última função, a bloqueadora. Por meio dela é possível afastar a previsão legal que seja incompatível com o objetivo de julgar corretamente determinado episódio.

Nessa linha de raciocínio se posiciona Humberto Ávila: “Em terceiro lugar, os princípios exercem uma função bloqueadora, porquanto afastam elementos expressamente previstos que sejam incompatíveis com o estado ideal de coisas a ser promovido. Por exemplo, se há regra prevendo a abertura de prazo, mas o prazo previsto é insuficiente para garantir a efetiva protetividade aos direitos do cidadão, um prazo adequado será garantido em razão da eficácia bloqueadora do princípio do devido processo legal” (2006, p. 98).

Percebe-se assim que em alguns casos a mera obediência às leis tais como elas foram positivadas pode dar margem a um resultado injusto, resultado esse que não está de acordo com a prudentia de São Tomás de Aquino. Isso porque, conforme já explicou o filósofo, prudente é a decisão correta, a boa decisão para cada caso concreto.

Essa injustiça decorre, conforme leciona Leonardo Alves Barroso, da necessidade de se observar a lei, a situação concreta e a realidade social na qual o fato em análise se realizou para que ocorra a correta aplicação da norma posta. Vejamos: “A aplicação da lei pura e friamente, sem levar em consideração o contexto social a qual será integrada, acarreta injustiças e, por consequência, insatisfações, colocando em risco o Estado de Direito idealizado pelo Constituinte Originário” (p. 119).

Justamente por isso em alguns momentos é necessário que o aplicador do direito supere a letra da lei, aplicando os princípios existentes no ordenamento, de modo a adequar a previsão legal ao caso sub judice.

Nesse sentido é a lição de Sérgio Cavalieri Filho: “Com freqüência ouvimos dizer que a questão da lei justa ou injusta é problema do legislador e não do juiz. Quem fez a lei é que tem que responder pelos seus efeitos sociais, positivos ou negativos. Isso não deixa de ser verdade. Mas até que ponto isso exclui a responsabilidade do juiz e dos operadores do direito em geral? Afinal, quem aplica o direito? Quem aplica a lei injusta? O resultado prático e concreto de uma lei só se verifica quando ela é aplicada, e isso não é tarefa do legislador. Logo, assim como a má lei é responsabilidade ética do legislador, a má sentença, a eficácia de vida que dela resulta é responsabilidade ética do juiz. Eis aí o motivo pelo qual não podemos interpretar e aplicar nenhuma lei, qualquer que seja a sua hierarquia, de modo a resultar na indignidade da pessoa humana, na desigualdade social, ou, ainda, no aumento da pobreza, porque isso importaria na negação da própria justiça. E nós, lembremo-nos disso, temos compromisso com o Direito, temos compromisso com a Justiça, e não apenas com a lei” (2002, p. 60).

Entretanto, imperioso destacar que tal superação não pode se dar ao alvedrio do intérprete. Não se trata de possibilidade deixada ao arbítrio do julgador. Ao contrário, deve o operador do direito justificar que o está fazendo porque há uma incompatibilidade entre a lei e a situação em análise.

Explica Humberto Ávila a necessidade de uma justificativa para a superação da norma posta: “A superação de uma regra deverá ter, em primeiro lugar, uma justificativa condizente. Essa justificativa depende de dois fatores. Primeiro, da demonstração de incompatibilidade entre a hipótese da regra e sua finalidade subjacente. É preciso apontar a discrepância entre aquilo que a hipótese da regra estabelece e o que sua finalidade exige. Segundo, da demonstração de que o afastamento da regra não provocará excessiva insegurança jurídica. […] Enfim, a superação de uma regra condiciona-se à demonstração de que a justiça individual não afeta substancialmente a justiça geral” (2006, p. 119).

Percebe-se, portanto, que demonstrado pelo aplicador do direito que a mera subsunção do fato à norma dará margem a uma decisão injusta, em desacordo com os princípios que norteiam nossa sociedade, deverá ele, fundamentadamente, afastar a lei posta ou adequá-la para que sua aplicação atinja os ideais de justiça.

Conforme destaca Sérgio Cavalieri Filho, diante das constantes mutações sociais que vivenciamos, o interprete deve sempre estar pronto para ajustar a lei aos parâmetros de justiça de cada período histórico. Vejamos: “Adequar o Direito à Justiça é obra perene do operador do direito, por melhor que seja a lei. E assim é porque, sendo a Justiça, como vimos, um sistema aberto de valores em constante mutação, por melhor que seja a lei, por mais avançados os seus princípios, haverá sempre a necessidade de se engendrar novas fórmulas jurídicas para ajustá-la às constantes transformações sociais e aos novos ideais da Justiça” (2002, p. 63).

Percebe-se, portanto, que na realidade jurídica atual a decisão justa não é necessariamente aquela que se pauta tão somente no quanto previsto pelo legislador. Ao contrário, o intérprete que se limita a realizar a mera subsunção do fato à norma pode dar margem a diversas decisões injustas.

Cabe ao operador do direito analisar individualmente cada situação e verificar se a lei é suficiente ou se, in casu, faz-se necessário recorrer aos princípios jurídicos que norteiam nosso sistema para adequá-la ou complementá-la, de modo a encontrar a melhor solução para o problema.

Conclusão

A partir do exposto, é possível perceber que os ensinamentos de São Tomás de Aquino sobre a prudentia, com destaque para as suas partes potenciais, apesar de historicamente distantes da nossa realidade social, em muito se aproximam do entendimento que temos sobre o que é uma decisão justa.

Para o filósofo, prudente é a boa decisão tomada após o conhecimento da realidade. E para que se verificasse a prudentia como virtude do julgador, poderia ele, por meio da gnome e da epiqueia proceder a uma avaliação sobre as regras que deveriam ser aplicadas e, caso entendesse necessário, afastá-las e julgar de acordo com princípios superiores.

O mesmo ocorre hoje em dia. É sabido que não cabe ao operador do direito somente realizar uma operação matemática de mera subsunção do fato à norma. O atual intérprete tem o dever de analisar as circunstâncias particulares, a realidade social e a intenção da lei, para interpretá-la e aplicá-la de acordo com os ideais de justiça da nossa sociedade.

E para realizar essa adequação, deverá ele se valer dos princípios jurídicos que norteiam o nosso ordenamento, de modo a fazer com que eles prevaleçam, garantindo, ao máximo, a realização de justiça para cada caso concreto.

 

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Informações Sobre o Autor

Luíza Souto Nogueira

Advogada em São Paulo. Mestranda em Direito Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP


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