Resumo: O artigo sustenta a aplicação do Princípio do Afeto para o reconhecimento de direitos e deveres advindos das relações entre avós e netos por afinidade, assim como já ocorre nas relações entre avós e netos por consangüinidade.
Palavras-Chaves: Afetividade. Avós e netos. Afinidade.
Sumário: Introdução – O Princípio do Afeto. 1- A relação entre avós e netos. 2- Avós e netos por afinidade. Conclusão – A intersecção entre o Princípio do Afeto e a relação entre avós e netos por afinidade.
INTRODUÇÃO – O PRINCÍPIO DO AFETO
Na área educacional, o estudo da afetividade e sua relação com a cognição humana foi desenvolvido com maior repercussão por Piaget, Vygotsky e Wallon.
Jean Piaget entendia que o desenvolvimento intelectual envolvia sempre os aspectos cognitivo e afetivo, mas considerava a afetividade como um agente motivador da atividade intelectual:
“a afetividade constitui a energética das condutas, cujo aspecto cognitivo se refere apenas às estruturas. Não existe, portanto, nenhuma conduta, por mais intelectual que seja, que não comporte, na qualidade de móveis, fatores afetivos; mas, reciprocamente, não poderia haver estados afetivos sem a intervenção de percepções ou compreensão, que constituem a estrutura cognitiva.”[1]
Já Vygotsky sustentava que o meio social exercia influência sobre o desenvolvimento infantil, sendo a educação formal um modo de difundir esse aspecto:
“A interação face a face entre indivíduos particulares desempenha um papel fundamental na construção do ser humano: é através da relação interpessoal concreta com outros homens que o indivíduo vai chegar a interiorizar as formas culturalmente estabelecidas de funcionamento psicológico. Portanto, a interação social, seja diretamente com outros membros da cultura, seja através dos diversos elementos do ambiente culturalmente estruturado (ferramentas), fornece matéria-prima para o desenvolvimento psicológico do indivíduo.”[2]
Para Henri Wallon a teoria das emoções é de grande importância, porque “As emoções são a exteriorização da afetividade (…). Nelas que assentam os exercícios gregários, que são uma forma primitiva de comunhão e de comunidade. As relações que elas tornam possíveis afinam os seus meios de expressão, e fazem deles instrumentos de sociabilidade cada vez mais especializados.”[3]
Nesse passo, na ótica de Piaget a afetividade tem relação com a motivação e o interesse pela atividade intelectual. Vygotsky já demonstra a afetividade numa perspectiva social e cultural, atuando na construção das relações humanas. E Wallon desenvolve a afetividade sob o aspecto das emoções.
Assim, podemos concluir que o desenvolvimento da afetividade está ligado aos processos de ensino-aprendizagem das pessoas, conforme ressalta a Professora Matilde Helena Espíndola:
“Querer ensinar regras de comportamento sem proporcionar a criança situações de interação que levem a uma real tomada de consciência é pura perda de tempo, e o que é pior, pode acabar dificultando a aquisição do pleno desenvolvimento cognitivo e afetivo.”[4]
O Princípio do Afeto pode ser encontrado em diversos dispositivos da legislação brasileira. A afetividade fundamenta, por exemplo, artigos da Constituição Federal, do Código Civil e do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Nesse sentido, a Constituição Federal estabelece que “È dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (art. 227, caput).
No Código Civil, o art. 1.593 diz que “O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem.”
Da mesma forma, o Estatuto da Criança e do Adolescente, com as modificações da Lei n° 12.010/09, prevê em seu art. 33, § 4º:
“Salvo expressa e fundamentada determinação em contrário, da autoridade judiciária competente, ou quando a medida for aplicada em preparação para adoção, o deferimento da guarda de criança ou adolescente a terceiros não impede o exercício do direito de visitas pelos pais, assim como o dever de prestar alimentos, que serão objeto de regulamentação específica, a pedido do interessado ou do Ministério Público.”
No decorrer dos últimos anos constata-se, através dessas normas, a crescente influência do Princípio do Afeto no Direito de Família. Desde a Constituição Federal de 1988, passando pelo Código Civil de 2002 e pelas modificações do ECA em 2009, culminando há poucos dias atrás (29/03/2011), com a publicação da Lei n° 12.398/11, a qual estende aos avós o direito de visita aos netos, é evidente que a afetividade tem sido valorizada pelas leis no Brasil.
Apesar de muitas destas questões já estarem pacificadas pela jurisprudência pátria, a previsão legal reforça esse entendimento, afastando qualquer interpretação contrária e conservadora que pudesse descartar a importância de se considerar a afetividade na resolução de conflitos familiares que chegam ao Poder Judiciário.
A propósito, especificamente nestes casos de pedido de visita de avós aos netos, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, independente da inexistência de legislação, considerando “o fortalecimento das relações familiares e melhor apoio à formação e criação da infante”, já vinha concedendo este direito aos avós há bastante tempo, consoante demonstra o precedente que se transcreve abaixo:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS EM FAVOR DOS AVÓS MATERNOS. MENOR DE TENRA IDADE. GUARDA PELO PAI. VISITAS FIXADAS SEM PERNOITE. Nada impede visitas da criança em favor dos avós maternos, sem pernoite, à neta de tenra idade, em razão do falecimento prematura da genitora desta com vista ao fortalecimento das relações familiares e melhor apoio à formação e criação da infante, uma vez evidenciada a ausência de qualquer dano à menor. DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO AGRAVO DE INSTRUMENTO.” (Agravo de Instrumento Nº 70032267163, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator: Desembargador André Luiz Planella Villarinho, Julgado em 25/11/2009).
Segundo o Dr. Lênio Streck, professor da Unisinos, a Constituição constitui, devendo ser compreendida como hermenêutica que contemple os princípios e os direitos fundamentais e sociais, iluminando e desvelando a interpretação da legislação infraconstitucional.[5]
Nessa esteira, para interpretar precisamos compreender e para adquirirmos essa compreensão temos que ter uma pré-compreensão, que seria o modo de ser da pessoa na produção do Direito.
A hermenêutica filosófica restabeleceria a dignidade humana, uma vez que a compreensão da pessoa ocorreria antes da interpretação, pois “só interpretamos quando e porque compreendemos algo antes.”[6]
Enfim, a pré-compreensão seria a visão que o intérprete tem do mundo, ou seja, o sentido do texto é o modo de ser do sujeito, pois “ao vislumbrar o texto, já há um ter-prévio, um ver-prévio e um pré-conceito acerca da Constituição.”[7]
Por essa razão, a dogmática jurídica se confunde ao tentar compreender um texto ou o ser humano por meio de métodos, como se a vida, o ato de legislar ou de julgar fossem condutas metódicas.[8]
Ao contrário, a compreensão do ser humano passa por toda uma história de vida e acontecimentos, onde a afetividade é uma espécie de pré-compreensão. Daí a importância de o intérprete compreender o que é o afeto para conseguir aplicá-lo como princípio constitucional no Direito de Família.
A partir desta compreensão foi reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar (art. 226, § 3° da Constituição Federal), bem como a família monoparental (art. 226, § 4° da Constituição Federal). No entanto, com relação à família homoafetiva, ao contrário da Argentina, ainda não nos livramos do preconceito e do conservadorismo presentes de forma manifesta na sociedade brasileira.
Por derradeiro, cito as lúcidas palavras do Dr. Sérgio Resende de Barros, professor da Universidade de São Paulo:
“Da família, o lar é o teto, cuja base é o afeto. Lar sem afeto desmorona. (…) A família é o lar dos direitos humanos. Por isso, o direito fundamental à família e os seus direitos operacionais devem ser garantidos sem discriminação alguma, a fim de que o direito de família seja não só o mais humano dos direitos, como também o mais humano dos direitos humanos.”[9]
1- A RELAÇÃO ENTRE AVÓS E NETOS
A relação entre avós e netos também pode trazer uma enorme carga de afeto, pois a convivência mais próxima dessas gerações, além da crescente longevidade adquirida pelos idosos nos últimos anos, tem proporcionado uma maior interação entre eles no âmbito familiar.
Estas transformações nas relações familiares causam mudanças estruturais na sociedade, considerando a importância da família como organização de referência na construção de uma identidade social.
Assim, é importante analisarmos as circunstâncias e os efeitos dessa nova organização familiar que compreende uma relação mais próxima e mais afetiva entre avós e netos.
Para os avós esta experiência não tem a mesma responsabilidade da que foi exigida na relação com seus filhos, tendo em vista que aqueles não tem mais a função de educar, mas apenas de transmitir seus conhecimentos e história de vida aos netos, o que possibilita uma relação mais aberta e despreocupada.
Dessa forma, os netos muitas vezes sentem-se mais próximos dos avós do que dos próprios pais, estabelecendo uma integração muito benéfica para ambos, pois esta troca de conhecimentos ajuda, tanto os avós, a lidarem com o universo presente, como os netos, a entenderem o passado e o histórico familiar.
Nessa perspectiva, é muito comum hoje em dia que os netos apresentem aos avós os avanços tecnológicos (computador, telefone celular, etc), bem como que os avós utilizem toda a sua vivência para aconselhar os netos nos problemas existenciais que afligem os mais jovens.
Diante de tanta aproximação, muitas vezes os avós satisfazem todas as vontades dos netos, não sabendo impor limites, fato que pode prejudicar o desenvolvimento educacional das crianças e adolescentes. Daí a importância de os avós utilizarem a sua experiência de vida e o bom senso para estabelecer limites ao comportamento dos netos. Isto não quer dizer que os avós devem agir como pais dos netos, até porque essa função é única dos pais, mas devem exigir respeito e orientar os jovens.
Atualmente, as pessoas assumem o papel de avós, em média, entre os 50 e os 60 anos, o que permite uma vida em comum com os netos por até 3 décadas, sendo que na última década os netos já são adultos. Do mesmo modo, esta maior longevidade dos avós possibilita que os netos possam conhecer todos os 4 avós, o que há algum tempo atrás era raro. O prolongamento da vida também torna possível cada vez mais a relação com bisavós.
Além disso, as novas relações familiares decorrentes de separações, divórcios, novos casamentos e uniões estáveis criam novos elementos na família, como os padrastos, as madrastas, os avódrastos e, até mesmo, os bisavósdrastos.
Em entrevista, a Dra. Marisa Herrera esclarece o que explica essa mudança no papel dos avós na sociedade:
“Em primeiro lugar, a maior perspectiva de vida e as melhores condições físicas e psíquicas, devido ao desenvolvimento da medicina. Há alguns anos, uma pessoa de 60 anos era muito mais velha e levava uma vida mais passiva. Hoje, aos 60 anos, várias pessoas seguem trabalhando, são muito ativas e têm uma vida dinâmica. Por outro lado, a mulher está mais inserida no mercado de trabalho e precisa de uma rede de apoio. (…) Essas mudanças se deram em diferentes estratos sociais e com um desenvolvimento díspar, de maneira paulatina, no fim da década de 80 e princípio dos 90, e agora estão apresentando um perfil diferente devido aos grandes avanços da tecnologia. Os avós também estão se inserindo no mundo da cibernética para se conectar com os netos e entrar no seu mundo.”
Sobre como essas mudanças se refletem no Direito de Família, comenta a advogada e professora de Direito de Família na Universidade de Buenos Aires:
“Na questão da pensão alimentícia, no pedido de regime de comunicação por parte dos avós quando seus próprios filhos impedem o contato com os netos e nas famílias com carências socioeconômicas, com o aumento de situações nas quais os avós ficam responsáveis pelos netos.”[10]
A respeito disso, as decisões judiciais no Brasil constantemente reconhecem a obrigação avoenga, isto é, o pagamento de pensão alimentícia pelos avós aos netos. Entretanto, tal obrigação tem um caráter subsidiário ou complementar, ou seja, somente se configura no caso dos pais não terem condições financeiras de arcarem de modo integral com o sustento dos filhos. Assim, os avós complementariam essas necessidades, considerando também as suas possibilidades econômicas.
Nesse sentido, o Tribunal de Justiça gaúcho se pronunciou:
“APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ALIMENTOS. PRELIMINAR DE NULIDADE POR FALTA DE INTIMAÇÃO PESSOAL AFASTADA. OBRIGAÇÃO AVOENGA. Caráter subsidiário ou complementar. Menor com necessidades especiais. Não tendo o genitor como pagar a título de alimentos valor condizente com as necessidades especiais da filha, cabe a avó a complementação da verba alimentícia. Benefício da gratuidade de justiça. Concessão. Apelação Cível parcialmente provida. (SEGREDO DE JUSTIÇA).” (Apelação Cível Nº 70035918820, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator: Desembargador Jorge Luís Dall'Agnol, Julgado em 25/08/2010).
Ademais, o Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente que os avós paternos e maternos devem dividir a obrigação subsidiária de alimentos aos netos, conforme noticiou o site do Tribunal. O Relator, Ministro Aldir Passarinho Junior, referiu que a jurisprudência anterior do STJ entendia não ser obrigatório que avós paternos e maternos figurassem em conjunto na ação de alimentos complementares. “No entanto”, afirmou o Ministro, “com o advento do novo Código Civil, este entendimento restou superado, diante do que estabelece a redação do artigo 1.698 do referido diploma, no sentido de que, demandada uma das pessoas obrigadas a prestar alimento, poderão as demais ser chamadas a integrar o feito.”[11]
No que se refere ao direito de visitas, como já mencionamos anteriormente, foi publicada a Lei n° 12.398/11, a qual alterou o Código Civil e o Código de Processo Civil para estender aos avós o direito de visita e a guarda dos netos, nos seguintes termos:
Art. 1.589, parágrafo único do Código Civil:
“O direito de visita estende-se a qualquer dos avós, a critério do juiz, observados os interesses da criança ou do adolescente.”
Art. 888, VII do Código de Processo Civil:
“a guarda e a educação dos filhos, regulado o direito de visita que, no interesse da criança ou do adolescente, pode, a critério do juiz, ser extensivo a cada um dos avós;”
A nova legislação foi proposta pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO), em 2007, sendo aprovada pelo Congresso Nacional em março de 2011.
Segundo foi noticiado:
“Ao propor a lei, Kátia argumentou que é usual, ao término de um relacionamento conjugal, surgirem desavenças e ressentimentos entre o casal e, não raras vezes, tendência à vingança e represália, o que geralmente acaba afastando o menor da convivência de seus demais familiares, a chamada Síndrome da Alienação Parental. Disse ainda a senadora que, se os avós têm por obrigação prestar ajuda material ao neto, conforme previsto no artigo 1.696 do Código Civil, que dirá o auxílio emocional incluído no convívio familiar.”
Acrescenta a informação que “O direito dos avós sobre os netos ganhou maior importância após o caso do menino Sean Goldman, cuja disputa pela guarda com o pai norte-americano provocou uma luta judicial no Brasil.”[12]
Ainda, em entrevista sobre a referida lei, a juíza de Direito da 3ª Vara de Família e Sucessões de Porto Alegre, Jucelana Lurdes Pereira dos Santos, destacou que “Vivemos numa época em que está se estimulando muito a presença da família. No passado, isto não era levado tão em conta (…) Primeiro vêm os fatos da vida, depois vem a lei, que organiza a nossa vivência. Isto é o que aconteceu nesta lei.”[13]
Por fim, bem comenta Delma Silveira Ibias, advogada e presidente do IBDFAM/RS:
“Aduz lembrar que os avós há muito vêm sendo obrigados pelas decisões judiciais a prestarem alimentos aos netos, ainda, que de forma subsidiária, ou seja, para complementar a pensão alimentícia paga pelos genitores, via de regra, o pai biológico. Logo, a recíproca deve ser verdadeira, pois se os avós têm a obrigação de sustento, (art. 1.698 Código Civil/02), nada mais justo, que agora tenham, também, conferido a seu favor, o direito de convivência, salutar e imprescindível para o bom desenvolvimento psicossocial dos netos. É certo afirmar que a manutenção de laços com a família mais ampliada, trará incontáveis benefícios à educação e ao bom desenvolvimento da criança e do adolescente, contribuindo, inclusive para minorar os efeitos nocivos naqueles casos em que se faz presente a alienação parental. Saudamos a entrada em vigor desta nova lei em nosso sistema jurídico.” (site Espaço Vital – artigo: A convivência dos avós com os netos agora é lei).[14]
Então, como disse a Magistrada Jucelana, a lei sacramenta os fatos da vida prática, que, no caso, já vinham sendo reconhecidos há muito tempo pela jurisprudência. No Estado do Rio Grande do Sul, desde 1984 o Desembargador Galeno Lacerda já dizia que este direito de visitas constituía um “corolário natural de um relacionamento afetivo e jurídico”[15]. A partir de agora, o importante é que as decisões judiciais ampliem o reconhecimento de outros tipos de relacionamentos afetivos até que a lei os assegure.
2- AVÓS E NETOS POR AFINIDADE
Os avós talvez sejam hoje o segmento da família que tem despertado maior visibilidade e interesse do meio social, pois a longevidade permite a coexistência de várias gerações.
Outrossim, a sociedade está enfrentando um momento de constantes transformações, as quais se refletem também na forma como as pessoas se relacionam.
Como bem observa Suzana Medeiros:
“Uma das características do estilo de vida atual é a velocidade dos eventos e a fragilidade dos relacionamentos. Vive-se correndo, há uma sensação permanente de transitoriedade.”[16]
Em conseqüência, certamente esse estilo de vida vai repercutir nas relações familiares de crianças, adolescentes e, até mesmo, adultos com seus avós.
Ora, não há como negar a realidade que se apresenta atualmente, as relações humanas são cada vez mais frágeis e transitórias, muitas vezes descartáveis, como se fossem um produto que se consome e descarta. Descabe analisarmos aqui as razões dessa efemeridade, contudo as conseqüências merecem a nossa atenção.
Diante dessa realidade, a pessoa pode ter durante toda a sua vida diversos tipos de relacionamentos familiares, considerando a possibilidade de separação, divórcio, rompimento de união estável, recasamento, etc.
Ocorre que, na maioria das vezes, desses relacionamentos nascem filhos, que se tornarão netos e bisnetos, e que terão uma relação de afeto pelos membros das novas famílias constituídas pelos seus pais, avós e bisavós.
É o que as Professoras Cecilia P. Grosman e Marisa Herrera chamam na Argentina de “familia ensamblada”, isto é: “la organización familiar que nace de un matrimonio o una unión donde uno de ellos o ambos tienen hijos, haya o no hijos em común o próprios de esta nueva pareja.”[17]
Nesse panorama encontram-se também os avós, pois, além dos padrastos e madrastas, existem os avódrastos, ou seja, aquelas pessoas que mantém uma relação de afinidade com os enteados de seus filhos. No Brasil, era o que se chamava em linguagem informal de avós tortos. Hoje poderiam ser denominados como avós afins ou avós por afinidade.
A legislação brasileira não prevê expressamente a tutela desse tipo de relação. Da mesma forma, sequer existem decisões judiciais manifestando-se sobre os interesses dos avós e netos por afinidade. Certamente, o Judiciário logo terá que enfrentar esta questão. Como vimos, somente há poucos dias foi publicada lei que permite o direito de visitação dos avós aos seus netos, muito tempo depois de a jurisprudência já estar consolidada neste sentido. Portanto, é preciso aguardar até que os conflitos envolvendo avós e netos por afinidade cheguem ao Poder Judiciário. A partir daí a jurisprudência irá se pronunciar sobre essa nova demanda de interesses no Direito de Família.
Na Argentina, foi apresentado projeto de lei ao Congresso, no ano de 2008, buscando a proteção de direitos nas relações envolvendo as “familias ensambladas”.
Sobre o assunto, no artigo “Una intersección compleja: Anciedad, abuelidad”, as professoras Cecilia P. Grosman e Marisa Herrera comentam a matéria de modo muito elucidativo:
“El proyecto de ley se denomina “Normas protectoras de los hijos de las Familias ensambladas” ingresado por la Cámara de Senadores, aprobado por esta Cámara y ahora pasa a estudio de la Cámara de Diputados. Si bien en esta normativa se regula la relación entre padres e hijos afines, quedando afuera de manera expresa el reconocimiento jurídico del lazo entre abuelos y nietos afines; lo cierto es que un avance en la visibilidad de la familia ensamblada en el cuerpo normativo civil sería un primer paso –y fundamental- para profundizar y observar la relevancia de que también se amplíe este reconocimiento a la generación siguiente, a los abuelos afines. En otras palabras, una conquista normativa como la que aquí se propone y se acompaña dejaría el terreno más fértil para una regulación expresa de la relación entre abuelos y nietos afines. A lo mejor desde la técnica legislativa, el lugar adecuado para dicha actividad lo sea una ley integral que nuclee todas las cuestiones relativas a los abuelos y nietos (afines y no afines), siguiendo los pasos de la legislación española.”[18]
Ao contrário disso, no Brasil, lamentavelmente a legislação é criada com um grande atrasado em relação às mudanças sociais que ocorrem.
É notório que muito desta morosidade deve-se ao conservadorismo de nossos políticos, na maioria das vezes, pressionados pelo preconceito da sociedade e influência da igreja em manter o status quo. Por essa razão, no nosso país as decisões judiciais assumem um papel fundamental como meio de reconhecimento destas novas relações humanas.
Daí a importância de contarmos com juízes livres de amarras preconceituosas e de influências religiosas, porque este é o primeiro passo para que a jurisprudência aprecie estas novas formas de relações familiares de modo isento e justo.
CONCLUSÃO – A INTERSECÇÃO ENTRE O PRINCÍPIO DO AFETO E A RELAÇÃO ENTRE AVÓS E NETOS POR AFINIDADE
Na atualidade, muitas vezes se verifica que em relações unicamente de afeto se estabelecem vínculos muito mais profundos do que em relações familiares, onde existe uma consangüinidade.
A razão disso talvez esteja no fato de que os vínculos de afinidade sejam determinados por relações voluntárias e verdadeiras, sem a obrigatoriedade que se impõe nas relações entre parentes de sangue, quando os relacionamentos podem ser forçados, mesmo que não existam os sentimentos que aproximam as pessoas.
A relação entre avós e netos, como já expomos, estabelece vínculos diferenciados, não podendo ser confundida com a relação entre pais e filhos.
Nesses casos, parece que a obrigação de educar as crianças e adolescentes acaba inibindo os pais de demonstrarem mais abertamente o seu afeto pelos filhos. De modo diverso, os avós não tem este compromisso com os netos, o que lhes permite manter um relacionamento muito mais próximo e afetuoso.
Este tipo de relação pode ser constatada nas declarações contidas em uma pesquisa realizada numa escola pública do município de São Leopoldo/RS, por uma professora do 1° ano do ensino médio.[19]
No que pertine à afetividade, os relatos de um neto e de uma avó demonstram de forma clara este sentimento:
“Minha vó é uma pessoa que está sempre presente na minha vida. Eu a amo demais. Hoje, quando fui na casa da amiga da minha mãe, dei uma passada na casa deles, só pra dar um beijo, não conversamos, apenas um oi” (Relato do Neto).”
“A N. (referindo-se à neta) significa muito pra mim. Amor, carinho, a gente dá e ela também. Adoro ela por isso. É a neta que mais me procura também. Ela está em primeiro lugar. Eu adoro ela, ela é muito querida pra mim.” (Relato da Avó).”
A demonstração de carinho e afeto repercute em outras formas de comportamento, como o companheirismo e a cooperação, conforme ficou demonstrado nas declarações da pesquisa:
“Hoje cheguei do colégio, mais cedo e passei na minha vó materna como sempre. Então ela me convidou para ir na UNISINOS com ela, para ela receber sua aposentadoria.Fomos lá ao meio-dia, depois fomos pagar a luz no trem e comemos sorvete. Depois quando voltamos eu fiz pipoca e comemos.” (Relato da Neta).”
“A gente fica juntas, faz comida juntas. A gente conversa. A gente, às vezes ela quer fazer alguma coisa que ela não sabe fazer, ela vem pra mim ajudar ela. Ela está assim junto com a gente.” (Relato da Avó).”
Ao final, a pesquisa relata “um aspecto da relação intergeracional: a avosidade. “A avosidade é uma função intimamente ligada à função materna ou paterna das quais se diferencia, mas que, como aquelas, tem um papel determinante na estruturação psíquica do sujeito” (GOLDFARB; COSTA LOPES, 2006, P. 1378).”[20]
Diante de tudo que foi exposto, percebe-se o quanto é importante manter a relação entre avós e netos, seja por laços de consangüinidade, seja por laços de afinidade.
A jurisprudência e a legislação constataram a relevância de garantir este relacionamento entre avós e netos consangüíneos. São necessárias, ainda, manifestações do Judiciário e do Legislativo acerca daquelas relações em que o vínculo entre avós e netos ocorre por afinidade.
Nesse ponto, vejam que a ausência de previsão jurisprudencial e legislativa pode trazer à Justiça o seguinte problema a ser resolvido: o companheiro da filha dos avósdrastos constitui nova relação conjugal, ou seja, a terceira (depois do primeiro cônjuge, quando nasceu o filho, e depois do segundo cônjuge, quando se estabeleceu uma relação do mesmo filho com os avósdrastos).
Imaginemos então que os avósdrastos tenham uma relação de afeto muito grande com o netastro e queiram mantê-la, visitando-o, mas são impedidos pelo pai da criança, ao argumento de que não existe mais qualquer tipo de relação entre as famílias. Como resolver esse problema?
Entendemos que a solução passa por tudo que foi dito neste artigo, ou seja, os juízes devem considerar o Princípio do Afeto, por mais que inexista previsão legal. Os interesses da criança ou adolescente e a relação de afeto que ocorreu entre os avós e o neto por afinidade devem prevalecer sobre os interesses individuais e, porque não dizer, mesquinhos do pai, o qual, nesta hipótese, impossibilitava que seu filho se relacionasse com os pais da sua ex-companheira.
Aliás, sobre o direito de visitação nas relações por afinidade, a jurisprudência do TJ/RS já se manifestou, reconhecendo a importância do afeto em casos que envolviam padrastos, como se constata nas ementas colacionadas abaixo:
“PEDIDO DE REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS E OFERTA DE ALIMENTOS EFETUADO POR PADRASTO. POSSIBILIDADE JURÍDICA. Na atualidade, onde a família é vista como uma união de afetos direcionada à realização plena e à felicidade de seus integrantes, e não mais como mero núcleo de produção, reprodução e transferência de patrimônio, como o era até o início do século XX, a pretensão aqui deduzida não deve ser liminarmente rejeitada, sem, ao menos ensejar-se dilação probatória, que permita verificar se, sob o ponto de vista do melhor interesse da adolescente – que deve sobrelevar a qualquer outro – há ou não conveniência no estabelecimento da visitação pretendida. PROVERAM. UNÂNIME.” (Apelação Cível Nº 70002319580, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator: Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, Julgado em 16/05/2001).
“AGRAVO EM EXECUÇÃO. DIREITO DE VISITA. PADRASTO. POSSIBILIDADE. O direito a visita consiste num dos direitos essenciais dos apenados, conforme disposição do art. 41, inciso X, da Lei de Execução Penal, ou seja, em que pese deva observar a conveniência da situação em nenhuma hipótese pode ser retirado do apenado, sob pena de grave ofensa a direito público subjetivo. A visitação ao estabelecimento prisional, substancialmente por parte dos familiares, propicia aos apenados não somente a manutenção dos laços familiares, como também a possibilidade de amenizar e superar os malefícios intrínsecos do isolamento que encerra a privação da liberdade. A relação com enteados não se afasta da carga afetiva e emocional da dos filhos do apenado. Agravo provido. Prejudicada a preliminar.” (Agravo Nº 70033592080, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, Relator: Desembargador Aramis Nassif, Julgado em 14/04/2010).
Por outro lado, pode-se pensar até mesmo em uma situação mais inusitada, qual seja: a possibilidade de os avósdrastos pagarem pensão alimentícia complementar aos netos por afinidade, quando os pais não tiverem condições de arcar de modo integral com o sustento de seus filhos.
Assim, é importante que a jurisprudência ao se manifestar sobre os problemas decorrentes dessa relação entre avós e netos por afinidade, tenha a sensibilidade de considerar, acima de tudo, o Princípio do Afeto, pois esse sentimento deve reger todas as relações humanas, principalmente as familiares.
Por derradeiro, também seria muito bem vinda uma legislação própria sobre estas relações por afinidade, como na Argentina, onde já existe um projeto de lei para a proteção das relações envolvendo as “familias ensambladas”.
Informações Sobre o Autor
Frederico Antônio Azevedo Ludwig
Especialista em Direito Constitucional pelo Complexo Jurídico Damásio de Jesus. Mestre em Direitos Humanos pelo Centro Universitário Ritter dos Reis. Advogado licenciado atua como Assessor de Procuradoria de Justiça no Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul