Resumo: O presente artigo almeja demonstrar a pertinência de pesquisa realizada por Rui Barbosa na década de 1910 para a apreciação de polêmicas atuais envolvendo os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, além de correlacionar tal estudo do jurista baiano com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal concernente à inconstitucionalidade de leis a imporem limitações geográficas à fixação de novas drogarias e farmácias.
Palavras-chave: proporcionalidade, necessidade e razoabilidade; Rui Barbosa; liberdade de iniciativa econômica, de empresa e de concorrência.
Abstract: This paper aims to demonstrate the relevance of research carried out by Rui Barbosa in the 1910s for the assessment of current controversies involving the principles of reasonableness and proportionality and correlates this study of Bahian lawyer with the jurisprudence of the Supreme Court concerning the constitutionality of laws to impose geographical limitations to the establishment of new drugstores and pharmacies.
Keywords: proportionality, necessity and reasonableness; Rui Barbosa; freedom of economic initiative, free enterprise and free competition.
SUMÁRIO: Introdução; 1 O proporcional e o razoável: a atualidade do tema na doutrina brasileira: 1.1 A diversidade temática — 1.2 Os elementos do princípio da proporcionalidade — 1.3 O debate sobre as distinções e semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade; 2 A contribuição de Rui Barbosa ao diálogo entre o critério da necessidade e o princípio da razoabilidade; 3 A proibição de limitações geográficas à fixação de drogarias e farmácias, à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal; Conclusão; Referências.
Introdução
O presente artigo consubstancia homenagem a Rui Barbosa, ao demonstrar o pioneirismo e a atualidade de pesquisa realizada pelo ilustre jurista baiano corporificada no memorial forense As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais.
Pioneirismo, porque, décadas antes dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade (bem como do subprincípio da necessidade) ingressarem na pauta do debate jurídico brasileiro, o ideólogo da Constituição de 1891, no exercício do seu múnus advocatício, consultava precedentes judiciais anglo-saxônicos do final do século XIX e do início do século XX relativos à razoabilidade da interdição da liberdade comercial e à necessidade dessa interveniência na liberdade de empresa não ultrapassar a fronteira do necessário.
Atualidade, já que, decorridas quase uma centúria após o advento de tal estudo, viceja na dogmática pátria vigorosa controvérsia acerca dos pontos de convergência entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
A par disso, tal contributo de Rui Barbosa às letras jurídicas nacionais serve de ensejo para se analisarem precedentes do Supremo Tribunal Federal relativos à inconstitucionalidade de leis a imporem limitações geográficas à fixação de novas drogarias e farmácias.
Em suma, a propósito do resgate histórico dessa parcela do legado intelectual ruiano, buscou-se trazer à tona determinadas questões contemporâneas relacionadas à seara do proporcional, do razoável e do necessário, bem como da interdição da liberdade empresarial e de concorrência.
1. O proporcional e o razoável: a atualidade do tema na doutrina brasileira
1.1 a diversidade temática
No Brasil, mostra-se expressiva a quantidade de trabalhos monográficos publicados em formato de livros-texto e dedicados especificamente ao princípio da proporcionalidade, elenco a abranger as mais diversas áreas e temáticas jurídicas. Exemplos:
(a) Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito. A incidência do princípio da proporcionalidade no controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais[1], no controle dos atos legislativos[2], na ponderação racional ante a colisão de direitos fundamentais[3], na interpretação constitucional[4] e na quebra do sigilo bancário[5]. O princípio da proporcionalidade na Teoria Geral dos Direitos Fundamentais[6] e no Estado Democrático de Direito[7], bem como na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal[8]. O significado e a aplicação prática do princípio da proporcionalidade[9]. O princípio da proporcionalidade fundamentado na concepção grega de justiça[10]. O princípio da proporcionalidade como princípio jurídico[11]. A crítica ao princípio da proporcionalidade alicerçada no pensamento do filósofo alemão Jürgen Habermas[12].
(b) Direito Administrativo. No controle do ato administrativo[13] e na Principiologia do Direito Administrativo[14].
(c) Direito Ambiental. No âmbito do direito ao “meio ambiente equilibrado”[15].
(d) Direito Processual Civil. Na seara do processo civil em geral[16], do abuso do direito processual[17], da tutela constitucional e dos resultados do processo civil[18], assim como das tutelas de urgência[19].
(e) Direito Penal e Direito Processual Penal. Seja no Direito Penal em geral[20], no controle de normas penais[21] e no controle dos tipos penais incriminadores[22], seja no Direito Processual Penal em geral[23], na extinção antecipada da sanção penal[24], na aferição de exceções à inadmissibilidade de provas ilícitas no processo penal[25], na aplicação e execução da pena[26], em sede de medidas cautelares pessoais e de súmulas vinculantes[27] de cunho processual penal, na ponderação de interesses em matéria probatória processual penal[28], além de circunstâncias em que há colisão de normas jurídicas de natureza penal e/ou processual penal[29].
(f) Direito Tributário. O princípio da proporcionalidade em diálogo com o princípio da capacidade tributária e a liberdade de planejamento tributário, bem assim com as sanções tributárias e as contribuições de melhoria no domínio econômico[30]. A par disso, a questão da proporcionalidade das multas tributárias[31].
Ademais, há obras monográficas que realizam a análise conjugada dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, quer no Direito do Consumidor[32], no Direito Administrativo[33], no Direito Tributário[34] e na Teoria Geral do Direito[35], quer no campo dos conflitos entre princípios constitucionais[36]. Mencionem-se, ainda, trabalhos monográficos que estudam ambos os princípios de forma ampla e diferenciada[37]. Também cumpre recordar as monografias jurídicas direcionadas ao tema que vislumbram os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade como um princípio jurídico único (de acordo com tal entendimento, haveria sinonímia entre os termos razoabilidade e proporcionalidade), ao examiná-los no âmbito do Direito Processual Civil[38], do Direito de Trânsito[39], do ordenamento jurídico pátrio e estrangeiro[40] e da discricionariedade administrativa[41]. Há, ainda, obra de Nohara, centrada no controle da razoabilidade do ato administrativo[42], deixando em segundo plano as questões peculiares ao princípio da proporcionalidade.
1.2 Os elementos do princípio da proporcionalidade
Na dogmática brasileira atual, disseminou-se a principal concepção alemã de princípio da proporcionalidade, ancorada no eixo adequação-necessidade-proporcionalidade em sentido estrito:
(a) No elemento da adequação, perquire-se se, por intermédio do ato jurídico escolhido, pode-se (1) alcançar determinada finalidade (realizando-a) ou (2) fomentá-la (nesse caso, não se pretende contemplar in totum o fim almejado, mas tão somente promovê-lo)[43].
(b) No elemento da necessidade, afere-se se o ato jurídico a limitar dado direito fundamental é, de fato, imprescindível, isto é, verifica-se se a finalidade incumbida àquele ato jurídico pode ser alcançada ou promovida por ato jurídico alternativo, o qual vise ao mesmo propósito, procedendo com a mesma intensidade e, ao mesmo tempo, restrinja em menor escala o direito fundamental afetado[44].
(c) No elemento da proporcionalidade em sentido estrito, efetua-se sopesamento ou ponderação, ao se cotejar, nas palavras de Luís Virgílio Afonso da Silva, “a intensidade da restrição ao direito fundamental atingido”[45] com “a importância da realização do direito fundamental que com ele colide e que fundamenta a adoção da medida restritiva”[46].
O magistério de Luís Virgílio Afonso da Silva acolhe tal concepção trina do princípio da proporcionalidade com as seguintes ressalvas:
(a) Embora prefira se referir àquele como regra da proporcionalidade, porquanto, à luz da classificação de princípios e regras de Robert Alexy — explica Afonso da Silva —, “não pode ser considerado um princípio […], pois não tem como produzir efeitos em variadas medidas”[47], pontua o jurista paulista que a locução princípio da proporcionalidade se incorporou à prática jurídica brasileira[48], reconhece a “forte carga semântica”[49] da expressão e a polissemia em torno do conceito de princípio jurídico[50].
(b) Por outro lado, o renomado constitucionalista uspiano rechaça a sinonímia entre o princípio da proporcionalidade e o princípio da razoabilidade, ante a formulação alemã daquela e a origem anglo-saxônica desta, bem como a diferente estrutura de ambos os princípios: enquanto o princípio da proporcionalidade se ancoraria nos elementos da adequação, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito, o princípio da razoabilidade se adstringiria ao elemento da adequação:
“A exigência de razoabilidade, baseada no devido processo legal substancial, traduz-se na exigência de “compatibilidade entre o meio empregado pelo legislador e os fins visados, bem como a aferição da legitimidade dos fins”. Barroso chama a primeira exigência – compatibilidade entre meio e fim – de razoabilidade interna, e a segunda – legitimidade dos fins –, de razoabilidade externa. Essa configuração da regra da proporcionalidade faz com que fique nítida sua não identidade com a regra da proporcionalidade. O motivo é bastante simples: o conceito de razoabilidade, na forma como exposto, corresponde apenas à primeira das três sub-regras da proporcionalidade, isto é, apenas à exigência de adequação. A regra da proporcionalidade é, portanto, mais ampla do que a regra da razoabilidade, pois não se esgota no exame da compatibilidade entre meios e fins, conforme ficará claro mais adiante”.[51]
1.3 O debate sobre as distinções e semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade
Todavia, na doutrina brasileira grassa a diversidade de entendimentos quanto às diferenças e às semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
Endossam as distinções entre tais princípios jurídicos ressaltadas por Afonso da Silva as monografias de Luciano Feldens[52], Carolina Medeiros Bahia[53] e José Sérgio da Silva Cristóvam[54]. Nesse sentido, averbamos:
“Embora o princípio da razoabilidade e o princípio tridimensional da proporcionalidade acolhidos no Brasil tenham raízes históricas diversas (o primeiro, estadunidense, e o segundo, alemã), no Direito brasileiro, o princípio tridimensional da proporcionalidade fagocita, em sua dimensão da adequação, o princípio da razoabilidade. Por isso, no Direito pátrio, aquele se torna uma evolução deste. Do ponto de vista histórico, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, a disseminação do (e invocação recorrente ao) princípio da razoabilidade (a partir meados do século XX, mormente em sua segunda metade) antecede ao princípio tridimensional da proporcionalidade (finais do século XX e, sobretudo, década de 2000), ainda que usual, na segunda metade do século XX, a remissão ao princípio da proporcionalidade como sinônimo do princípio da razoabilidade. (Independente de haver sinonímia entre tais princípios e independente do princípio tridimensional da proporcionalidade constituir, no Direito pátrio, aprimoramento do princípio da razoabilidade, a questão central, na prática jurídica, diz respeito à necessidade de existir criteriosa aplicação de ambas as normas, bem como dos princípios da juridicidade e da dignidade da pessoa humana.)”[55]
Consoante preconiza Marcus Alan de Melo Gomes[56], o proporcional é razoável, mas o razoável nem sempre é proporcional — ponderação também feita por Mariângela Gama de Magalhães Gomes[57].
Suzana de Toledo Barros vislumbra o princípio da razoabilidade forjado na jurisprudência dos Estados Unidos da América como expressão do princípio da proporcionalidade na ordem jurídica estadunidense[58]. Também notando sinonímia entre ambos os princípios, Eduardo Melo de Mesquita consigna: “Um juízo definitivo sobre a proporcionalidade ou razoabilidade da medida há de resultar da rigorosa ponderação entre o significado da intervenção para o atingido e os objetivos perseguidos pelo legislador (proporcionalidade ou razoabilidade em sentido estrito).”[59] Atribuem ao princípio da razoabilidade o mesmo conteúdo do princípio tridimensional da proporcionalidade os magistérios de Daniel André Fernandes[60] e Adilson Josemar Puhl[61]. Igualmente compartilham do posicionamento favorável à sinonímia entre os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade Raphael Augusto Sofiati de Queiroz[62], Anderson Sant´Ana Pedra[63] e Celso Antônio Bandeira de Mello[64].
Para Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o princípio da proporcionalidade é uma faceta do princípio da razoabilidade[65].
Conforme Irene Patrícia Nohara, “por mais que se aponte a utilização do termo proporcionalidade de forma diferenciada, sua identificação se pauta no juízo de razoabilidade, e salvo a diferenciação quanto à nomenclatura e à identificação dos elementos, que não é pacífica, os dois conceitos”[66] — infere — “acabam se prestando ao mesmo objetivo de controle das atividades legislativa e executiva para que não haja restrições excessivas aos direitos dos cidadãos”[67].
Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos compartilham do entendimento de que, apesar “da origem e do desenvolvimento diversos”[68], ambos os princípios “abrigam os mesmos valores subjacentes: racionalidade, justiça, medida adequada, senso comum, rejeição aos atos arbitrários ou caprichosos”[69], motivo por que “razoabilidade e proporcionalidade são conceitos próximos o suficiente para serem intercambiáveis”[70].
Na Ciência do Direito Administrativo, José Roberto Pimenta Oliveira esposa juízo próprio sobre as distinções entre ambos os princípios: consoante a construção planteada por Oliveira, enquanto o princípio da razoabilidade constitui “mandato de otimização, exigindo seu conteúdo jurídico a proscrição de condutas axiologicamente intoleráveis, irrazoáveis ou arbitrárias, no desempenho da função administrativa, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas pertinentes”[71] — obtempera — “a cada caso em que opera sua incidência na atividade administrativa”[72], o princípio da proporcionalidade “procedimentaliza ou racionaliza os contornos da razoabilidade”[73], ao delinear como são aplicados “princípios e regras do regime jurídico-administrativo”[74] e como são “ponderados os interesses e valores, presentes no processo de atualização do direito, instrumentalizando e potencializando o controle intersubjetivo”[75].
Já na Teoria Geral do Direito, Humberto Ávila[76] igualmente formula entendimento próprio: ao contrário do princípio da proporcionalidade, o princípio da razoabilidade não se refere à relação de causalidade entre meio e fim nem ao “entrecruzamento horizontal de princípios”[77] (ausente, pois, “espaço para afirmar que uma ação promove a realização de um estado de coisas”[78]), e sim ao “dever de harmonização do Direito com suas condições externas (dever de congruência)”[79], a exigir “a relação das normas com suas condições externas de aplicação, quer demandando um suporte empírico existente para a adoção de uma medida, quer exigindo uma relação congruente entre o critério de diferenciação escolhido e a medida adotada”[80].
Luiz Carlos Branco, conquanto estude em separado os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, vincula ambos aos subprincípios da adequação e da necessidade (sem versar acerca do subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito)[81].
Tiago Cintra Essado divisa a razoabilidade “como instrumento para a obtenção de equidade, congruência e equivalência”[82] e agasalha a subdivisão do princípio da proporcionalidade nos subprincípios da “adequação (pertinência ou aptidão), necessidade e proporcionalidade em sentido estrito”[83].
Belize Câmara Correia, partidária da formulação tripartite do princípio da proporcionalidade, abraça a distinção feita por Peter Craig[84]: o princípio da razoabilidade diz respeito ao contraste entre a medida atacada e a prudência do ser humano comum, ao passo que a proporcionalidade “tem como objetivo aquilatar se existe justificativa no interesse público para que se permita a invasão da esfera individual”[85].
Na visão de Gustavo Ferreira Santos, inspirado em lição do jurista português Vitalino Canas[86], a razoabilidade consubstancia “teste intermédio de proporcionalidade”[87], uma vez que não indaga “a natureza do meio escolhido pelo Estado”[88], mas apenas se questiona se o meio elegido foi moderado e prudente.
De acordo com Flavia D´Urso, adotar-se o princípio da razoabilidade como sinônimo do princípio da proporcionalidade reduziria a abrangência daquele, ao confiná-lo à seara do devido processo legal[89].
Gisele Santos Fernandes Góes preleciona que a razoabilidade se exaure no bloqueio ao “inaceitável ou arbitrário”[90], diferentemente do proporcional, que agrega a essa função negativa a função positiva de “resguardo na materialização da melhor medida possível dos direitos constitucionais fundamentais”[91]. O entendimento de que o princípio da razoabilidade se distingue do princípio da proporcionalidade em virtude daquele se limitar à função negativa também é esposado por Chade Rezek Neto[92].
Segundo Manoel Aureliano Ferreira Neto, enquanto o princípio da razoabilidade “apenas impede a existência de atos irrazoáveis, sem substituir a medida assim considerada”[93], o princípio da proporcionalidade “sopesa, na aplicação dos subelementos estruturantes, os princípios em conflito, apontando qual deles deve prevalecer, em face do exame da dimensão do peso de cada um deles”[94].
Willis Santiago Guerra Filho impinge ao princípio da razoabilidade uma “função negativa”[95] (desobedecê-lo “significa ultrapassar irremediavelmente os limites do que as pessoas em geral, de plano, consideram aceitável, em termos jurídicos)”[96], e ao princípio da proporcionalidade atribui “uma função positiva […], na medida em que pretende demarcar aqueles limites, indicando como nos manteremos dentro deles – mesmo quando não parecer, à primeira vista, ‘irrazoável’ ir além”[97].
Enquanto “a razoabilidade é um princípio de interpretação, que está (ou deve estar) presente em todo agir individual e social”[98] — contrasta Francisco Fernandes de Araújo —, “a proporcionalidade, além desse aspecto, também é um princípio de calibragem ou dosimetria na feitura e na aplicação da norma, isto é, tem uma ‘materialização’ mais forte do que o princípio da razoabilidade”[99]. A “razoabilidade trata da legitimidade da escolha dos fins em nome dos quais agirá o Estado”[100] — reflexionam Wellington Pacheco Barros e Wellington Gabriel Zuchetto Barros —, ao passo que “a proporcionalidade averigua se os meios são necessários, adequados e proporcionais aos fins já escolhidos”[101].
Consoante aduz Leonardo de Araújo Ferraz, enquanto o princípio da proporcionalidade se resume ao papel de “instrumento estruturado e preordenado de solução de conflitos envolvendo direitos colidentes”[102], o princípio da razoabilidade se associa ao conceito de “racionalidade comunicativa”[103] (“coerência lógica e interna do sistema jurídico”[104]) e à “proibição de excesso ou insuficiência”[105].
Conforme o ensino de Carlos Roberto Siqueira Castro, no âmbito da legislação destinada ao combate de desigualdades, a razoabilidade corresponde à “compatibilidade e congruência entre a classificação [legislativa] e o fim a que ela se destina, o que caracteriza e demarca o território singular do princípio da razoabilidade (reasonableness)”[106], e a proporcionalidade concerne ao “controle da medida da suficiência, da insuficiência ou do excesso, calcado no trinômio necessidade-adequação-proporcionalidade estrita, que circunscreve o território específico da aplicação do princípio da proporcionalidade”[107].
Para Valeschka e Silva Braga[108], o princípio da razoabilidade radica sua matriz na construção pretoriana norte-americana do devido processo substantivo (neste se fundamenta), enfoca a interpretação jurídica (destinada à “exclusão de condutas desarrazoadas”[109]) e “a congruência dos motivos (pressupostos de fato) com a finalidade da medida”[110], “possibilita a verificação da adequação e necessidade entre os motivos e os fins”[111], “abrange as circunstâncias pessoais”[112] do caso concreto, “em virtude do tempo e do lugar, envolvendo a noção de senso comum”[113], relaciona-se com o déficit de lógica ou congruência (dimensão da racionalidade: adequação + necessidade)[114] aos olhos da “sensatez do homem comum”[115] (dimensão da razoabilidade em sentido estrito[116]), traduz “a percepção do bom senso admitido pela comunidade, que acaba variando de acordo com os padrões do próprio intérprete”[117] e se volta à “valoração dos atos emanados do Poder Público, para que estes não deixem de ser informados por justiça, bom senso, razão”[118].
Já o princípio da proporcionalidade, segundo a alentada monografia da jurista cearense, nasce e se desenvolve no âmbito do Tribunal Constitucional da Alemanha, alicerça-se no Estado de Direito, e direciona o exame da “compatibilidade dos meios com os fins”[119] a “situações jurídicas abstratas”[120], estribado nos critérios predefinidos[121] das dimensões da adequação, da necessidade e da proporcionalidade, colocando-se “na balança dois interesses legítimos, para que eles sejam sopesados, a fim de que seja analisado qual deles deve prevalecer”[122], com vistas não apenas a “dar subsídios à interpretação jurídica”[123] como também a atuar na “otimização dos direitos fundamentais, solucionando-lhes os conflitos”[124].
Apesar de Marcelo José Magalhães Bonicio asserir que ambos os princípios “são bastante parecidos”[125], sobretudo no campo do Direito Processual Civil brasileiro, adverte que o princípio da razoabilidade decorre do due process of law e consiste em “regra geral de conduta”[126] adaptável “às particularidades de cada hipótese”[127] (aspecto em que seu ponto de vista se aproxima da ensinança de Silva Braga).
Helenilson Cunha Pontes realiza três diferenciações entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade:
(1) O princípio da proporcionalidade exige maior “grau de motivação racional”[128] do ato decisório, ou seja, além da “consideração dos interesses concretamente em jogo e a eleição de uma medida razoável, mediante o afastamento das medidas irrazoáveis ou inaceitáveis”[129] (campo de incidência do princípio da razoabilidade), requisita o atendimento aos requisitos da “adequação, necessidade e conformidade”[130].
(2) Enquanto o princípio da razoabilidade “exige apenas que a decisão jurídica seja racionalmente motivada, aprecie os interesses concretamente em discussão e seja uma dentre as várias decisões igualmente razoáveis, mediante um juízo de exclusão”[131], o “princípio da proporcionalidade consubstancia notadamente, mas não exclusivamente, um juízo acerca da relação meio-fim, entre a medida tomada e o fim com ela buscado”[132], porquanto “os aspectos da adequação e da necessidade, em maior medida, e a conformidade ou proporcionalidade em sentido estrito, em menor medida, realizam-se tendo em vista aquela relação”[133].
(3) “A proporcionalidade […] não exige apenas que a atuação estatal e a decisão jurídica sejam razoáveis, mas que sejam melhores, e representem a maximização das aspirações constitucionais”[134].
Na óptica de Ricardo Aziz Cretton, o princípio da razoabilidade possui traços hermenêuticos e converge “para a ponderação de outros princípios”[135], ao passo que o princípio da proporcionalidade se reveste “de vocação objetiva, material, substancial, precipuamente destinado, ad ovo, ao balanceamento de valores (e de outros princípios decorrentes)”[136], a exemplo da segurança, liberdade, igualdade e propriedade, e ambos deságuam no princípio da ponderação de valores e bens, espécie de superprincípio “fundante do próprio Estado de Direito Democrático contemporâneo (pluralista, cooperativo, publicamente razoável e tendente ao justo)”[137].
As monografias brasileiras relativas ao princípio da proporcionalidade escritas por José Eduardo Suppioni[138] de Aguirre, Liana Chaib[139], Thiago Bottino do Amaral[140], Denilson Feitoza Pacheco[141] e Fabiana Lemes Zamalloa do Prado[142] aludem à mencionada controvérsia terminológica sem ostentarem posicionamento nitidamente favorável ou contrário à sinonímia ou não entre ambos os princípios, ao priorizarem a fundamentação de aspectos mais fulcrais de suas correspondentes pesquisas jurídicas, ou seja, preponderando o foco de tais autores a questões de maior pertinência à problematização dos respectivos trabalhos monográficos.
Também há monografistas que não mencionam a controvérsia terminológica concernente aos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, optando por estudo centrado em matriz germânica do princípio da proporcionalidade, a exemplo das obras de Thiago André Pierobom de Ávila[143], Anizio Pires Gavião Filho[144] e Orlando Luiz Zanon Junior[145].
Jarbas Luiz dos Santos, ao propor a concepção grega de justiça como fundamento filosófico, escolheu desconsiderar as “eventuais diferenças apontadas entre os conceitos de razoabilidade e proporcionalidade”[146].
Sylvia Marlene de Castro Figueiredo versa sobre as variações terminológicas do princípio da proporcionalidade apenas no âmbito da Europa continental, sem se imiscuir na questão da razoabilidade[147].
No sentir de Fábio Pallaretti Calcini, o princípio da razoabilidade exprime o devido processo legal substantivo[148], engloba o princípio tridimensional da proporcionalidade[149] e representa “um standard de justiça”[150].
2. A contribuição de Rui Barbosa ao diálogo entre o critério da necessidade e o princípio da razoabilidade
Em uma época (ano-base: 2011) em que os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, portanto, possuem ampla acolhida na doutrina jurídica brasileira, não há no pensamento jurídico pátrio consenso entre as distinções e semelhanças entre ambos os princípios, e existe em catálogo, nas nossas livrarias, mais de duas dezenas de monografias voltadas aos princípios da razoabilidade e/ou da proporcionalidade, convém resgatar o estudo pioneiro de Rui Barbosa de Oliveira[151] (1849-1923) — referido, de forma tradicional, no corpo de textos acadêmicos, didáticos e jornalísticos brasileiros simplesmente por Ruy ou Rui, em vez de Barbosa de Oliveira ou Barbosa —, o mais célebre e influente jurista da Primeira República (1889-1930), ideólogo da Constituição brasileira de 1891 (a nossa primeira Constituição republicana), constitucionalista de papel decisivo para o advento das bases constitucionais do federalismo brasileiro e do início do processo de autonomização do Poder Judiciário pátrio[152].
Originalmente publicada pelo então denominado Ministério da Educação e Saúde[153], as Obras Completas de Rui Barbosa, hoje sob os auspícios da Fundação Casa de Rui Barbosa (à época órgão[154] integrante da Pasta da Educação e Saúde, hoje fundação pública vinculada ao Ministério da Cultura[155]) foram digitalizadas, mediante parceria iniciada em 2007[156] com o Supremo Tribunal Federal, e hoje se encontram disponíveis na Rede Mundial de Computadores, por meio do site institucional <http://www.casaruibarbosa.gov.br>[157], inteirando-se, na atualidade (ano-base: 2011), 137 (centro e trinta e sete) tomos publicados[158].
No tomo I do volume XL (correspondente ao ano de 1913), consta o trabalho intitulado As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais, sobejamente lastreado na jurisprudência anglo-saxônica do final do século XIX e início do século XX.
No referido memorial forense (§ 278), Rui Barbosa considera justificável a limitação temporal e espacial à liberdade comercial, desde que não seja uma “interdição perpétua e universal”[159], uma vez que, nesse caso, significaria a “abdicação da liberdade e personalidade humana, que o direito não a pode sancionar”[160] (sancionar, nesse contexto, como sinônimo não de punir, mas de chancelar[161]). Esteado em tal premissa, infere (§ 301) a “nulidade jurídica dos contratos de cessão de clientela, ainda mesmo expressos, quando sem limites de tempo e espaço”[162].
Compulsando-se tal memorial alinhavado por Rui, percebe-se o pioneirismo do estadista baiano em se debruçar, na primeira metade da década de 1910[163], sobre questões jurídicas que se tonariam, mormente a partir de década de 2000, aspecto central do debate jurídico brasileiro, mormente na seara do Direito Constitucional e da Teoria dos Direitos Fundamentais. Mais do que isso: por meio do estudo ruiano, percebe-se a possibilidade de diálogo entre a dimensão da necessidade do princípio tridimensional da proporcionalidade (matriz alemã) e o princípio da razoabilidade (matriz anglo-saxônica).
A concepção dogmática do subprincípio da necessidade majoritariamente abraçada pela doutrina brasileira baseia-se na formulação alemã do princípio tridimensional da proporcionalidade segundo a qual “o exame do princípio parcial da necessidade”[164] — esclarece Anizio Pires Gavião Filho — “é uma questão de comparação entre a medida escolhida ou a ser escolhida e outras medidas alternativas”[165].
Desse modo, averigua-se — prossegue Gavião Filho — “se entre as medidas alternativas não existe uma que, com o mesmo grau de idoneidade para alcançar o fim que a medida escolhida ou a ser escolhida promove, intervenha com intensidade de menor grau em outro ou em outros direitos na colisão”[166], o que implica aferir tanto “a idoneidade equivalente ou maior das medidas alternativas para a promoção do fim imediato”[167] (“medida alternativa, que promove o fim exigido por um direito fundamental igual ou mais, melhor, mais rápido, com mais eficiência e maior segurança”[168]) quanto “a escolha da medida com menor grau de intensidade de intervenção nos direitos fundamentais ou bem jurídicos coletivos constitucionalmente protegidos”[169] (perscruta-se “se não existe, [d]entre as medidas consideradas idôneas, uma que não restrinja posições jurídicas fundamentais prima facie de direitos fundamentais ou bem [sic] jurídicos coletivos constitucionalmente protegidos ou, senão isso, que o faça em grau inferior que todas as outras”[170]).
Para Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, na seara do subcritério da necessidade (Erforderlichkeit), verifica-se se existe medida alternativa menos gravosa ao “titular do direito que sofre a limitação de seu direito fundamental”[171] e de “eficácia semelhante ao meio escolhido pela autoridade estatal”[172] (“o meio menos gravoso deve ser adequado da mesma forma que o meio mais gravoso escolhido pela autoridade e que todos os demais (possíveis e adequados) meios menos gravosos que o escolhido pela autoridade estatal”[173]).
Humberto Ávila separa em duas etapas a aplicação do critério da necessidade: “em primeiro lugar, o exame da igualdade de adequação dos meios, para verificar se os meios alternativos promovem igualmente o fim”[174], “em segundo lugar, o exame do meio menos restritivo, para examinar se os meios alternativos restringem em menor medida os direitos fundamentais colateralmente afetados”[175].
Em textos doutrinários pátrios relativos ao subprincípio da necessidade[176], acolhe-se, por vezes, a ensinança do constitucionalista português Joaquim José Gomes Canotilho de que a dimensão da necessidade (denominada de “princípio da exigibilidade”[177] pelo Mestre de Coimbra) abrange a exigibilidade material (“o meio deve ser o mais ‘poupado’ possível quanto à limitação dos direitos fundamentais”[178]), a exigibilidade espacial (“aponta para a necessidade de limitar o âmbito da intervenção”[179]), a exigibilidade temporal (“pressupõe a rigorosa delimitação no tempo da medida coativa do poder público”[180]) e a exigibilidade pessoal (“a medida se deve limitar à pessoa ou pessoas cujos interesses devem ser sacrificados”[181]).
Essa formulação de origem germânica do critério da necessidade se aproxima, em essência, do conteúdo do princípio da razoabilidade extraído por Rui Barbosa da jurisprudência dos Estados Unidos e do Reino Unido do século XIX e início do século XX, ao defender a possibilidade de que seja regular e justificável a interdição ilimitada e prevista em contrato da liberdade de comércio ou de indústria, quando unicamente de cunho temporal, ou quando unicamente de caráter espacial, considerando irrazoável (não razoável, sem razão ou irracional[182]) a interdição perpétua e universal de jaez temporal e, ao mesmo tempo, espacial[183] (§§ 278, 279, 282 e 284):
“[…] No sistema a que chamaríamos continental, por ser o predominante entre as nações do continente europeu, se estabeleceu um critério definido e seguro para a declaração da validade ou nulidade nessas convenções, anulando-se absolutamente as que encerrarem uma interdição de liberdade comercial ou industrial, ilimitada quanto ao território e quanto à durabilidade. O magistrado não pode aceitar como subsistente a proibição, posta ao cedente, de reexercer, no comércio ou na indústria, certo gênero de atividades, senão quando essa proibição tiver limites de lugar ou tempo. […]
[…] pode-se discutir sobre a subsistência ou insubsistência da interdição, quando ela for ilimitada quanto ao tempo ou quanto ao lugar; mas a sua nulidade é inquestionável, se a estipulação for ilimitada quanto ao lugar e quanto ao tempo. […]
[…] Em última análise, não se trata senão de reunir numa só palavra a dupla ausência de limites quanto à duração e ao território nas obrigações desta natureza. É unreasonable a interdição, porque irrestrita quanto ao tempo e ao espaço. […]”[184]
Com o fito de robustecer seu entendimento, abeberou-se — rememora-se — em precedentes britânicos e estadunidenses[185] (§§ 278 a 300).
Colheu (§279) da obra de Edmund H. T. Snell intitulada “The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners” (à época reeditada por Archibald Brown e publicada em Londres pela Editora Stevens & Haynes)[186] precedentes da jurisprudência inglesa a reconhecerem a nulidade de “contratos de interdição geral de um comércio”[187], salvo se “a interdição, sendo limitada, como a de não exercer alguém certo comércio em determinado lugar ou por tempo razoável”[188]. Posto de outro modo: a teor dessa corrente de pensamento, afigura-se válido contrato de interdição de comércio, “se bem que ilimitado quanto ao espaço [Nordenfelt v. Maxim Co., Limited, 1894, A. C. 535[189]], ou, até, quando ilimitado quanto ao tempo [Haynes v. Doman, 1899, 2 Ch. 13[190]], supondo-se sempre que seja razoável nas circunstâncias de um e outro caso”[191].
No entanto, o jurista baiano pondera (§ 280) que o critério adotado à época na Inglaterra (primeira metade da década de 1910) deixava de ser meramente de cunho temporal e/ou espacial, à medida que se disseminava naquela jurisprudência o parâmetro da razoabilidade (conjugado com a análise da abrangência territorial da proibição ao exercício do comércio):
“Não há negar, porém, que, ultimamente, em Inglaterra, o critério dominante nesta apreciação não está nem no tempo nem no espaço, mas na reasonableness, na razoabilidade, ou não razoabilidade, que a interdição convencionada apresentar. “A pedra de toque, a que primeiro há de recorrer o tribunal, é a da razoabilidade (reasonableness), e, para solver a questão da responsabilidade, é que terá de apreciar a extensão territorial abrangida na interdição.” (Americ. and Engl. Encyclop. of Law, v. XXIV, p. 845, not. 6, in fine, e p. 850, n.º 4, in fine.) […]
[…] Como se vê, em última análise, a questão da razoabilidade se resolve, afinal, justamente na do tempo e espaço, que limitam a interdição.” [192]
Nesse contexto, para se aquilatar se determinada interdição na liberdade comercial de âmbito territorial e temporal seria razoável, Rui Barbosa traz a lume (§§ 280 e 285) baliza pretoriana que muito recorda o princípio parcial da necessidade ou da exigibilidade de matriz alemã (a necessidade, na abordagem alemã — lembra Afonso da Silva — verifica se dado “ato estatal que limita um direito fundamental é somente necessário caso a realização do objetivo perseguido não possa ser promovida, com a mesma intensidade, por meio de outro ato que limite, em menor medida, o direito fundamental atingido”[193]) quanto à proibição de excesso (no sentido de que — alumia Paulo Bonavides — “a medida não há de exceder os limites indispensáveis à conservação do fim legítimo que se almeja”[194]):
“Os tribunais (diz Wharton Beall na sua monografia sobre a Restraint of Trade) têm adotado todos a regra estabelecida, no caso Horner v. Graves, pelo juiz Tindal. Essa regra consiste em se verificar se a interdição não vai além do necessário para assegurar proteção razoável aos interesses da parte, a favor de quem se estipulou, sem contrariar os do público em geral: “Wether the restraint is such only to afford a fair protection to the interest of the party in favor of whom it is given, and not so large as to interfere with the interests of the public.” (Am. and Engl. Encycl. of Law, codem loco.)
Se a interdição exceder os limites da proteção devida ao cessionário, não pode trazer legítima vantagem a ele nem ao público: será, então, meramente opressiva, e, sendo opressiva, aos olhos da lei não é razoável. “Whatever restraint is larger than the necessary protection of the party can bem of no benefit to either; it can only be oppressive; and, if oppresive, it is in the eye of the law, unreasonable.” (Ib., p. 850-51.) (1) […]
[…] Basta, pois, que não seja razoável, isto é, basta que seja excessiva a extensão do território abarcada na interdição de comerciar, para que o contrato incorra na taxa de não razoável, e, como tal, se haja por vão, caduco, inexistente”.[195]
Destarte, Rui Barbosa invoca, sob a rubrica da razoabilidade, traço característico ao critério da necessidade de raiz alemã, isto é, a vedação ao exercício de direito além do indispensável à adequada proteção do interesse do titular do direito.
Em que pese tenha se abeberado na construção jurisprudencial anglo-saxônica em torno do princípio da razoabilidade, Rui Barbosa, fiel à mentalidade jurídica de sua época, ressalva (§ 282) que não se poderia no ordenamento jurídico brasileiro, filiado ao sistema romano-germânico, “confiar aos tribunais o arbítrio de validarem ou anularem contratos, em que forem interessadas liberdades como a do comércio e a da indústria, deixando-os à sua apreciação discricionária, sob um critério absolutamente opinativo”[196] — continua — “como o de serem, ou não, razoáveis esses contratos, seria uma transplantação desastrosa”[197].
Em similar sentido, também como reflexo da visão jurídica da primeira metade do século XX, Miguel Seabra Fagundes repudiara a aplicação, no Brasil e inspirada na experiência forense do Estados Unidos, do controle judicial da razoabilidade dos atos administrativos:
“O território jurídico da apreciação da legalidade é muito restrito, em nada podendo obstar a ação eficiente das comissões, desde que contida na órbita legal. Só nas hipóteses de incompetência, desvio de finalidade etc. é que o Judiciário as poderia conter, porém aí, como é claro, em defesa da ordem jurídica.
É descabido, em desabono do que dizemos, o exemplo norte-americano. Nos Estados Unidos, como já tivemos ocasião de observar, o juiz, analisando a razoabilidade dos atos administrativos, exerce jurisdição plena e não de simples legalidade, penetra no mérito do procedimento da Administração, vincula-a ao seu critério administrativo. Aqui nunca se deu nem se pode dar tal ingerência, que entre os americanos decorre da cláusula do due process of Law”.[198]
Entretanto, da alvorada desses estudos pioneiros de Rui Barbosa e Miguel Seabra Fagundes até os dias hodiernos, o cenário judicial brasileiro se alterou de forma significativa. Hoje já não se discute a possibilidade jurídica do nosso Poder Judiciário aplicar o princípio da razoabilidade, e sim se a jurisprudência do órgão de cúpula da Justiça pátria, de fato, vale-se do princípio da proporcionalidade ou se adstringe a realizar “um apelo à razoabilidade”[199], de modo que a pesquisa de Rui Barbosa sobre a razoabilidade se insere em uma questão jurídica em voga no Direito brasileiro, que é, justamente, a análise comparativa entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade e o exame da interação entre as dimensões da razoabilidade e da proporcionalidade.
3. A proibição de limitações geográficas à fixação de drogarias e farmácias, à luz da jurisprudência do supremo tribunal federal
Rui Barbosa, ao repelir as interdições perpétuas e universais da liberdade de empresa e de concorrência de cunho simultaneamente temporal e espacial (previstas, in casu, em contratos de alienação de estabelecimentos comerciais e industriais), denota-se em harmonia com o princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica.
Consectária do princípio fundamental da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, in fine c/c art. 170, caput, todos da Constituição Federal de 1988)[200] — o qual, por sua vez, decorre da própria liberdade humana[201] (art. 5º, caput, da CF/88) —, a liberdade de iniciativa econômica (também chamada de liberdade econômica[202]) encastoa-se no art. 170, parágrafo único, da CF/88 (“É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”[203])[204], e abrange (a) a liberdade de empresa (desdobrada nas liberdades de contrato — art. 421 do Código Civil de 2002 —, de indústria e de comércio), (b) a liberdade de concorrência[205], a igualmente denominada livre concorrência[206] (art. 170, inciso IV, da CF/88), e (c) “a proteção da propriedade privada”[207] (art. 5º, caput e incisos XXII e XXIX, c/c art. 170, inciso II, todos da CF/88).
A fim de que seja legítima — pontua José Afonso da Silva —, a liberdade de iniciativa econômica deve promover a existência digna de todos, consoante os preceitos da justiça social[208], em decorrência — infere-se — do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da CF/88). Nesse sentido, cumpre ao Estado prevenir e reprimir condutas dos setores público e privado a sufocarem o lícito funcionamento de empresas (atividade desempenhada por intermédio de empresários e empresárias em nome individual, bem assim de sociedades empresárias[209]), sobretudo quando se obsta ou dificulta a existência e “a expansão das pequenas iniciativas econômicas”[210].
Corolária da liberdade de iniciativa econômica, a liberdade de concorrência, explica Eros Roberto Grau, abarca (a) o direito de “conquistar a clientela, desde que não [seja] através de concorrência desleal”[211], (b) a “proibição de formas de atuação que deteriam a concorrência”[212] e (c) a “neutralidade do Estado diante do fenômeno concorrencial, em igualdade de condições dos concorrentes”[213]. Na óptica de João Bosco Leopoldino da Fonseca, a liberdade de concorrência, no contexto do capitalismo contemporâneo, consiste em meio para se atingir o “equilíbrio entre os grandes grupos e um direito de estar no mercado também para as pequenas empresas”[214].
Almejando salvaguardar a livre iniciativa, o ordenamento jurídico pátrio proíbe tanto a concorrência feita com abuso de poder (plasmada na infração da ordem econômica — objeto do ramo jurídico conhecido por Direito Antitruste[215] ou Direito Concorrencial[216], que possui como principal diploma legislativo a Lei n. 8.884, de 11 de junho de 1994, a Lei Antitruste —, a afetar “as estruturas do livre mercado”[217], por meio da dominação dos mercados[218], da eliminação da concorrência[219] e do aumento arbitrário dos lucros[220] — dicção do art. 173, § 4º, da CF/88[221]) quanto a concorrência desleal (a concorrência desleal prejudica somente o interesse “do empresário diretamente vitimado pela prática irregular”[222], ao passo que a infração de ordem econômica, ao lesionar as bases do economia de mercado, alcança “universo muito maior de interesses juridicamente relevantes”[223]), a qual se subdivide, ensina Fábio Ulhoa Coelho, em concorrência desleal específica (“sancionada civil e penalmente”[224], concernente à “violação de segredo de empresa” e à “indução de consumidor em erro”[225]) e genérica (“sancionada apenas no âmbito civil”[226]).
Veda-se não apenas a concorrência ilícita (bifurcada — repisa-se — na infração da ordem econômica e na concorrência desleal) como também a interveniência de órgãos e entidades estatais na ordem econômica, se afrontosa ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, da CF/88), ou seja, é defesa a intervenção do Estado no domínio econômico, caso essa atuação se volte, salienta Walber de Moura Agra, ao “favorecimento de uma empresa ou de uma atividade em detrimento de outra”[227] (a menção ao princípio da impessoalidade, nesse contexto, foi achega nossa ao pensamento de Agra).
Na seara das infrações da ordem econômica, existe a concentração e a colusão. Enquanto na concentração “empresas passam a submeter-se à mesma direção econômica com ou sem perda de autonomia jurídica”[228], na colusão horizontal há acordos (orais inclusive) somente entre “empresários situados no mesmo estágio de produção e circulação econômica (por exemplo, industriais concorrentes em situação concertada)”[229], e na colusão vertical existem acordos entre “empresários situados em estágios diferentes da produção e circulação econômica (por exemplo: fornecedor e distribuidores em atuação concertada)”[230].
Caracterizam, pois, a colusão horizontal as circunstâncias versadas por Rui Barbosa, concernentes às interdições contratuais perpétuas e universais à liberdade de concorrência entre sociedades empresárias que atuam no mesmo estágio de produção e circulação econômica. Por outro lado, a ordem econômica também é alvejada quando tal interdição, em vez de estipulada em contrato, é realizada por diploma legislativo.
É o que demonstra a jurisprudência da Corte Suprema brasileira. Explica-se: o Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal, em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP (Relator para o acórdão, Ministro Maurício Corrêa), aos 4 de junho de 1998, considerou inconstitucional norma legal municipal (art. 1º da Lei n. 10.991, de 13 de junho de 1991, do Município de São Paulo — SP[231]) a impor limitação geográfica (fixação de distância mínima) para o estabelecimento de farmácias e drogarias[232], ao reputar tal ato legislativo ofensivo ao princípio da livre iniciativa e deletério à ordem consumerista.
Em outras palavras, no referido decisum, o Pretório Excelso, vencido o voto do Ministro-Relator Carlos Velloso em face da divergência aberta (ainda quando o processo tramitava na Segunda Turma) pelo voto do Ministro Maurício Corrêa, esplendeu que tal restrição geográfica “induz à concentração capitalista, em detrimento do consumidor, e implica cerceamento do exercício do princípio constitucional da livra concorrência, que é uma manifestação da liberdade de iniciativa econômica privada”[233].
O voto condutor, pronunciado pelo Ministro Maurício Corrêa, ao vislumbrar tal diploma legislativo paulistano como meio de fomento à concentração capitalista, ressaltou que a medida legislativa sub examine, ao tolher a livre concorrência, garante, no perímetro em que fora interditada a criação de nova farmácia ou drogaria, o lucro do estabelecimento já situado em tal área, ao mesmo tempo que empecilha o acesso do consumidor local a melhores preços:
“[…] A limitação geográfica imposta à instalação de drogarias somente conduz à assertiva de concentração capitalista, assegurando, no perímetro, o lucro da farmácia já estabelecida. Dificulta o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio da liberdade de iniciativa econômica privada garantida pela Carta Federal quando estatui que “a lei reprimirá o abuso de poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”. (art. 173, § 4º).”[234]
O Ministro Nelson Jobim destacou a incompetência dos Municípios para editarem leis que invadam a seara das infrações da ordem econômica (além de consubstanciar matéria disciplinada em diploma legislativo federal, a mencionada Lei n. 8.884/1994, Capítulo II, arts. 20 a 21, trata-se de questão pertinente ao Direito Econômico, competência legislativa não municipal e concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal — art. 24, inciso I, da CF/88), e, a par disso, rutilou que a norma municipal em liça fere a livre concorrência e o livre mercado:
“[…] Na verdade, a livre concorrência é assegurada sem a reserva de espaços públicos, mas o exercício legítimo da livre concorrência é fiscalizado a partir das regras da Lei nº 8.884, que disciplina as infrações à ordem econômica, que são as operações que possam fazer as partes, ou seja, os comerciantes, no sentido de estabelecimento de oligopólios e cartéis.
Veja V. Exa. que o art. 20 define essa infração dizendo:
“Art. 20. Constituem infração da ordem econômica, independentemente de culpa, os atos sob qualquer forma manifestados, que tenham por objeto ou possam produzir os seguintes efeitos, ainda que não sejam alcançados: (…)
II – dominar mercado relevante de bens ou serviços;”
Creio que a legislação municipal extrapolou a sua área de abrangência. Não diz respeito a uso de solo urbano, nem a zoneamento, que é da competência efetiva do Município, mas às regras que pretendem disciplinar, na área urbana, o exercício de uma atividade a partir de pressupostos da concorrência.
Essa norma fere o dispositivo constitucional da livre concorrência, e nossas preocupações em relação a um sistema de livre mercado, que seja legítimo, estão exatamente nos instrumentos de proteção da concorrência, traduzidos basicamente no Código de Defesa do Consumidor e na legislação que coíbe os abusos da ordem econômica.”[235]
Mesmo entendimento foi reiterado pelo Pleno do Pretório Excelso no Recurso Extraordinário n. 199517/SP (Relator, Ministro Maurício Corrêa), também julgado aos 4 de junho de 1998 e assim sumulado:
“EMENTA: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. ARTIGO 1º DA LEI Nº 6.545/91, DO MUNICÍPIO DE CAMPINAS. LIMITAÇÃO GEOGRÁFICA À INSTALAÇÃO DE DROGARIAS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A limitação geográfica à instalação de drogarias cerceia o exercício da livre concorrência, que é uma manifestação do princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica privada (CF/88, artigo 170, inciso IV e § único c/c o artigo 173, § 4º). 2. O desenvolvimento do poder econômico privado, fundado especialmente na concentração de empresas, é fator de limitação à própria iniciativa privada à medida que impede ou dificulta a expansão das pequenas iniciativas econômicas. 3. Inconstitucionalidade do artigo 1º da Lei nº 6.545/91, do Município de Campinas, declarada pelo Plenário desta Corte. Recurso extraordinário conhecido, porém não provido.”[236]
O paradigmático precedente do Recurso Extraordinário n. 193749/SP restou invocado pelo Ministro-Relator Gilmar Mendes à fl. 153[237] dos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2327/SP, ao proferir o voto condutor daquele julgamento. Ao ementar tal acórdão, consignou-se que o delineamento de “distância mínima para a instalação de novas farmácias e drogarias”[238] ofende o “princípio constitucional da livre concorrência”[239].
Porém, no caso da alienação de estabelecimento empresarial, o alienante — registra Fabio Ulhoa Coelho — “não pode restabelecer-se na mesma praça, concorrendo com o adquirente, no prazo de 5 anos seguintes ao negócio”[240], salvo autorização expressa, na exata inteligência do art. 1.147 do Código Civil de 2002. Observe-se que não se trata de interdição perpétua, porém temporária. Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery vislumbram tal interdição temporária à refixação de estabelecimento empresarial como consequência do princípio da boa-fé objetiva:
“É decorrência da cláusula geral de boa-fé objetiva (CC 422), expressão da função social do contrato e da base do negócio jurídico (CC 421), a circunstância que impede o alienante do estabelecimento de exercer concorrência ao adquirente, prevalecendo-se de sua anterior atividade empresária no referido estabelecimento. A venda de farmácia, por exemplo, faz com que todo o estabelecimento empresarial (ponto, aviamento, clientela etc.) seja transferido ao adquirente, de modo que o vendedor não pode abrir comércio semelhante ao adquirente, tomando-lhe a clientela, o aviamento etc. Isto porque quem vende estabelecimento tem o dever de agir (boa-fé objetiva) de conformidade com o que o comprador dele espera: entrega completa do estabelecimento empresarial, com o dever de não lhe fazer concorrência. A norma do CC 1147 caput está em conformidade com as do CC 421 e 422. […]”[241]
Conclusão
1 No Brasil, mostra-se expressiva a quantidade de trabalhos monográficos publicados em formato de livros-texto e dedicados especificamente ao princípio da proporcionalidade e/ou ao princípio da razoabilidade, elenco a abranger as mais diversas áreas e temáticas jurídicas, a exemplo da Teoria Geral do Direito, do Direito Constitucional, da Teoria dos Direitos Fundamentais, do Direito Administrativo, do Direito Ambiental, do Direito Tributário, do Direito de Trânsito, do Direito do Consumidor, do Direito Penal, do Direito Processual Civil e do Direito Processual Penal.
2 Na dogmática jurídica brasileira contemporânea, nota-se considerável diversidade de pensamento quanto às distinções e semelhanças entre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Há correntes doutrinárias que consideram ambos os princípios possuidores do mesmo conteúdo essencial, apesar das origens geográficas e culturais distintas. Há correntes doutrinárias que os distinguem tendo em vista a forma diversa como foram moldados em face dos diferentes sistemas jurídicos em que se forjaram. Há correntes doutrinárias que inserem o princípio da razoabilidade dentro do campo de incidência do princípio da proporcionalidade. E há correntes doutrinárias que encaixilham o princípio da proporcionalidade no interior do princípio da razoabilidade.
3 Serve de achega a esse debate o trabalho intitulado As cessões de clientela e a interdição de concorrência nas alienações de estabelecimentos comerciais e industriais, sobejamente lastreado na jurisprudência anglo-saxônica do final do século XIX e início do século XX, constante do tomo I do volume XL (correspondente ao ano de 1913) das Obras Completas de Rui Barbosa, originalmente redigido sob a forma de memorial forense.
4 No referido memorial forense (§ 278), Rui Barbosa considera justificável a limitação temporal e espacial à liberdade comercial, desde que não seja uma “interdição perpétua e universal”, uma vez que, nesse caso, significaria a “abdicação da liberdade e personalidade humana, que o direito não a pode sancionar”. Esteado em tal premissa, infere (§ 301) a “nulidade jurídica dos contratos de cessão de clientela, ainda mesmo expressos, quando sem limites de tempo e espaço”.
5 Compulsando-se tal memorial alinhavado por Rui, percebe-se o pioneirismo do estadista baiano em se debruçar, na primeira metade da década de 1910, sobre questões jurídicas que se tonariam, mormente a partir de década de 2000, aspecto central do debate jurídico brasileiro, mormente na seara do Direito Constitucional e da Teoria dos Direitos Fundamentais. Mais do que isso: por meio do estudo ruiano, percebe-se a possibilidade de diálogo entre a dimensão da necessidade do princípio tridimensional da proporcionalidade (matriz alemã) e o princípio da razoabilidade (matriz anglo-saxônica).
6 A formulação de origem germânica do critério da necessidade se aproxima, em essência, do conteúdo do princípio da razoabilidade extraído por Rui Barbosa da jurisprudência dos Estados Unidos e do Reino Unido do final século XIX e início do século XX, ao defender a possibilidade de que seja regular e justificável a interdição ilimitada e prevista em contrato da liberdade de comércio ou de indústria, quando unicamente de cunho temporal, ou quando unicamente de caráter espacial, considerando irrazoável (não razoável, sem razão ou irracional) a interdição perpétua e universal de jaez temporal e, ao mesmo tempo, espacial (§§ 278, 279, 282 e 284).
7 Rui colheu (§§ 279) da obra de Edmund H. T. Snell intitulada “The Principles of Equity: intended for the use of students and of practitioners” precedentes da jurisprudência inglesa a reconhecerem a nulidade de “contratos de interdição geral de um comércio”, salvo se “a interdição, sendo limitada, como a de não exercer alguém certo comércio em determinado lugar ou por tempo razoável”. Posto de outro modo: afigura-se válido contrato de interdição de comércio, “se bem que ilimitado quanto ao espaço [Nordenfelt v. Maxim Co., Limited, 1894, A. C. 535], ou, até, quando ilimitado quanto ao tempo [Haynes v. Doman, 1899, 2 Ch. 13], supondo-se sempre que seja razoável nas circunstâncias de um e outro caso”.
8 No entanto, o jurista baiano pondera (§ 280) que o critério adotado à época na Inglaterra (primeira metade da década de 1910) deixava de ser meramente de cunho temporal e espacial, à medida que se disseminava naquela jurisprudência o parâmetro da razoabilidade (conjugado com a análise da abrangência territorial da proibição ao exercício do comércio).
9 Nesse contexto, para se aquilatar se determinada interdição na liberdade comercial de âmbito territorial e temporal seria razoável, Rui Barbosa traz a lume (§§ 280 e 285) baliza pretoriana que muito recorda o princípio parcial da necessidade ou da exigibilidade de matriz alemã quanto à proibição de excesso, isto é, a vedação ao exercício de direito além do indispensável à adequada proteção do interesse do titular do direito.
10 Rui Barbosa, ao repelir as interdições perpétuas e universais da liberdade de empresa e de concorrência de cunho simultaneamente temporal e espacial (previstas, in casu, em contratos de alienação de estabelecimentos comerciais e industriais), denota-se em harmonia com o princípio constitucional da liberdade de iniciativa econômica.
11 Na esteira, menciona-se, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal desenvolvida com alicerce no paradigmático acórdão em sede do Recurso Extraordinário n. 193749/SP (Relator para o acórdão, Ministro Maurício Corrêa), de 4 de junho de 1998, o qual julgou inconstitucional norma legal municipal a impor limitação geográfica (fixação de distância mínima) para o estabelecimento de farmácias e drogarias, ao reputar tal ato legislativo ofensivo ao princípio da livre iniciativa e deletério à ordem consumerista.
12 No plano infraconstitucional também se extrai (a contrario sensu) vedação à interdição perpétua, na medida em que o art. 1.147 do Código Civil de 2002 veda ao alienante de estabelecimento empresarial fazer concorrência ao adquirente “nos cinco anos subsequentes à transferência” (grifo nosso), ou seja, proíbe-se por prazo certo, e não de forma ilimitada.
Informações Sobre o Autor
Hidemberg Alves da Frota
Agente Técnico-Jurídico do Ministério Público do Estado do Amazonas. Pesquisador em Direito.