SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA; 2.1 Excertos Jurisprudenciais a Respeito do Princípio da Insignificância; 3. A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA; 3.1 O Poder Discricionário do Delegado de Polícia; 3.2 Hipóteses Concretas de Aplicabilidade do Princípio da Insignificância Pela Autoridade Policial; 3.2.1 Prisões em Flagrante; 3.2.2 Procedimentos Policiais Sumários; 3.5 Possibilidade de Extensão da Sistemática Proposta neste Estudo a Infrações Materialmente Típicas; 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS. BIBLIOGRAFIA.
O princípio da insignificância é tema que se mostra sempre presente, gerando palpitantes debates no cenário jurídico pátrio. Com muito maior evidência, pois, a contundência do assunto exsurge, quando conjecturamos sua possível aplicação profilática no panorama específico do labor da Polícia Judiciária. Conjugando o estudo da fórmula de Claus Roxin com a inegável realidade do poder discricionário Delegado de Polícia, o autor procura demonstrar a inevitabilidade da aplicação de vanguarda desse instituto já no seio da atividade policial.
“É impossível para um homem aprender aquilo que ele acha que já sabe”. (Epíteto)
O princípio da insignificância tem-se mostrado assunto cada vez mais em voga no mundo jurídico, pois, consoante os ensinamentos de CLAUS ROXIN,
“uma ordem jurídica sem justiça social não é um Estado de direito material, e tampouco pode utilizar-se da denominação de Estado Social um Estado planejador e providencialista que não acolha as garantias de liberdade do Estado de Direito”.[1]
Debates doutrinários e jurisprudenciais em torno do tema têm-se mostrado uma constante inacabável. Sua aplicação prática, todavia, não se mostra de forma clara e objetiva na seara jurisprudencial e, com muito mais razão, não estando o assunto dissolvido em sede de Estado-juiz, completamente vazio é o acervo de debates a respeito de sua aplicação profilática frente às atribuições do Delegado de Polícia.
Com efeito, indaga-se: é conferida legitimidade ao Delegado de Polícia disciplinar as suas condutas, em hipóteses determinadas, com base no Princípio da Insignificância?
O objetivo central deste trabalho é, justamente, evidenciar a importância da aplicação de vanguarda desse princípio já no seio da atividade policial.
Efetivamente, o apego ao formalismo indeclinável, muitas vezes, mostra-se prejudicial à sociedade, porquanto tende a retardar uma melhor e mais célere atuação do Estado frente às problemáticas sociais.
O professor CARLOS ALBERTO ÁLVARO DE OLIVEIRA[2], ao trazer a definição magistral da essência da finalidade insculpida por HEILBUT em 1886, esclarece que nem todo descumprimento de uma forma determinada deve ter como conseqüência a ineficácia do ato realizado.
De fato, antes de a ação penal ver-se encetada, há, necessariamente, um trabalho levado a efeito pela Polícia Judiciária onde, em detrimento de casos mais graves, labora-se durante considerável lapso temporal em torno de ilícitos penais os quais, pela sua insignificância, sequer avocarão um édito condenatório relativo aos seus autores.
Assim, quiçá, por meio de uma análise mais atenta a essa problemática, possa-se estabelecer, pragmaticamente, um entendimento tendente a evitar a perda de tempo da Polícia Judiciária com trabalhos que acabarão sendo considerados, a bem da verdade, inúteis em seu julgamento final pelo Poder Judiciário, isso tudo ante o Princípio da Insignificância.
De efeito, toda ciência, quer seja ou não jurídica, tem como alicerce princípios que norteiam todos os seus demais fundamentos, a fim de sustentar a veracidade de suas posições e postulados elaborados. Os princípios nada mais são do que ferramentas postas às mãos dos cientistas, que devidamente trabalhadas e cultivadas, são, seguramente, as bases de toda uma construção científica.
No que tange à aplicação do princípio da insignificância frente aos trabalhos de Polícia Judiciária, evidencia-se a carência de debates a respeito, tornando-se necessário um aprimoramento gradativo do tema.
O que deve exsurgir aos olhos do estudioso, sem demora, é uma verdade cada vez mais manifesta no mundo jurídico, qual seja: fatos de conteúdo penal insignificante não possuem o condão de avocar decisão judicial condenatória, o que torna todo o trabalho policial inútil, bem como o restante da persecução penal encetada a partir da respectiva ação penal.
2. O PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
O princípio da insignificância foi formulado pelo célebre CLAUS ROXIN, o qual propôs a interpretação restritiva aos tipos penais, com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais.
Como define ROXIN[3], o legislador não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas a bens jurídicos.
Com efeito, ROXIN reconhecia que a insignificância não era característica do tipo delitivo, mas sim um auxiliar interpretativo seu, a fim de restringir o teor literal do tipo formal, conformando-o a condutas socialmente admissíveis, em decorrência de suas ínfimas lesões aos bens juridicamente tutelados.
Importante salientar que, ao lado do princípio da insignificância, existe o princípio da adequação social, onde a conduta formalmente inserida na descrição do tipo seria materialmente atípica, caso se situasse entre os comportamentos socialmente permitidos. A ação adequada socialmente estaria, desde o seu início, excluída do tipo, uma vez que se realizaria dentro do campo da normalidade social. Em suma, consoante a lição de SANTIAGO MIR PUIG, “no puede castigarse lo que sociedade considera correcto”[4].
Saliente-se que, distintamente do princípio da insignificância, em que a conduta é relativamente tolerada pela sua escassa lesividade, no que tange ao princípio da adequação social ela absorve total aprovação da sociedade. Pode-se citar como exemplo do que se afirma aqui a conhecida circuncisão, comuníssima aos adeptos da religião judaica.
Ante o princípio da insignificância, mínimas ofensas aos bens jurídicos não justificam a incidência do Direito penal, sendo que este se mostra desproporcionado ao castigar fatos de importância manifestamente risível como o furto de alguns tomates, de alguns melões, ou, ainda, de “algumas abóboras”, consoante repercutidíssima Apelação-crime do TJ/RS, cujos excertos principais vale a pena destacar, com o intuito de se ressaltar a relevância do tema proposto neste trabalho e da necessidade de formar-se um pensamento mais uniforme no mundo jurídico sobre o assunto, evitando-se acórdãos tão calorosos como este que segue:
“É possível, para a felicidade deles, que os membros do Ministério Público não tenham serviço suficiente e podem “brincar” de recorrer das decisões desta e de outras Câmaras, o que é bastante inconveniente para nós desembargadores que, como é sabido, estamos com excesso de trabalho.
E se não conhecesse o Procurador de Justiça que primeiro assina o requerimento, sei que é uma pessoa séria e excelente profissional, diria os representantes do Parquet estão tão desocupados que, para fazer alguma coisa, “procuram chifre em cabeça de cavalo”. Ou gostam de piadas de mau gosto. É o que ocorre no caso em exame: “briga” por condenação de ladrões de abóboras.
Assim, antes de adentrar na questão principal, permito-me uma sugestão, uma vez que parece faltar trabalho sério aos Procuradores de Justiça: façam uma força-tarefa e vão ajudar os colegas de primeiro grau na persecução criminal daqueles delitos realmente graves. Tenho observado, e não importa aqui os motivos, que esta Câmara, como as demais deste Tribunal, tem absolvido réus de delitos graves, mas que, aparentemente, são culpados. Isto porque a prova criminal não é feita ou muito mal feita ou, ainda, um mau trabalho da acusação em termos de denúncia e (ou) alegações finais.
Parem com esta picuinha, ridícula e aborrecedora, de que todas as decisões devem ser iguais àquelas dos pareceres. Parem de entulhar esta Corte e as Superiores com pedidos realmente insignificantes: furtos ou outros delitos insignificantes, aumento de pena de dois ou três meses etc.
No caso em exame (e somos obrigados a discutir a subtração de poucas abóboras, meus Deus !), o acórdão, como se verá infra, analisou os fundamentos jurídicos aplicáveis à insignificância e concluiu por sua aplicação. Não houve nenhuma omissão, a não ser que os autores da petição de embargos, “porque não tem nada a fazer e o ócio cansa”, querem o impossível: dispositivos legais a respeito.
Por outro lado, dizer, como está na petição, que “a fim de chegar-se a constatação acerca da existência ou não de tal ofensa, torna-se necessário observar as condições econômicas da vítima, as quais permitirão chegar a conclusão se o valor do objeto material em questão chegou a ofender o bem jurídico já citado”, estão falando uma arrematada besteira. E se o ladrão furtar cem mil reais de um grande banco, teremos um crime insignificante? De acordo com a opinião, sim. Em conclusão, a perda daquele valor mal arranhou o patrimônio da vítima [5].”
Trazidos como referência os excertos principais do mencionado acórdão, os quais estampam a ocorrência, em determinado caso, de acutíssimo choque de visão entre o Ministério Público e o Poder Judiciário frente ao princípio da insignificância, é de bom alvitre mencionar que, a par disso, hoje em dia, já encontra assente no mundo jurídico nacional que o aludido princípio (também chamado da bagatela) elide a tipicidade; mais especificamente a tipicidade material, isso com fulcro em decisão proferida pelo nosso Pretório Excelso[6].
A divisão da tipicidade penal em formal e material, embora presente no mundo jurídico há longa data, ainda é uma grande novidade para muitos professores e estudantes. Decerto, isso torna dificultosa uma maior compreensão e aceitação do princípio aqui em estudo. De qualquer sorte, partindo-se de um prisma constitucionalista da teoria do delito, esse desdobramento resulta absolutamente necessário. Efetivamente, nessa linha de raciocínio, tem-se a lição de Luiz Flávio Gomes:
“Com efeito, partindo-se de uma concepção personalista da Constituição, que tem como valor-síntese a dignidade da pessoa humana, nenhum dos direitos fundamentais constitucionalmente assegurados pode sofrer qualquer limitação ou restrição senão em função da tutela de outro interesse ou bem de igual ou equivalente magnitude”. [7]
ROXIN sustentava que nas infrações de bagatela não havia necessidade de uma imposição de pena. Por conseguinte, o fato não era punível. De toda a lavra de seus pensamentos, é provável que mereça destaque especial a conflagração que causou seus ensinos acerca do relacionamento entre Política criminal e Direito penal. Resumindo sua idéia central, a Dogmática penal já não poderia ser apática em relação ao seu resultado final, ou seja, ao seu produto, ou, ainda, aos seus valores que norteiam o panorama constitucional (axiológico) em vigência.
Diz ROXIN:
“só pode ser castigado aquele comportamento que lesione direitos de outras pessoas e que não é simplesmente um comportamento pecaminoso ou imoral; (…) o Direito Penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade, e além desse limite nem está legitimado nem é adequado para a educação moral dos cidadãos” [8].
Desde 1970, com a consagrada obra de ROXIN [9], já não se pode conceber a Dogmática penal indiferente, ou mesmo distante, a da Política criminal.
Percebeu-se, peremptoriamente, que a Dogmática tem de ser aberta, tem de atuar finalisticamente (ao encalço da realização de determinados valores, como o da justiça). A ciência penal, assim sendo, insere-se hoje, certamente, no âmbito dos saberes práticos, cuja existência visa à resolução racional de determinados conflitos humanos.
A maneira tradicionalista de estudar e de ensinar a ciência penal, fundada no método puramente literalista e subsuntivo, cuja origem viu-se no Estado moderno (término do século XVIII), encontra-se hoje ultrapassada. Mostra-se esgotado o modelo consistente em interpretar e sistematizar o Direito penal a partir da perspectiva exclusiva da letra legal.
Nos estudos acerca de uma política voltada aos crimes de pouca ou ínfima lesividade material, propugna-se pela não aplicabilidade da lei penal em relação àquelas condutas que não chegam, a bem da verdade, a gerar dano aos nossos bens jurídicos.
Aí é que surge a importância da análise do princípio da insignificância, direcionado ao operador do direito e fundamentado na idéia de proporção que a pena deve conter em relação à gravidade do ilícito penal. Nos casos de ínfimo abalo ao bem jurídico, a substância do injusto é tão pequenina que não subsiste nenhum porquê à aplicação de pena, de modo que a mínima sanção penal seria patentemente desproporcional à real significância material do episódio. O legislador, frisa CLAUS ROXIN, não possui competência para, em absoluto, castigar pela sua imoralidade condutas não lesivas de bens jurídicos. [10]
A natureza do Direito penal é, consoante Claus Roxin, portanto, subsidiária. Subsidiária no sentido de que “somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para uma vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”. [11]
Já não basta à satisfação de justiça uma concepção apenas formal sobre o princípio da legalidade. A exigência de lei certa que diz respeito para com a clareza dos tipos, os quais não devem deixar margens a dúvidas nem abusar do emprego de normas muito gerais ou tipos incriminadores genéricos e vazios, muito bem defendida por FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO [12], já não se mostra suficiente.
No entanto, na aplicação do princípio da insignificância, deve-se utilizá-lo com cautela, considerando insignificante apenas aquilo que realmente o é, sendo que há a necessidade de serem observadas as circunstâncias objetivas e subjetivas que envolvem o caso concreto, impedindo-se que seu conteúdo possa vir a ser uma porta aberta à impunidade.
A incidência da insignificância exclui a tipicidade, mas só pode ser estabelecida mediante consideração conglobada da norma. Em outras palavras, conforme Luiz Flávio Gomes,
“o fato torna-se irrelevante, em virtude da presença de todos os requisitos bagatelares (resultado, conduta e culpabilidade bagatelares), tornando-se a pena desnecessária. Sua dispensa, nesse caso, não chega a afetar o seu aspecto preventivo geral”[13].
É possível, de toda sorte, ouvirem-se críticas à aplicabilidade do referido princípio, argumentando-se, em essência, ser o mesmo incompatível com o princípio da obrigatoriedade da ação penal. O artigo 98, I, da Carta Magna, contudo, permite, expressamente, o rompimento da regra tradicional de obrigatoriedade e de indisponibilidade da ação penal pública, abrindo espaço à discricionariedade regrada, permitindo-se certa dose de disponibilidade da ação penal pública.
Se o Órgão do Ministério Público insistir em propor a ação penal, ainda que ausente a tipicidade pela sua insignificância, caberia, então, ao magistrado, a sua imediata rejeição, com fulcro no art. 43, I, do Diploma Processual Penal Pátrio.
É oportuno salientar que, em pesquisas jurisprudenciais, o princípio da insignificância vem sendo utilizado pelos tribunais superiores em todos os tipos de delito (formais/materiais, de dano/de perigo, dolosos/culposos) como instrumento de interpretação restritiva da norma penal, alcançando a descriminação de condutas que, conquanto aparentemente típicas, não lesam de forma significativa um bem juridicamente tutelado[14].
O instituto do princípio da insignificância caracteriza-se como apoio eficaz para a descriminação, sendo claro seu valor na compreensão e interpretação das normas penais, avalizando a equiparação da lei penal à dinâmica social. Essa idéia proporciona gênese a uma modificação na nossa estrutura científico-penal atual.
A intervenção penal só será legítima, pois, se houver lesividade. Um método de interpretação puramente gramatical já não possui mais o condão de se promover justiça social. MAURÍCIO ANTÔNIO RIBEIRO LOPES corrobora esse raciocínio ao afirmar:
“através do princípio da lesividade, só pode ser penalizado aquele comportamento que lesione direitos de outrem e que não seja apenas um comportamento pecaminoso ou imoral; o direito penal só pode assegurar a ordem pacífica externa da sociedade e além desse limite não está legitimado e nem é adequado para a educação moral dos cidadãos. As condutas puramente internas ou individuais, que se caracterizem por ser escandalosas, imorais, esdrúxulas ou pecaminosas, mas que não afetem nenhum bem jurídico tutelado pelo Estado, não possuem a lesividade necessária para legitimar a intervenção penal” [15].
Ao avesso do que suscitam alguns, a aplicabilidade do princípio da insignificância não gera impunidade, mas sim reflete a verdadeira garantia da função do Direito Penal. Trata-se de um aparelho de interpretação restritiva, por intermédio do qual é possível alcançar, pela via judicial, a proposição político-criminal da imperatividade de descriminalização de condutas que, não obstante formalmente típicas, não atingem de forma relevante os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal.
O desvalor do acontecimento deve ser considerado de acordo com a importância dos vários bens jurídicos resguardados penalmente e da intensidade da ofensa advinda.
O legislador, por sua vez, não pode antever em que grau e em que intensidade deve ocorrer a aplicabilidade do referido princípio no caso in concreto, cabendo essa atribuição da reprovabilidade aos aplicadores do direito, sucessivamente norteados pelo Direito que, bem longe de ser meramente normativo, é produto do próprio comportamento humano.
A partir da ocasião em que se pretende falar do Princípio da Insignificância, é assaz necessário retroceder às vistas para o velho conceito de Tipicidade. JÚLIO FABBRINI MIRABETE define-a como:
“a contradição entre uma conduta e o ordenamento jurídico”, advertindo, todavia, que a doutrina a distingue do injusto, já que a antijuridicidade é a contradição que se estabelece entre a conduta e uma norma jurídica, ao passo que o injusto é a conduta ilícita em si mesma, é a ação valorada como antijurídica [16].
A tipicidade continha, para o Finalismo, a missão de especificar a conduta proibida ou permissiva, ou seja, encerrava a função de realizar o princípio nullum crimen sine lege[17], o que gerou um assombroso vazio no próprio conteúdo normativo, sendo, muitas vezes, o tipo enleado com a própria norma.
Notando-se que o Direito precisa ser estruturado por juízos de valores sociais, culturais, etc., percebeu-se que a incumbência do tipo penal era não exclusivamente assinalar uma conduta, mas sim direcioná-la para uma norma agora aperfeiçoada por um juízo axiológico ditado pelas próprias necessidades da sociedade. Esta norma valorada suporta um verdadeiro papel de proteção a um bem jurídico capital para a convivência em sociedade.
Nesse sentido:
“o princípio da ofensividade – nullum crimen sine iniuria -, como postulado político-criminal nuclear que emana do conjunto axiológico-normativo do Estado Constitucional de Direito, ancorado nos direitos fundamentais, e ainda tendo em consideração o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, passa a constituir a essência do modelo de delito (de injusto) compreendido como fato (típico) ‘objetivamente’ ofensivo, é dizer, fato merecedor da sanção penal porque causou uma lesão ou perigo de lesão ao bem tutelado”[18].
A alteração de perspectiva da incumbência do tipo penal possibilitou uma verdadeira insurreição quanto à interpretação de seus elementos. O princípio da legalidade deixa de ser compreendido em acepção estrita para ser considerado como uma razão de garantia, um limite da exposição típica. Autorizou ainda, a identificação do bem jurídico penalmente agasalhado, a indicação da ilicitude da conduta, ainda que esta não seja mais abarcada como elemento do tipo penal, e, político-criminalmente, também exerceu uma função pedagógica (preventivo geral), um norte ao desempenho humano à luz da gerência normativa.
Surgiu para o tipo penal, então, o próprio fato material. De tal modo, foi possível a constatação de uma tipicidade material tão importante quanto àquela formal, senão até mais formidável por comportar a idéia de danosidade social.
A ilicitude, da mesma maneira que a tipicidade, engloba o aspecto material que é a verificação da necessidade de uma danosidade social relevante para a sua configuração.
A tipicidade não se consome na concordância lógico-formal (subsunção) do fato ao tipo. A ação delineada tipicamente há de ser na maioria das vezes ofensiva ou arriscada a um bem jurídico [19].
O Princípio da Insignificância é uma forma excludente da tipicidade impedindo a configuração do Injusto Penal. O Direito Penal não se ocupa de todos aqueles comportamentos anti-jurídicos que decorrem das relações sociais, mas, tão somente daqueles mais molestadores e lesivos para os bens jurídicos. Ademais disso, só se conhece e sanciona nos fatos quando houver falhado todos os demais meios de controle formais ou informais [20].
Com o fim de se aplicar o princípio da insignificância não se tem como analisar a substância da culpabilidade do agente, se a conduta não foi sequer típica. Verificado que o fato é atípico, precariamente vale, para o deslinde da questão, a personalidade do réu[21], inclusive porque, na ocasião da tipicidade, o Direito Penal é um direito do fato e não do autor [22]. Sendo, assim, inconveniente qualquer check-up da personalidade do acusado quando se debater acerca do princípio da insignificância.
2.1 EXCERTOS JURISPRUDENCIAIS A RESPEITO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA
De suma importância torna-se, ainda, a fim de se ressaltar a importância do tema e sua posição atual no pensamento jurídico nacional, avocarem-se, ainda que se tratem de meros exemplos, à leitura, as seguintes decisões jurisprudenciais:
“Uma vez verificada a insignificância jurídica do ato apontado como delituoso, impõe-se o trancamento da ação penal por falta de justa causa. Princípios da razoabilidade e da proporcionalidade [23].
Princípio da insignificância. O resultado (sentido jurídico-penal) deve ser relevante, quanto ao dano, ou perigo, ao bem jurídico tutelado. De minima non curat Praetor. Modernamente, ganha relevo o princípio da insignificância. O delito (materialmente examinado) evidencia resultado significativo. Deixa de sê-lo quando o evento é irrelevante. Não obstante conclusão doutrinária diversa, afirmando repercutir na culpabilidade, prefiro tratar a matéria como excludente da tipicidade, ou seja, o fato não se subsume à descrição legal “ [24].
Além dos Tribunais Superiores, também os Tribunais Regionais Federais vêm decidindo, reiteradamente, que os delitos de pequena monta, destituídos de potencial lesivo, devem ser considerados materialmente atípicos.
“Penal. Apelação criminal. Descaminho. Apreensão de mercadorias em pequena quantidade e de pequeno valor. Princípio da insignificância.
Embora a conduta se enquadre na norma contida no artigo 334, § 1º, “d” do Código Penal, o Direito não pode se restringir apenas ao formalismo da lei, sendo, portanto, coerente a proximidade de sua interpretação com a nossa realidade social.
O direito penal tem como objetivo a proteção qualificada de bens jurídicos, atuando quando os instrumentos oferecidos por outros ramos do direito, não se apresentam suficientes a reprimir determinada conduta, e também, quando a lesão ao bem jurídico é realmente grave.
De acordo com o laudo mercealógico, verifica-se que foram apreendidas mercadorias em pequena quantidade e de pequeno valor, sendo certo que a jurisprudência é orientada no sentido da irrelevância do procedimento. Precedentes do STJ.
Assim, não há como considerar lesiva a conduta de meros camelôs, de baixa instrução que estão lutando para sobreviver” [25].
4. A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELO DELEGADO DE POLÍCIA
Após análise geral e considerações diversas a respeito dos institutos Princípio da Insignificância e Polícia Judiciária, passar-se-á a analisar, após um breve comento acerca do Poder Discricionário da Autoridade Policial, a possibilidade de aplicação profilática daquele por esta, em hipóteses concisas e hialinas.
4.1 O PODER DISCRICIONÁRIO DA AUTORIDADE POLICIAL
O Delegado de Polícia é o primeiro receptor do caso em concreto, sendo-lhe compelido pelo ordenamento jurídico agir com cautela e prudência ante a íntima proximidade das suas atribuições para com o direito fundamental da liberdade da pessoa humana.
Deontologicamente, inobscurece de o Delegado de Polícia apreciar com a devida prudência o direito à liberdade do indivíduo, em todas aquelas hipóteses em que for possível a sua restrição, que são hipóteses de extrema excepcionalidade. Toda a atividade policial, por sua natureza, em tese, possui o condão de tolher o direito à liberdade do indivíduo. Esse direito fundamental é, de fato, princípio constitucional, [26] compreendendo ele uma das chaves de todo o nosso sistema normativo. Por isso, precisa ser visto como critério maior, mormente no campo penal. E se é pacífico que o próprio Estado-juiz não pode olvidar de observar com a máxima cautela esse direito constitucional, também o deve ser pela Autoridade Policial, pois não é fadado a esta cometer abusos manifestos contra os direitos da pessoa humana, sob o argumento de que não lhe é conferido pela norma competência para se levar a efeito, de acordo com o seu discernimento, a medida mais adequada ao caso concreto.
As Autoridades Policiais, por suposto, constituem-se agentes públicos com labor direto frente à liberdade do indivíduo. É da essência das suas decisões, por isso, conterem inseparável discricionariedade, sob pena de cometerem-se os maiores abusos possíveis, quais sejam, aqueles baseados na letra fria da Lei, ausentes de qualquer interpretação mais acurada, separadas da lógica e do bom senso.
A fundamentação plausível deve ser elemento sempre unificado ao ato discricionário da Autoridade Policial. Mencionado ato será sempre legítimo, se devidamente fundamentado. De fato, dentro do nosso ordenamento encontra-se o princípio elementar da proporcionalidade, com raiz na lógica e no bom senso, exigindo-se que o decisum[27] respectivo seja, como já foi dito, fundamentado, à luz do princípio do livre convencimento motivado.
A respeito desse poder discricionário, aliás, vale a colação do seguinte excerto doutrinário da lavra de HELY LOPES MEIRELLES, onde ele faz interessante observação, no sentido de que, nem mesmo com relação aos atos vinculados o administrador está limitado a executar a lei cegamente:
“Tanto nos atos vinculados como nos que resultam da faculdade discricionária do Poder Público, o administrador terá de decidir sobre a conveniência de sua prática, escolhendo a melhor oportunidade e atendendo a todas as circunstâncias que conduzam a atividade administrativa ao seu verdadeiro e único objetivo – o bem comum”.[28]
Por outro lado, é de bom alvitre inserir-se neste texto interessante decisão do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo:
“A determinação da lavratura do auto de prisão em flagrante pelo delegado de polícia não se constitui em um ato automático, a ser por ele praticado diante da simples notícia do ilícito penal pelo condutor. Em face do sistema processual vigente, o Delegado de Polícia tem o poder de decidir da oportunidade ou não de lavrar o flagrante”. [29]
Por ocasião desse decisum colegiado, pois, fica clara a faculdade de o Delegado de Polícia levar a efeito, conforme o seu juízo de valor, nas hipóteses de flagrante delito, a melhor decisão que lhe surgir à consciência, vertendo para a lavratura do auto ou não, consoante sua apreciação daquilo que for, diante do caso em concreto, o mais conveniente e o mais oportuno.
4.2 HIPÓTESES CONCRETAS DE APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA PELA POLÍCIA JUDICIÁRIA
Neste momento da dissertação, chega-se ao momento crucial, onde se estabelecerão as concisas, hialinas e simplificadas hipóteses de aplicação do princípio da insignificância no seio das atividades policiais.
Se este trabalho dissertativo, embora de manifesta singeleza, possui uma razão de ser, exatamente neste momento chega-se a ela, qual seja, a de estabelecer, por meio de dois simples e concisos exemplos, quais seriam as possibilidades concretas de aplicação do instituto da insignificância na seara policial.
4.2.1 PRISÕES EM FLAGRANTE
O direito à liberdade encontra-se dentre os direitos fundamentais previstos no art. 5º, caput, da Constituição Federal, ao lado de outros tais como a inviolabilidade do direito a vida, a igualdade, a segurança e a propriedade.
Está, ainda, previsto no inciso VII do artigo supra que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.
Vê-se, pois, que a liberdade é um pressuposto natural de uma sociedade justa.
O direito à liberdade, tratado como inviolável pela Constituição, coaduna-se com a orientação internacional quanto aos direitos do homem, o que, por si só, aliás, afeta a faculdade concedida ao Juiz em outorgar livramento provisório, para torná-la investida de caráter não-facultativo, mas obrigatório e compulsório. Este status da norma, além do mais, dispensa a própria existência do artigo 310 do Código de Processo Penal.
O encarceramento da pessoa humana é medida extremada e, dentro de um sistema jurídico obviamente pautado pela lógica e pelo bom senso, com regras legais postas ao julgador, a fim de serem interpretadas em harmonia umas com as outras, com princípios para a solução de eventuais antinomias e, até mesmo, anomias, não se pode aceitar como crível que se leve a efeito pela Polícia, e sejam referendados pelo Judiciário, atos desvirtuados de uma mínima lógica.
Há hipóteses em que a insignificância da ofensa ao bem jurídico tutelado não justifica édito condenatório e muito menos, então, encarceramento prévio ao início da ação penal (isso, se esta, de fato, vier a ser proposta pelo parquet).
Em furtos famélicos, ou de itens de pequeno valor em supermercados (como um barbeador descartável, um desodorante, etc.), não se justifica a prisão do sujeito, a menos que reiteradas de maneira intolerável.
De fato, em um regime democrático de direito, deve ser considerado o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção. Há de ser observada, em cada caso concreto, a individualização da pena.
O encarceramento do indivíduo não é um fim em si mesmo, mas uma conseqüência, donde há de ser observado um nexo, um liame entre a ação considerada antijurídica e a natureza ou intensidade da resposta estatal.
O desiderato da custódia cautelar é retirar de circulação sujeitos que, pela sua conduta irregular, oferecem risco à sociedade. Em síntese, o risco, inexoravelmente, precisa abalar a ordem pública, quer seja pela intensidade da ofensa, quer seja pela reiteração de um conjunto de ofensas. Há, dessarte, que tratar-se desigualmente os desiguais. Assim, pois, encarcerar-se, por meio da prisão em flagrante, o autor de um homicídio ou de um roubo é atitude equânime com a gravidade de referidas ofensas.
Todavia, ainda em hipóteses como as acima aludidas, o autor, momentos após a prisão, poderá sair do cárcere, por meio do relaxamento da sua custódia pelo Juízo competente, caso não estejam presentes os requisitos da manutenção preventiva da sua prisão, fulcro no que dispõe o art. 312 do Código de Processo penal.
E se é bem certo, e verdadeiramente provável, que em infrações materialmente atípicas, devido à insignificância da ofensa ao bem jurídico tutelado, o relaxamento da prisão ocorrerá inexoravelmente, percebe-se que aquele primeiro ato (prisão) levado a cabo pela Polícia Judiciária indistintamente, tanto em relação aos crimes graves como em relação aos materialmente atípicos, é tratar de forma igual situações absolutamente desiguais.
Assim, é sustentável, à luz do sistema jurídico pátrio, que é um conjunto de leis e de princípios que se entrelaçam sob a égide dos ditames maiores lançados pela nossa Constituição Federal, que a Autoridade Policial possa, por meio da sua discricionariedade ínsita, não lavrar flagrantes acerca de infrações que são, em tese, materialmente atípicas.
O decisum de valoração a ser levado a efeito pela Autoridade Policial bastará que contenha fundamentação razoável, fulcro no princípio da persuasão racional, como, de resto, é a atribuição de todos aqueles que levam a efeito atos administrativos em geral.
4.2.2 PROCEDIMENTOS POLICIAIS SUMÁRIOS
Depois de esclarecida a hipótese de aplicação do princípio da insignificância frente às situações de flagrante delito, passa-se a discorrer acerca da derradeira hipótese sustentada de aplicação do aludido princípio em sede das atribuições a cargo do Delegado de Polícia.
A Polícia Judiciária abarca, praticamente, a totalidade absoluta das infrações penais levadas ao conhecimento dos Órgãos Públicos.
Salvo raríssimas exceções, até mesmo aquelas comunicações levadas ao conhecimento dos representantes do Ministério Público, são todas encaminhadas eles à Polícia Judiciária, a fim de que esta sim apure os fatos por meio do procedimento pertinente.
Em assim sendo, percebe-se que o mundo da ilicitude só chega aos olhos dos julgadores, porque são levados ao seu conhecimento pelos órgãos policiais. Em outras palavras, a Polícia é responsável, com exclusividade praticamente absoluta, pela recepção das notícias criminais, elaboração dos instrumentos apuratórios adequados e remessas suas à apreciação do Judiciário.
Surge, então, em decorrência desse vultoso, verdadeiramente incomensurável e invencível fardo, problemática irrefutável, mas pouco discutida em nossos dias atuais, qual seja, “grande parte das comunicações de ocorrências policiais acabam vendo as suas prováveis penas em abstrato prescrevendo-se nos próprios órgãos policiais”.
De tempos em tempos, e esta tem sido a prática, ao atingir-se número considerável de feitos prescritos em um Distrito Policial, convenciona-se determinado acordo entre Delegado de Polícia e Promotor de Justiça locais e remetem-se citados cadernos apuratórios, em lotes, à apreciação do parquet, a fim de que este requeira seu arquivamento ao Juízo competente. Incontáveis procedimentos, instaurados ou não, já prescritos, encontram esse destino em nossa Administração Pública.
A razão desse procedimento costumeiro não é nada além da incontestável impossibilidade de os Órgãos Policiais levarem a efeito termo à totalidade da demanda que os assola diariamente.
Pragmaticamente, então, e forçosamente, em determinadas situações, as Autoridades Policiais sentem-se premidas e fatalmente precisam selecionar, dentre os procedimentos às suas cargas, aqueles que mais urgem atenção e celeridade ante as suas gravidades. É uma decisão razoável, perante uma problemática real.
Com efeito, dentro dessa problemática existente, urge conjetura plausível, qual seja, poder-se-ia conceder à Autoridade Policial legitimidade para esta estabelecer, com razoabilidade e bom senso, um critério seletivo acerca daquilo que seria levado a efeito pelo labor policial, em prejuízo daquilo que, fatalmente, acabaria não sendo.
Essa legitimidade que se propõe, no entanto, não é aquela mesma já concedida ao Delegado de Polícia pela força do seu dia-a-dia, já bem estabelecida pela prática e pelo costume. Seria isto sim, algo novo e mais cristalino.
A competência a ser emprestada à Autoridade Policial necessitaria emanar de instrumentos legais, quer fosse por meio de uma cláusula geral acerca do princípio da insignificância a ser inserida em nosso Codex substantivo penal, quer fosse, ao menos, por meio de simples pactos administrativos a serem avençados em cada Estado Federativo, tudo dependendo da realidade vivida por cada ente federado e à luz da comunhão de esforços e da conjugação de vontades existentes entre os membros do Ministério Público e Delegados de Polícia seus.
Pois, esclarecidas as possíveis fontes de onde seria ideal ver originada essa faculdade a serviço da Polícia Judiciária, resta imperioso deixar-se claro, de antemão, que não se está aqui defendendo tese alguma sobre uma possível faculdade de arquivamento de cadernos policiais em sede de Polícia Judiciária.
Tal qual preceitua o nosso Codex adjetivo processual [30], a Autoridade Policial não poderá, jamais, mandar ao arquivo autos de inquérito.
O que se propõe, isto sim, seria a possibilidade de que, em prol da apuração de ilícitos mais graves, aqueles procedimentos referentes a fatos aparentemente atípicos no seu aspecto material acabassem por abarcar “sistemática processual” extremamente mais simples e célere do que a costumeira, o que é por demais plausível diante da nossa conjuntura hodierna.
Essa sistemática processual sintética concretizar-se-ia por meio de uma verdadeira faculdade a ser concedida legalmente à Autoridade Policial, quer pela norma federal, como se disse acima, quer, ao menos, em decorrência de acordos a nível estadual, onde esta não necessitaria instaurar inquéritos policiais acerca de delitos materialmente atípicos, remetendo-se, de qualquer forma, os seus registros respectivos de ocorrências policiais à apreciação dos Promotores de Justiça competentes. Na hipótese de estes discordarem de um ou de outro critério seletivo adotado pelo Delegado de Polícia, restituiriam, então, os autos à Delegacia de Polícia, a fim de ver-se instaurado o procedimento policial a respeito.
Nada mais lógico, nada mais coerente. Absolutamente nada haveria de prejudicial à sociedade, e poder-se-ia vislumbrar uma sensível maior celeridade no trâmite daquelas causas penais realmente relevantes, sempre a cargo da Polícia Judiciária e muitas delas fadadas ao perigo da prescrição em abstrato.
Verdadeiramente, os Órgãos Policiais, já tão defasados de pessoal e de condições materiais variadas, estão sempre premidos pelo exíguo e insuficiente lapso temporal destinado ao esquadrinhamento das ilicitudes de evidente maior gravidade, de gritante maior urgência social.
Dessarte, pela sistemática aqui defendida, dizer-se que se estaria valorizando o tempo da nossa Polícia Judiciária seria, a bem da verdade, uma afirmação inverídica.Estar-se-ia, isto sim, valorizando o ínfimo lapso temporal que a própria sociedade dispõe para a persecução dos casos graves, pois aquela só existe pela razão desta.
Todavia, falar-se o que se disse acima parece simples. No entanto, há barreiras ainda instransponíveis para a sua real aplicação. Como exemplo dessa problemática que se apõe à confecção de sistemáticas mais simplificadas acerca de questões menos complexas está o que gira em torno dos delitos de menor potencial ofensivo abarcados pela Lei dos Juizados Especiais Criminais. Com efeito, é realidade facilmente observada em comarcas de primeira entrância a exigência da confecção, mesmo nas infrações abarcadas pelos Juizados Especiais Criminais, de praticamente um trabalhoso inquérito policial, não se abrindo mão de oitivas detalhadas, previamente à audiência, de todos os envolvidos e de todas as testemunhas”. Em assim não sendo, o termo respectivo baixa do Juízo competente, após requerimento do Ministério Público, a fim de ser complementado.
Porém, ao observar-se a sistemática adotada em jurisdições distintas daquelas de primeira entrância, percebe-se, claramente, uma aproximação bem maior aos ditames da concernente Lei que versa sobre os Juizados Especiais Criminais, quiçá pela experiência já abarcada ao longo da vida funcional pelos seus respectivos Juízes e Promotores.
O que está ocorrendo nos dias de hoje, com a inexistência da sistemática aqui proposta, é a inexorável seletividade, por parte da Polícia Judiciária, acerca daquilo que será e daquilo que não será prescrito nos próprios Órgãos Policiais. Essa problemática é real, de conteúdo seriíssimo, mas de solução não apontada por qualquer sistema legal uníssono e harmônico com a realidade das condições materiais da Administração Pública.
Falar-se em acréscimo de efetivo ou melhoria nas condições materiais das nossas Polícias é apenas proferir verbos de conteúdo vazio e inócuo, até mesmo porque isso jamais seria suportado, nem de longe, por qualquer cofre público.
Aliás, ainda que, hipoteticamente falando, fosse possível se dar conta da totalidade dos procedimentos em trâmite em sede de Polícia Judiciária, fosse pelo provimento de um incontável e devaneado número de servidores novos, surgiria, então, outra problemática tão séria quanto à primeira: os Órgãos do Ministério Público e do Poder Judiciário, pelas suas condições materiais e número de pessoal existente, jamais teriam, nem de longe, condições de apreciar devidamente a carga incomensurável de trabalhos que lhe adviriam de tudo isso. A propósito, mesmo com o ritmo atual de remessas de procedimentos policiais a juízo, é público e notório que o número de prescrições da pretensão punitiva do Estado nas entrâncias judiciárias é realidade consuetudinária.
Assim, vê-se que a sistemática que aqui se pretende por em prática, toda ela embasada no bom senso, quer evitar um labor policial sem razão de ser em procedimentos acerca de fatos que, visivelmente, em tese, mostram-se atípicos materialmente.
4.3 POSSIBILIDADE DE EXTENSÃO DA SISTEMÁTICA PROPOSTA NESTE ESTUDO A INFRAÇÕES MATERIALMENTE TÍPICAS
É elementar, presentemente, que se atente à seguinte situação, qual seja, nem sempre um delito de pouco gravidade será considerado atípico, materialmente falando, quando da sua apreciação pelo Poder Judiciário. Todavia, isso não significa que a sua baixa ofensividade, ainda assim, mereça um ato inicial extremado por parte do Estado em relação à pessoa do autor, quer seja por meio da instauração de um caderno inquisitivo, ou, muito menos, por meio de uma prisão em flagrante.
Com efeito, ao falar-se de um porte de arma, por exemplo, levado a efeito por pessoa sem antecedentes policiais, em situação em que não se expôs, de forma concreta, a perigo a sociedade (manutenção da arma no porta-luvas do seu veículo, p. ex.), está-se diante de hipótese em que não se vê como justificável atitude extremada por parte do Estado. Com efeito, constituir-se-ia medida flagrantemente desproporcional à intensidade da conduta impingir-lhe prisão em flagrante, esta sempre um ato extremado do Estado. Aliás, neste caso em particular, o encarceramento cautelar do autor não vê mesmo lógica em qualquer prisma de coerência possível, uma vez que, ao atentar-se à letra da Lei e à pena em abstrato prevista para o caso, por mais que houvesse cominação ao autor de uma pena máxima, o regime de cumprimento previsto para o caso é o aberto.
Elidida a possibilidade de flagrante delito acerca de um delito como o de porte de arma, frente à pena em abstrato prevista para o caso, com a conseqüente possibilidade de aplicação de penas alternativas ou, até mesmo, suspensão condicional do processo, também é coerente sustentar-se que todo um trâmite exigido por inquérito policial apresenta-se como moroso trabalho sem sentido, prejudicial ao trâmite de questões outras a cargo das Delegacias de Polícia, referentes a crimes de patente maior relevância (roubos, latrocínios, homicídios, etc.).
Assim, em ilícitos de menor gravidade como o exemplificado neste item, é razoável que, além de rechaçar-se a possibilidade de aplicação de prisão em flagrante, também se possa eliminar o trâmite de todo um inquérito policial, ocasião em que apenas registrar-se-ia o fato, aprender-se-ia o instrumento e, qualificadas as partes, remeter-se-iam os autos à apreciação do Ministério Público, titular da ação penal.
Observado isso, a par do fato de que a aplicação do princípio da insignificância no tocante ao labor diário da Polícia Judiciária é o mínimo que se pode exigir, também é plausível sustentar-se a extensão da sistemática aqui proposta àqueles ilícitos que, embora materialmente típicos, vêem-se de menor importância no cenário criminoso vivido por determinadas sociedades.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante o que foi exposto, percebe-se que o princípio da insignificância, um tema que se vem mostrando sempre atual e de grande importância no mundo jurídico, já não pode mais ser olvidado pelo Estado democrático de direito, mormente na esfera penal, nas mais diversas entrâncias, incluindo-se a administrativa, porque, em primeiro lugar, afeta a liberdade da pessoa humana; em segundo, porque a sociedade sempre clama por uma justiça mais célere, mais ágil e, conseqüentemente, mais justa.
A Polícia Judiciária é responsável pela primeira resposta penal à sociedade.
A evidência do tema tratado, onde se defende a importância da aplicação de vanguarda do princípio da insignificância já na atividade policial, estampa-se como um tema de manifesta relevância jurídica, não só pela sua aparente lógica, mas também em decorrência de ser assunto novel em nossa doutrina.
Quiçá, por meio deste singelo trabalho, desperte-se uma curiosidade maior sobre o tema, permitindo-se estabelecer, pragmaticamente, uma sistemática propícia a evitarem-se verdadeiros abusos contra o direito preponderante da liberdade do cidadão, bem como se possa promover uma maior celeridade na persecução investigatória daqueles delitos de revelada maior ofensividade à sociedade.
Informações Sobre o Autor
Roger Spode Brutti
Delegado de Polícia Civil no RS. Doutorando em Direito (UMSA). Mestre em Integração Latino-Americana (UFSM). Especialista em Direito Penal e Processo Penal (ULBRA). Especialista em Direito Constitucional Aplicado (UNIFRA). Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos (FADISMA)