Resumo: A psicopatia é considerada um transtorno de personalidade; o psicopata nem sempre virá a ser um assassino em série, bem como nem todos os assassinos em série podem ser considerados psicopatas. O presente trabalho busca elucidar de que forma os assassinos em série diagnosticados como portadores de psicopatia são punidos dentro do sistema penal brasileiro, mencionando as penas possivelmente aplicadas, questões de imputabilidade penal e qual seria uma alternativa hábil para penalizar tais criminosos. Atualmente, são considerados imputáveis ou então semi-imputáveis, conforme o disposto no artigo 26 do Código Penal Brasileiro. Porém será demonstrado que os psicopatas são indivíduos que não possuem senso ético; apesar de conhecerem as normas, saberem o que é certo e errado, agirão conforme seu desejo, não se importando de que forma seus atos atingirão as pessoas a sua volta. O estudo foi feito por meio de revisão bibliográfica, utilizando opiniões convergentes e divergentes de diversos autores. Ao final, se percebe que é imprescindível a criação de normas que regularizem a punição de psicopatas, ou programas específicos envolvendo profissionais capacitados para lidar com portadores de tal transtorno.
Palavras-chave: Psicopatia. Homicida em Série. Direito Criminal. Sanção Penal.
Abstract: Psychopathy is considered a personality disorder; the psychopath will not always be a serial killer, and not all serial killers can be considered psychopaths. This study aims to elucidate how serial killers diagnosed with psychopathy are punished in the Brazilian penal system, citing the possible penalties applied, criminal liability issues and what would be a clever alternative to penalize such criminals. Currently, they are considered attributable or so semi-attributable, as Article 26 of the Brazilian Penal Code. But it will be shown that psychopaths are individuals who have no ethical sense; despite knowing the rules, they know what is right and wrong, will act as your desire, not caring how their actions will reach people around you. The study was done through literature review, using convergent and divergent opinions of various authors. At the end, you realize that it is essential to the creation of standards to regularize the punishment of psychopaths, or programs involving qualified professionals to deal with people with such disorders.
Keywords: Psychopathy. Serial Murderer. Criminal Law. Criminal Sanctions.
Sumário: 1-Introdução 2-Procedimentos Metodológicos 3-Entendendo a Psicopatia 3.1- Diagnóstico da Psicopatia. 3.2- Psicopatia e Homicídio em Série 4-Psicopatas Homicidas e o Direito Penal 4.1- Culpabilidade. 4.2- Imputabilidade 4.2.1- Das Sanções Penais 5-Qual o Tratamento Adequado Considerações Finais. Referências.
1. Introdução
“De todas as criaturas já feitas, o homem é a mais detestável. De toda criação ele é o único, o único que possui malícia. São os mais básicos de todos os instintos, paixões, vícios – os mais detestáveis. Ele é a única criatura que causa dor por esporte, com consciência de que isso é dor.” MARK TWAIN
O presente trabalho consiste em um estudo acerca da psicopatia, elencando as características pertinentes à personalidade do psicopata homicida/ assassino em série, em razão de seu elevado grau de maldade e desprezo pela vida de outrem, bem como o risco que apresenta ao meio social no qual está inserido.
Ainda, versa sobre os mecanismos que podem ser utilizados pelo Estado para punir assassinos em série diagnosticados como portadores de psicopatia, visto que, em não havendo norma específica versando sobre o assunto, podem ser tidos como criminosos “normais”, totalmente imputáveis e passíveis de cumprir pena privativa de liberdade, ou ainda, em outros casos, podem ser considerados semi-imputáveis, então submetidos à medida de segurança ou tendo sua pena diminuída conforme disposto no parágrafo único do artigo 26 do Código Penal Brasileiro[1].
Entretanto, como será explanado, a psicopatia não guarda relação com desenvolvimento mental incompleto ou retardado, ou com perturbação mental que faça com que o indivíduo perca a capacidade de compreender o caráter ilícito de seus atos, condição apresentada no citado dispositivo legal. É possível se extrair de jurisprudências[2] buscadas ao longo do tempo que levou a presente pesquisa, que tomam a psicopatia por doença ou deficiência mental. Porém, psicopatas entendem completamente a ilegalidade, imoralidade, periculosidade e a possível punição que seus atos podem acarretar, porém isso não os impede de cometê-los. Eles não se intimidam, não se importam em ser punidos, e é muito provável que façam novamente, pois são incapazes de absorver experiências e mudar seu comportamento por meio de punições. Caso seja preso, a partir do momento em que for posto em liberdade, há grandes chances de se tornar reincidente.
Dito isto, surge o problema que ensejou a presente pesquisa: sabe-se que a psicopatia é um transtorno de personalidade, que apesar de ser tratado e amenizado, não tem cura. Sabe-se, ainda, que nem todos os psicopatas são assassinos, entretanto, grande parte dos homicidas em série possuem perfil psicopatológico, e pessoas com esse transtorno possuem, dentre outras características, a ausência do medo de ser capturado e a incapacidade de mudar por meio de experiências e punições. Levando em consideração a ausência de norma que regule a penalização de crime cometido por tais indivíduos, pergunta-se: de que maneira o psicopata homicida é punido no âmbito do sistema penal brasileiro e qual seria a forma adequada de punir tais indivíduos?
Desta forma, o objetivo geral deste estudo é analisar a imputabilidade e a consequente aplicação de sanções penais para crimes praticados por homicidas seriais diagnosticados como portadores de psicopatia, na esfera penal brasileira. Para alcançar o objetivo geral, os objetivos específicos estabelecidos foram: estabelecer o conceito de psicopata e suas particularidades, diferenciando os psicopatas homicidas em série dos homicidas “comuns”; analisar as sanções penais aplicadas pela atual Justiça Brasileira ao psicopata homicida em série; e, por fim, verificar a existência de propostas alternativas voltadas a punir psicopatas homicidas em série.
O trabalho está dividido, portanto, em três capítulos, o primeiro tratando da psicopatia, onde é explanado o conceito de tal transtorno, de que forma é diagnosticado atualmente, demonstrando ao longo do texto as opiniões divergentes de autores no que tange à caracterização da psicopatia como um transtorno de personalidade antissocial. Feito isto, dar-se-á ênfase aos psicopatas criminosos, especificamente os homicidas em série, desde o conceito dado pela doutrina até seu modus operandi, buscando diferenciá-los dos homicidas “comuns”, no que tange a sua personalidade e motivações para o crime.
No segundo capítulo, após breve conceituação de imputabilidade, culpabilidade e afins, abordar-se-á a forma com a qual os psicopatas homicidas em série são punidos atualmente dentro do sistema penal brasileiro. Sabe-se que, pela ausência de norma específica que regule a punibilidade de tais indivíduos, por certo que lhes é dispensado o mesmo tratamento que recebem criminosos “comuns”. Desta forma, no trabalho é feita uma análise das possíveis sanções penais aplicadas aos homicidas em série (diminuição de pena, medida de segurança), quando diagnosticados como portadores da psicopatia, demonstrando também as opiniões de doutrinadores em relação a este quadro.
Posteriormente, no terceiro e último capítulo, apresenta-se uma ideia do que poderia vir a ser um sistema de tratamento adequado a tratar e punir psicopatas criminosos.
A importância do presente estudo reside na questão da necessidade de normas que regulem a penalização do psicopata criminoso, neste trabalho especificamente se fala do psicopata homicida, porém é imperativo entender que o psicopata que comete crimes é uma ameaça à sociedade e por este motivo precisa ser afastado do convívio com outras pessoas. A escolha do tema justifica-se pela relevância social que apresenta, haja vista que o psicopata homicida apresenta grande risco ao círculo social em que se insere, e o interesse estatal deve estar voltado ao bem estar e segurança da sociedade. Assim, como atualmente não se tem uma regulamentação específica para punir crimes cometidos em tal circunstância, estudos sobre o tema se fazem extremamente importantes.
2. Procedimentos Metodológicos
A realização da presente pesquisa foi baseada em levantamento bibliográfico, em caráter exploratório e descritivo, visto que através da observação das atuais formas de punição dadas aos psicopatas homicidas no Brasil e no mundo, tem-se o objetivo de descrever, explicar, esclarecer e tentar descobrir novas soluções para o problema da punibilidade destes indivíduos no país. A técnica empregada foi pesquisa bibliográfica e documental, utilizando a legislação vigente e doutrinas, bem como artigos, revistas e publicações especializadas, relacionados ao tema.
O método utilizado foi o dedutivo, partindo de uma situação geral para o particular. Tem-se a forma de penalização para os casos de psicopatia de forma geral e através da discussão presente no trabalho, busca-se uma solução a ser aplicada a casos particulares, quais sejam, aqueles envolvendo psicopatas homicidas.
Desta forma, houve breve leitura de diversos trabalhos relacionados à psicopatia e direito penal, entre doutrinas, artigos trabalhos acadêmicos, dissertações e teses; assim foram selecionados os que mais condiziam com o tema e objetivo propostos, e rejeitados aqueles que não se encaixaram em algum dos aspectos buscados para a formulação da pesquisa.
3. Entendendo a Psicopatia
Quando se ouve a palavra “psicopata”, é muito comum pensar nos personagens da ficção, que tanto despertam o interesse do público, como o serial killer Dexter, protagonista do seriado homônimo, que fez enorme sucesso em diversos países por tratar de um tema sobre o qual as pessoas têm grande curiosidade, uma mistura de medo e admiração. Ainda, o famoso Dr. Hannibal Lecter de “O Silêncio dos Inocentes”; ou mesmo psicopatas “reais”, como Charles Manson. Todavia, não se deve confundir psicopata com assassino, pois muitas pessoas, mesmo que diagnosticadas como portadoras de psicopatia, não chegam a cometer crimes.
Antes de adentrar no universo dos homicidas em série, é importante que se entenda o conceito de psicopatia, pois grande parte da sociedade considera psicopatas doentes mentais.
Partindo do viés etimológico, a palavra “psicopata” tem o significado literal de “mente doente”, porém o indivíduo diagnosticado como tal não é considerado demente. Muito pelo contrário; uma pessoa considerada psicopata, apesar de poder desenvolver doenças mentais como qualquer indivíduo “normal”, tem total controle e consciência de seus atos e de seu comportamento.
“Tecnicamente, psicopatas não são legalmente insanos Eles sabem a diferença entre o certo e o errado. São pessoas racionais, muitas vezes altamente inteligentes. Alguns conseguem ser bastante charmosos. Na verdade, o que mais assusta neles é o fato de parecerem tão normais”.[3]
Indivíduos psicopatas podem apresentar grandes dificuldades em se adaptar ao ambiente social em que se insere, por lhe faltarem valores éticos e morais necessários à vida em sociedade. Na opinião de Gomes (1958), citado por Fernandes: [4]
“Os psicopatas são indivíduos que não se comportam como a maioria de seus semelhantes tidos por normais. Têm grande dificuldade em assimilar as noções éticas ou, assimilando-as, em observá-las. Seu defeito se manifesta na afetividade, não na inteligência, que pode às vezes ser brilhante.”
Isto se dá pela ausência de qualquer emoção profunda, a dificuldade em compreender os sentimentos alheios; os sentimentos do psicopata não representam nada além de meios para cumprir fins, que são geralmente vontades e necessidades imediatas.
Esta é a linha de pensamento que segue Michele Abreu, quando considera o seguinte:[5]
“A psicopatia não consiste em uma doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, porque não provoca qualquer alteração na capacidade psíquica do agente. Outrossim, ainda que assim fosse considerada, não teria o condão de retirar do agente a capacidade de conhecer o caráter ilícito dos fatos e de se determinar de acordo com esse entendimento. O psicopata conhece exatamente as normas que regem a sociedade e as suas consequências. Ainda assim, investe no plano premeditado e o pratica até onde lhe parece mais conveniente. Nessas circunstâncias, entendemos que a psicopatia não tem o condão de tornar o agente inimputável.”
O primeiro trabalho tratando sobre o tema foi produzido pelo psiquiatra norte-americano Hervey Cleckley, em 1941. Intitulado The Mask of Sanity (A Máscara da Sanidade), o livro obteve grande repercussão, e incluiu o termo “psicopata” na cultura popular, sendo seu principal objetivo auxiliar em sua detecção e diagnóstico, distinguindo psicopatas de portadores de distúrbios mentais.
Após uma jornada de entrevistas, exames e testes envolvendo pacientes psiquiátricos, percebeu que alguns se comportavam de forma anormal em relação a outras pessoas, principalmente quando observados sob aspectos emocionais, apesar de apresentarem ínfimos sinais de anomalia. Por meio de tal estudo, o psiquiatra chegou à conclusão de que psicopatas não possuem capacidade para entender o significado da vida da forma que pessoas normais vivenciam[6].
Atualmente, pode-se dizer que há três correntes que buscam conceituar a psicopatia. Silva[7] pontua que a primeira delas considera o psicopata um doente mental. E, levando em conta a etimologia da palavra, ora abordada, seria uma teoria bastante adequada. Porém, tem sido duramente refutada por profissionais da psiquiatria forense, os quais afirmam que o psicopata não deve ser comparado com um doente mental, pois não possui diminuição de sua capacidade cognitiva, tendo, assim, plena noção dos atos que pratica e possuindo deficiência apenas no que diz respeito à afetividade e sentimentos como medo ou culpa.
Do ponto de vista do Direito, dizer que o psicopata é um doente mental é dizer que ele de forma alguma compreende o quão ilícitos são seus atos, e, portanto, é totalmente inimputável.
Hércules[8] aponta que os sintomas da psicopatia são mais brandos comparados aos de doenças mentais, logo, não perdem a noção do que é real; ainda faz um comparativo entre psicopatas e psicóticos, afirmando que, enquanto os primeiros apresentam deformações de caráter, temperamento, instintos e afetividade em relação a uma pessoa considerada normal, os últimos mostram sintomas que nunca apareceriam em um ser humano sadio, como alucinações e delírios. Tais indivíduos não perdem o controle sobre seu raciocínio, seu juízo de realidade.
Justamente porque a psicopatia, por si só, não afeta a mente do indivíduo de modo a prejudicar a capacidade de entender as consequências de seus atos, é inadequado considerar que pode ser enquadrada como uma doença mental.
Neste viés, Trindade[9] entende que a psicopatia, ou personalidade psicopática é um termo que permite grande abrangência de “patologias de comportamento”, que não são passiveis de serem inseridas em outras categorias de transtornos ou distúrbios mentais.
A segunda corrente considera que psicopatas são, na realidade, doentes ou loucos morais, visto que não possuem diminuição da inteligência ou capacidade cognitiva. O aspecto defasado em tais indivíduos seria somente o referente ao comportamento, quando relacionado a normas sociais, jurídicas e morais, criando dificuldade para entendê-las e segui-las, o que acarretaria condutas passíveis de reprovação no meio social em que estiver inserido.
Considerando que determinadas condutas podem ser criminosas, quando da punição o psicopata não seria considerado totalmente capaz de compreender a ilicitude de seus atos e, portanto se enquadraria como semi-imputável, tendo, conforme entende Hales[10], a mitigação de sua responsabilidade penal por conta de sua suposta incapacidade de compreender regras jurídicas e morais.
A terceira corrente, mais aceita, considera a psicopatia um transtorno de personalidade, que envolve peculiaridades concernentes à consciência, caráter e à personalidade propriamente dita do indivíduo. Uma condição de desarmonia na formação de sua personalidade[11].
Personalidade é o fator que difere um ser humano de outro, em seu modo de ser, agir e se sentir em relação a si mesmo e às pessoas a sua volta, é o que determina sua individualidade. Para Freud, a personalidade do indivíduo é “constituída” por um esquema que envolve três níveis de estrutura mental, quais sejam, inconsciente, subconsciente e consciente (id, ego e superego)[12].
Em sua obra Medicina Legal, texto e atlas, Hygino de Carvalho Hércules conceitua a psicopatia tomando por base o manual da Sociedade Americana de Psiquiatria (DSM-IV), que além de incorporar o termo “transtorno de personalidade” para se referir a casos de pessoas diagnosticadas como psicopatas, refere-se à psicopatia como: [13]
“Um padrão duradouro de comportamento e experiência interior que difere bastante das expectativas do ambiente cultural do indivíduo, que é dominador e inflexível, que tem início na adolescência ou na juventude, que se mantém estável ao longo do tempo e que causa sofrimento e dificuldades.”
O DSM[14], que atualmente se encontra em sua quinta versão (V), funciona do mesmo modo que a Classificação Internacional de Doenças (CID), neste caso a CID-10, registrando e arquivando as patologias que acometem o comportamento e a saúde mental humanos. A psicopatia está alocada na seção F-60, portanto considerada um “transtorno específico de personalidade”. Os transtornos específicos de personalidade, na CID-10, são entendidos como “perturbação grave da constituição caracterológica das tendências comportamentais do indivíduo, usualmente envolvendo várias áreas da personalidade e quase sempre associado à considerável ruptura pessoal e social”.[15]
Entre tais transtornos, está o de personalidade antissocial, e é neste que a psicopatia se enquadra, juntamente com transtornos amorais, dissociais, associais e sociopáticos, conforme as disposições da CID-10 (F-60.2), apresentando certas particularidades[16], como indiferença insensível pelos sentimentos alheios; irresponsabilidade e desrespeito por normas, regras e obrigações sociais; incapacidade de manter relacionamentos, embora não haja dificuldade em estabelecê-los; baixa tolerância à frustração, atitudes incluindo violência; incapacidade de experimentar culpa e aprender com a experiência, particularmente punição; busca constante em culpar os outros, pelos erros que comete.
Jorge Trindade, em contrapartida, entende que a psicopatia não deve ser considerada como um transtorno de personalidade antissocial (TPAS), apesar de haver, de fato, íntima ligação entre as duas “espécies”. Utilizando-se do entendimento estabelecido no Manual da Escala Hare[17], ele explica que os psicopatas podem se enquadrar todas as características do transtorno de personalidade antissocial, porém nem todas as pessoas diagnosticadas com TPAS preenchem os critérios para a psicopatia[18].
3.1- Diagnóstico da Psicopatia
Por possuir particularidades que, de fato, não se encaixam nas características estabelecidas na CID-10 no que diz respeito a transtorno de personalidade antissocial, a psicopatia necessita de instrumento específico e minucioso capaz de avaliar e diagnosticar se o comportamento de determinado indivíduo pode ou não ser considerado psicopata.
O Manual da Escala Hare, ora citado, surgiu com este propósito. O psicólogo canadense Robert D. Hare, em 1991 criou tal método de avaliação, que demonstra em que grau determinada pessoa apresenta em sua personalidade as vinte características fundamentais de um psicopata, e que só viria a ser traduzido para o português brasileiro e validado no país nos anos 2000. É composto por um “Caderno de Pontuação”, um “Roteiro de Entrevistas e Informações” bem como o “Check-list de Pontuação para Psicopatia”.
A Escala Hare define se o indivíduo é ou não psicopata de acordo com vinte características, que são divididas em dois fatores, um relacionado a traços de personalidade, baseados nos comportamentos interpessoais e emocionais (Fator 1), e o outro ao estilo de vida, que toma como base o comportamento (Fator 2)[19].
“O “Caderno de Pontuação” é um guia de administração e pontuação e contém as instruções e critérios para se proceder a avaliação e pontuação dos itens. A pontuação é feita com base na entrevista semi-estruturada realizada através do “Roteiro de entrevistas e informações” e o indivíduo é avaliado de acordo com vinte itens característicos da psicopatia que poderão ser pontuados de 0 a 2. Pontua-se 0 em situações em que o examinando não apresenta as características avaliadas; 1 se talvez apresente traços e 2 se as características em questão correspondem às apresentadas pelo mesmo.”[20]
Assim, no que tange à característica/s emocionais e interpessoais, psicopatas normalmente apresentam: eloquência e charme superficial[21]; exacerbada autoestima[22]; mentira patológica[23]; vigarice[24]; ausência de remorso Insensibilidade afetiva; falta de empatia e incapacidade de assumir a responsabilidade pelos próprios atos.
Já nos aspectos que dizem respeito ao estilo de vida, a Escala Hare elenca os seguintes itens: tendência ao tédio[25]; estilo de vida parasitário[26]; descontroles comportamentais; problemas precoces de conduta[27]; delinquência juvenil: ausência de planos a longo prazo[28]; revogação de liberdade condicional[29]; irresponsabilidade[30] e impulsividade.
Ainda, são considerados os fatores promiscuidade sexual, versatilidade criminal e relacionamentos de curta duração, que apesar de não estarem inseridos em um ou outro fator propriamente dito, compõem, juntamente com os outros itens, as características que formariam o protótipo do real portador de psicopatia. O indivíduo que, ao final do exame, atingir uma pontuação de 30 ou mais pontos, é considerado psicopata pela escala Hare[31].
A importância de tal diagnóstico reside no fato de que, um indivíduo, quando considerado psicopata, apresenta grandes chances de reincidência criminal[32], pois a característica comum à maioria dos psicopatas é a ausência de aprendizado mediante punições[33]. Assim, o PCL-R mostra sua utilidade para o sistema penal brasileiro, identificando criminosos psicopatas, para que sejam, em tese, encaminhados a um ambiente que lhes dispensará o tratamento adequado.
“Como no Brasil não há pena perpétua nem legislação específica para psicopatas, o PCL-R seria importante para estimar o risco de reincidência dos psicopatas. Nesse aspecto, estabeleceu-se o ponto de corte 23 (vinte e três), tendo sido verificado que, a partir desse ponto, já se manifestam as características prototípicas da psicopatia. Contudo, independente do valor do ponto de corte atribuído, um escore elevado do PCL-R indica maior probabilidade de o indivíduo reincidir na atividade criminosa.”[34] [grifos nossos].
O PCL-R pode também ser associado ao Teste de Rorschach para avaliar a personalidade do indivíduo, neste caso, uma prova complementa a outra. Tal teste consiste em mostrar ao examinado uma sequência de dez lâminas com borrões de tinta, cinco em preto no branco e outras cinco em cores, ao que este vai dizendo a imagem que enxerga em cada lâmina. Ao final, o psicólogo pede para o examinado explicar como viu determinada forma ou imagem na lâmina, avaliando assim as peculiaridades de sua personalidade. Assim como na aplicação do PCL-R, para que seja aplicado o Teste de Rorschach é necessário um profissional treinado e experiente. Ele se mostra bastante eficaz na tarefa de “contextualizar os distúrbios psíquicos, compreender o valor e o significado de um sintoma clínico e orientar para o tratamento mais adequado.” [35]
Assim, percebe-se que psicopatas podem ser violentos e delinquentes, porém nem todo delinquente é psicopata; podem apresentar características de outros transtornos de personalidade e até mentais, porém a psicopatia não pode, por si só, ser considerada doença mental, e nem caracterizada simplesmente como transtorno de personalidade antissocial, pois apresenta grandes peculiaridades e complexidades inerentes somente a ela. Ainda não foi descoberto tratamento eficaz “contra” a psicopatia. Nas palavras de Kerry Daynes:[36]
“Os psicólogos aprenderam que as terapias tradicionais podem ter o efeito indesejado de ensinar os psicopatas a manipular as outras pessoas (uma vez que eles aprendem a dizer o que os outros querem ouvir). Foram publicadas diretrizes específicas para o tratamento desse grupo, que visam persuadir os psicopatas das vantagens que eles obterão se mudarem seu comportamento […].”
A psicopatia não é uma doença, portanto não tem cura. É possível adaptar o tratamento utilizado em outros transtornos de personalidade, porém a eficácia ainda não é comprovada.
3.2- Psicopatia e Homicídio em Série
“Nós, serial killers, somos seus filhos, nós somos seus maridos, nós estamos em toda a parte. E haverá mais de suas crianças mortas no dia de amanhã. Você sentirá o último suspiro deixando seus corpos. Você estará olhando dentro de seus olhos. Uma pessoa nesta situação é Deus!..”. [37]TED BUNDY
O Código Penal[38], no caput do seu artigo 121, tipifica o homicídio simples como a conduta de matar alguém, que acarreta pena de reclusão de seis a vinte anos; pode ainda ser qualificado, e na incidência de alguma qualificadora, a pena mínima cominada aumenta de seis para doze anos, e a máxima de vinte para trinta anos.
Cabe aqui uma rápida conceituação do que seja crime simples e crime qualificado. Em seu livro Manual de Direito Penal, volume I: parte geral, Mirabete e Fabbrini assim entendem:[39]
“Crime simples é o tipo básico, fundamental, que contém os elementos mínimos e determina seu conteúdo subjetivo sem qualquer circunstância que aumente ou diminua sua gravidade. Há homicídio simples (art. 121, caput), furto simples (art. 155, caput) etc.”
Já no tocante a crime qualificado, os autores elucidam que:[40]
“Crime qualificado é aquele em que ao tipo básico a lei acrescenta circunstância que agrava sua natureza, elevando os limites da pena. Não surge a formação de um novo tipo penal, mas apenas uma forma mais grave de ilícito. Chama-se homicídio qualificado, por exemplo, aquele praticado “mediante paga ou promessa de recompensa ou por outro motivo torpe” (art.121,§ 2º, I).”
Quando se escuta, se lê ou se pensa em “psicopata”, logo vêm à mente o termo “assassino em série” ou “serial killer”, já que a sociedade está habituada a ver na mídia a associação da psicopatia a crimes violentos e cruéis, ou mesmo à personagens da ficção, como o já citado Dexter Morgan[41], personagem que ficou famoso pelo seriado de mesmo nome, bem como uma série de livros, onde narra sua rotina de tentar se adaptar ao ambiente de pessoas comuns, mesmo sendo um psicopata assassino em série.
Esta característica do personagem traz à tona um importante traço da personalidade do psicopata homicida em série, a dissociação. Sua capacidade de se envolver com outras pessoas, de se passar por alguém que não é unicamente para alcançar um objetivo mórbido é extremamente relevante para diferenciar um serial killer de um assassino comum. Ilana Casoy destaca que:[42]
“Para parecer uma pessoa normal e misturar-se aos outros seres humanos, o serial killer desenvolve uma personalidade para contato, ou seja, um fino verniz de personalidade completamente dissociado do seu comportamento violento e criminoso. […] Sem esse verniz, serial killers não poderiam viver na sociedade sem ser presos instantaneamente.
O fato de controlar seu comportamento para que isso não aconteça mostra que o criminoso sabe que seu comportamento não é aceito pela sociedade, e que seu verniz social é deliberado e planejado com premeditação. É por esse motivo que a maioria deles é considerada sã e capaz de discernir entre o certo e o errado.”
É importante ter em mente que, mesmo que a personalidade do psicopata apresente características que são “favoráveis” a desencadear comportamentos criminosos, nem todos os psicopatas chegam a cometer crimes; da mesma forma, nem todos os criminosos, ou mesmo homicidas em série podem ser enquadrados como portadores da psicopatia. No tocante aos homicidas, mister esclarecer que os motivos que levam um psicopata a matar alguém guardam diferenças em comparação aos motivos que levam uma pessoa “normal” a matar alguém.
Um assassino em série nem sempre será considerado portador de psicopatia. Os métodos de diagnósticos já abordados ao longo deste trabalho são ferramentas importantes para estabelecer essa diferenciação. Pode-se dizer que há três tipos de assassino em série: o tido como normal, o doente mental (psicótico) e o conhecido como “fronteiriço”, que é o alvo da presente pesquisa, o psicopata[43].
“De acordo com J. Reid Meloy a falta de emoções do psicopata e sua observação predatória podem ser comparadas à frieza dos répteis, que não têm a parte límbica do cérebro, onde residem as memórias, emoções, socialização e instintos paternos. Em outras palavras, serial killers são corretamente descritos como pessoas de “sangue frio”, como os répteis.”[44]
Na busca de uma elucidação para assassino em série, Harold Schechter[45] cita a definição oficial do FBI[46], que conceitua o homicídio em série como “três ou mais eventos separados em três ou mais locais distintos om um período de calmaria entre os homicídios.”
Conceituar um homicida em série pode parecer simples em um primeiro momento, porém se trata de tarefa bastante complexa. Há homicidas que cometem mais de três assassinatos em um espaço de tempo, mas não são considerados seriais; bem como há assassinos que matam somente três vítimas, e são considerados seriais.
O próprio Schechter diverge da conceituação do FBI, explicando:[47]
“Há vários problemas com a definição do FBI. Por um lado, é ampla demais, já que pode se aplicar a tipos homicidas que não são serial killers: os matadores de aluguel, por exemplo […]. Mas nenhum desses tipos corresponde à concepção comum de serial killer. Por outro lado, a definição do FBI é estreita demais, já que especifica que um serial killer tem que cometer seus crimes “em três ou mais locais distintos”. Sem dúvida, alguns serial killers vão longe em busca de suas vítimas. Ted Bundy, por exemplo, assassinou mulheres em sete estados diferentes. Outros, no entanto, preferem fazer seu trabalho sujo em um só lugar. John Wayne Gacy, por exemplo, transformou o porão de sua casa no subúrbio em uma câmara privada de torturas e chegou a se desfazer dos restos mortais de suas vítimas escondendo-as sob o piso de sua casa”. [grifos do autor]
Um criminoso “não-psicopata” ainda que aja de forma típica e antijurídica, possui valores morais que respeita, e comete o crime compelido por algum motivo social relevante, que pode ser pobreza, abuso de álcool ou drogas, violência ou abuso sofridos na infância e adolescência, entre outros[48].
Já o psicopata homicida, neste caso, o serial killer fronteiriço, age por pura crueldade, para sentir que está no poder, não age compelido por nenhuma regra, a não ser a satisfação de seu próprio desejo e o alcance de uma excitação por meio da morte e sofrimento da vítima. Não se baseia em nenhum princípio moral para agir. Grande parte dos homicidas psicopatas atribui a culpa dos crimes às vitimas, ou afirmando que estas foram tolas por confiarem neles, ou demonstrando total frieza e indiferença, dizendo que as vítimas tiveram o que mereceram.
Na realidade, para um psicopata homicida em série, o crime propriamente dito é um aspecto secundário, um complemento de um enredo onde o elemento principal é o sofrimento da vítima, e como este sofrimento o faz se sentir poderoso por estar no comando da situação e eleva sua autoestima.
“[…] a maioria dos serial killers revela-se psicopata. Muitos enganam as pretensas vítimas e as seduzem para áreas onde elas não tenham recursos de resistência. Quando presos, eles enganam os funcionários penitenciários, bem como profissionais de saúde mental, fazendo- os pensar, após certo período de tempo, que eles "aprenderam na sociedade”. Tais decisões conduzem a erros tão graves que custam a vida de novas vítimas. A literatura está repleta de exemplos desse tipo.”[49]
A compreensão de Ilana Casoy, em seu livro Serial Killer: louco ou cruel? reforça a ideia de que a principal diferença entre o psicopata homicida em série e o homicida comum é a motivação, neste caso a falta dela[50].
Tem-se uma ideia da dificuldade de conceituar em que momento assassinatos “comuns” passam a ser considerados em seriais. O criminoso pode matar diversas pessoas em um determinado espaço de tempo e não ser considerado assassino em série, pois a natureza de seus crimes, seu modus operandi [51] ou outra característica fundamental não se “encaixam” ao conceito.
É necessário levar em consideração não só o número de vítimas, mas também o intervalo de tempo em que o assassino agiu, de que modo as capturou (durante as investigações, a polícia vai delineando o modo como o assassino em série age. Geralmente possuem algum padrão em seus crimes, que pode ser um estereótipo de vítima, a forma de matar, a maneira como dispõe o corpo…), se houve ou não agressão sexual, e se o criminoso, de alguma forma, deixou uma assinatura no local do crime.
Para Schechter, o que define se o montante de assassinatos cometidos pode ou não ser considerado homicídio em série é o impulso sexual do indivíduo:[52]
“A maioria das pessoas, quando não pratica sexo por algum tempo, começa a ficar mais ansiosa. Elas fantasiam sobre sexo […]. Uma vez que tenham satisfeito seus impulsos sexuais, a necessidade cessa por algum tempo. De forma análoga, o serial killer passa seu tempo fantasiando sobre dominação, tortura e assassinato. Consequentemente, ele fica excitado por sangue. Quando seus desejos distorcidos tornam-se fortes demais para resistir, sai em busca de vítimas incautas. Sua excitação atinge o clímax com o sofrimento e a morte da vítima. Depois, ele vive um período de “calmaria”. […] Durante esse tempo, ele pode fazer uso de “troféus” que extraiu da cena do crime para revivê-lo mentalmente, saboreando a lembrança do sofrimento da vítima”. [grifo do autor]
O psicopata homicida em série possui uma crueldade e frieza inerente ao seu modo de agir, além da necessidade de se sentir onipotente em relação à vítima. Adequado fazer uso das palavras do autor espanhol Luís Borrás Rocca:[53]
“O motivo do crime não é o lucro, mas sim o desejo do assassino de exercer controle ou dominação sobre suas vítimas. Estas últimas podem ter um valor simbólico para o assassino e/ou ser carentes de valor, e na maioria dos casos não podem defender-se e avisar a terceiros de sua situação de impossibilidade de defesa ou são vistas como impotentes, dados sua situação neste momento, o local e a posição social que detenham dentro de seu entorno, como, por exemplo, no caso de vagabundos, prostitutas, trabalhadores imigrantes, homossexuais, crianças desaparecidas, mulheres que saíram desacompanhadas de casa, velhas, universitárias e pacientes de hospital.”
Nem o Código Penal nem legislações esparsas tipificam a conduta do Homicídio em Série. No ano de 2010, o Projeto de Lei n. 140 surgiu com tal propósito. A proposta, de autoria do Senador Romeu Tuma, previa a alteração do artigo 121 do Código Penal, acrescentando novos parágrafos, e tinha por objetivo estabelecer o conceito penal de assassino em série [54], conforme dispunha a ementa:
“Altera o Código Penal para considerar assassino em série o agente que comete três ou mais homicídios dolosos em determinado espaço de tempo, seguindo procedimento criminoso idêntico, constatado por laudo pericial elaborado por junta profissional; estabelece pena mínima de trinta anos de reclusão, em regime integralmente fechado ao assassino em série, proibida a concessão de qualquer tipo de benefício penal”.
O Projeto, porém, foi arquivado em dezembro de 2014[55], pois sua proposta, apesar de ter uma motivação bastante conveniente, visto a necessidade de norma que[56] regule a penalização de crimes cometidos por assassinos em série, ia de encontro a regras constitucionais[57].
4. Psicopatas Homicidas e o Direito Penal
Como bem se sabe, o Tribunal do Júri é quem tem competência para julgar os crimes dolosos contra a vida. Desta forma ocorre com os homicídios em série praticados por psicopatas, que neste caso vão a julgamento perante o Conselho de Sentença[58]. Com base no laudo do perito, os quesitos são elaborados; desta forma, se o laudo determinar a imputabilidade do agente, os quesitos acerca da semi-imputabilidade não são necessários.
É o Conselho de Sentença que determinará a incidência ou não da causa especial de diminuição de pena disposta no artigo 26, parágrafo único, do Código Penal; se entender que cabe a referida hipótese, haverá a diminuição de um a dois terços da pena no momento da dosimetria efetuada pelo Juiz, ou então o agente será submetido à medida de segurança[59].
Como já citado no decorrer do trabalho, não existe dispositivo legal que regule a penalização de crimes cometidos por portadores de psicopatia; no caso da presente pesquisa, o enfoque é a penalização dos homicídios em série cometidos por indivíduos diagnosticados como psicopatas. Mais adiante, discorrer-se-á a respeito dos mecanismos punitivos atualmente “à disposição” do sistema penal brasileiro como forma de sanção aos psicopatas. Antes, alguns conceitos se fazem necessários.
4.1- Culpabilidade
Quando um indivíduo comete um ilícito penal e é considerado responsável por isto, atribui-se a ele culpabilidade, um caráter negativo de reprovação. Capez[60] explica que a culpabilidade não se trata de um elemento do crime cometido, mas sim de uma condição para que seja imposta uma pena a quem o cometeu. É a reprovabilidade da conduta típica e antijurídica[61].
Os elementos que compõem a culpabilidade, segundo a Teoria adotada pelo Código Penal Brasileiro, são a imputabilidade, que será melhor elucidada a seguir; a consciência da ilicitude do fato, o que significa que o agente deve conhecer, ou ter condições de conhecer a antijuridicidade de sua conduta; por fim, para caracterizar a culpabilidade, é preciso que o sujeito tivesse a possibilidade de agir de forma diferente, ou seja, exigibilidade de conduta diversa.
Assim, a culpabilidade pode ser excluída pela ausência de qualquer um dos elementos citados. Pode ocorrer por casos de inimputabilidade do sujeito, previstos nos artigos 26 (doença mental, desenvolvimento mental incompleto ou retardado), 27 (desenvolvimento mental incompleto do menor de 18 anos) e 28, § 1º (embriaguez) do Código Penal. Ainda, pela inexistência da possibilidade de conhecimento do ato ilícito por erro sobre a ilicitude (art. 21), descriminantes putativas (art. 20, § 1º) ou obediência à ordem de superior hierárquico (art. 22, segunda parte). A primeira parte do art. 22 do Código Penal traz a excludente de culpabilidade por inexigibilidade de conduta diversa na coação moral irresistível[62].
Não cabem no presente trabalho maiores conceituações a respeito, por não ser o foco da pesquisa, ainda assim foi considerado importante mencionar tais elementos para uma melhor contextualização e compreensão dos tópicos que seguem, por parte do leitor.
4.2- Imputabilidade
Em poucas palavras, a imputabilidade penal pode ser conceituada como a capacidade de um indivíduo cometer um fato típico e antijurídico e responder penalmente por isto. Trata-se de entender o caráter ilícito de um fato e agir de acordo com esse entendimento[63].
Além de descrever de o conceito de imputabilidade, Fernando Capez aprofunda o entendimento a esse respeito quando aborda a necessidade de o agente possuir condições de saber que está realizando um ato ilícito:[64]
“O agente deve ter condições físicas, psicológicas, morais e mentais de saber que está realizando um ilícito penal. Mas não é só. Além dessa capacidade plena de entendimento, deve ter totais condições de controle sobre sua vontade. Em outras palavras, imputável é não apenas aquele que tem capacidade de intelecção sobre o significado de sua conduta, mas também de comando da própria vontade, de acordo com esse entendimento”.
Ainda que não faça menção ao assunto, pode-se extrair das palavras do autor que um doente mental, que tem sua capacidade cognitiva prejudicada, não preenche os requisitos para ser considerado imputável. Um indivíduo diagnosticado puramente como psicopata, não sofre de condições que diminuam sua capacidade de entendimento da realidade, logo, não há como ser considerado inimputável.
A imputabilidade, portanto é a capacidade que uma pessoa possui de compreender o quão ilícitos são seus atos. Não deve ser confundida nem com capacidade plena e nem com dolo. Em breves palavras, no que tange à primeira, entende-se que a imputabilidade é uma espécie de capacidade, utilizada na esfera penal. O dolo, por sua vez é a vontade de cometer o ato, ao passo que a imputabilidade faz o agente entender essa vontade.
“A imputabilidade é a face criminal da liberdade do querer; é aquela disposição espiritual na qual está presente o poder de resistência como poder de ser obediente ao direito. É a condição prévia, sempre que uma ação concreta seja examinada para estabelecer se foi cometida de forma culpável.”[65]
A Legislação Penal Brasileira compreende, por meio do que se extrai do texto do artigo 26 do Código Penal, que inimputável é “o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”. Os artigos 27 e 28 elencam outras formas de inimputabilidade. Como já citado no texto, a inimputabilidade é excludente de culpabilidade.
O parágrafo único do referido artigo ainda revela que o agente pode ter sua pena diminuída de um a dois terços se sofrer de perturbação mental que ou tiver desenvolvimento mental incompleto ou retardado que dificulte sua compreensão de ilicitude dos seus atos. Trata, tal dispositivo, da semi-imputabilidade do agente.
Mais uma vez, cumpre frisar que o psicopata não é doente mental, logo não é inimputável (é possível que além de traços de personalidade psicopática, o agente sofra de perturbações mentais, deficiências e afins; nestes casos o laudo pericial estabelecerá em que grau isto ocorre, porém é importante frisar que por si só a psicopatia não diminui a capacidade do indivíduo). Assim, Hare entende que:[66]
“Os psicopatas não são pessoas desorientadas ou que perderam o contato com a realidade; não apresentam ilusões, alucinações ou a angústia subjetiva intensa que caracterizam a maioria dos transtornos mentais. Ao contrário dos psicóticos, os psicopatas são racionais, conscientes do que estão fazendo e do motivo por que agem assim. Seu comportamento é resultado de uma escolha exercida livremente.”
Neste sentido, Silva ainda possui a pertinente opinião:[67]
“Esses indivíduos não são considerados loucos, nem apresentam qualquer tipo de desorientação. Também não sofrem de delírios ou alucinações (como a esquizofrenia) e tampouco apresentam intenso sofrimento mental (como a depressão ou o pânico, por exemplo).
Ao contrário disso, seus atos criminosos não provêm de mentes adoecidas, mas sim de um raciocínio frio e calculista combinado com uma total incapacidade de tratar as outras pessoas como seres humanos pensantes e com sentimentos.”
Guido Arturo Palomba[68] afirma que quando o caso é a respeito da imputabilidade penal de assassinos em série, se o indivíduo for “normal”, será considerado imputável; se for fronteiriço (psicopatas homicidas), semi-imputável; se doente mental, inimputável.
O atual sistema penal brasileiro, porém, vê na maioria das vezes o psicopata homicida em série como um indivíduo semi-imputável, embasando-se nas disposições do parágrafo único do artigo 26 do Código Penal. Psicopatas possuem capacidade para diferenciar o certo do errado, portanto podem ser responsabilizados por suas condutas; entretanto se entende que lhes falta o aspecto ético/moral.
4.2.1- Das Sanções Penais
Vale trazer de volta neste tópico a questão da grande possibilidade de reincidência por parte dos criminosos diagnosticados como portadores de psicopatia; isto também significa que sua ressocialização é extremamente difícil, beirando a impossibilidade, pois tal transtorno não tem cura.
Dentro do sistema penal brasileiro, as sanções penais compreendem as penas e as medidas de segurança, e sabe-se que o fundamento para que uma pena seja imputada ao agente é a culpabilidade, ao passo que a medida de segurança é fundamentada no aspecto da periculosidade[69]. As penas são atribuídas a agentes imputáveis e semi-imputáveis, enquanto as medidas de segurança atualmente se aplicam principalmente aos inimputáveis, mas há casos em que a semi-imputáveis também.
A pena objetiva a punição do agente de forma a demonstrar a reprovação de sua conduta típica e antijurídica, visando prevenir que ele cometa novos delitos quando solto; já a medida de segurança busca tratar o indivíduo. Enquanto a pena tem duração máxima de 30 anos, a medida de segurança, em regra, não possui tempo de duração determinado, entende-se que deva perdurar enquanto não restar cessada a periculosidade do infrator.
Um psicopata, quando condenado a cumprir pura e simplesmente pena privativa de liberdade, independentemente do tempo em que fique preso, dificilmente mudará seu comportamento. Além de não aprenderem por meio da experiência carcerária, eles podem, em muitos casos, influenciar outros detentos, ou mesmo utilizá-los para satisfazer algum objetivo dentro da prisão[70].
Portanto, entende-se que a pena privativa de liberdade não seja a mais adequada a ser aplicada a um psicopata homicida em série.
“A nossa legislação penal distingue a medida de segurança da pena, neste ponto alguns apontam como sendo medida administrativa de polícia, embora é assente seu caráter especificamente penal. A violação da lei penal ocasiona a aplicação da pena que exige a responsabilidade penal, já a periculosidade do agente aplica-se como medida de precaução, a medida de segurança.”[71]
No tocante à medida de segurança, Mirabette entende que se trata de um instrumento apto a prevenir, “no sentido de preservar a sociedade da ação de delinqüentes temíveis e de recuperá-los com tratamento curativo”[72]. Aplicável, na maioria das vezes a agentes inimputáveis, que tem periculosidade presumida, a medida de segurança exige exame pericial para que seja aplicada a um semi-imputável[73].
O artigo 96 do Código Penal[74] arrola os tipos de medida de segurança existentes, sendo a primeira detentiva, e a segunda, restritiva, quais sejam:
“Art. 96. As medidas de segurança são:
I – Internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico ou, à falta, em outro estabelecimento adequado;
II – sujeição a tratamento ambulatorial.
Parágrafo único – Extinta a punibilidade, não se impõe medida de segurança nem subsiste a que tenha sido imposta.”
É possível perceber que o psicopata homicida não recebe tratamento específico e adequado por parte do sistema penal brasileiro. Inegável a importância de uma norma que regule de forma adequada a penalização de criminosos dessa categoria.
5. Qual o Tratamento Adequado?
Conforme se pode perceber no decorrer do presente trabalho, a psicopatia é um transtorno de personalidade, que não possui cura e cujo tratamento, terapias e afins não apresentam eficácia. Assim, trata-se de um problema de interesse social buscar por medidas alternativas que possam ser aplicadas a fim de penalizar os crimes cometidos por tais indivíduos.
Robert D. Hare acredita que é possível controlar os traços de psicopatia se um tratamento for iniciado na infância da pessoa[75]. Quando se discorreu a respeito do diagnóstico da psicopatia, foram elencados certos fatores utilizados pela Escala Hare, e os transtornos de conduta na infância estão entre eles. É lógico se pensar que, um tratamento iniciado na infância pode evitar o desencadeamento da conduta criminosa do psicopata, pois a personalidade está em formação. Um tratamento em adultos com a personalidade estabelecida é muito mais complicado.
Um psicopata pode fingir arrependimento, fingir remorso, fingir que aprendeu com a punição que recebeu e jurar que os atos que cometeu não voltarão a acontecer.
Há a evidente necessidade de uma política penal/criminal que crie mecanismos aptos a punir de forma adequada infratores psicopatas. O que se percebe é que o sistema judiciário confunde a psicopatia com doença mental; além disso a legislação penal não estabelece dispositivos que regulamentem a punição de tais crimes, e por consequência disto, psicopatas homicidas são tratados como homicidas comuns.
O Direito, como um todo, deve acompanhar o desenvolvimento da sociedade. A psicopatia não é uma questão relativamente nova dentro da esfera jurídica, porém nos últimos anos é que a necessidade de regulação específica para crimes que envolvam tal transtorno tem ficado mais evidente. Se faz necessária uma mudança na legislação penal, prevendo um tratamento adequado para indivíduos diagnosticados como psicopatas.
Assim, Jorge Trindade et.al. entendem que é preciso criar um sistema onde haja supervisão constante dos criminosos psicopatas, estabelecendo etapas extremamente minuciosas de tratamento e acompanhamento por profissionais capacitados; no momento em que se notar comportamento transgressor ou passível de punição, o psicopata então retorna a um “regime” de maior vigilância e cuidados[76]. É importante a interação entre o Direito e as áreas da saúde mental, buscando soluções. Pela extrema capacidade de os psicopatas mentirem e enganarem as pessoas a sua volta, será necessário cada vez mais profissionais treinados para lidar com eles.
Considerações Finais
Diante do trabalho apresentado, é possível perceber que o tema envolvendo psicopatia e Direito Penal exige busca constante por soluções e respostas. Como se pode notar ao longo da pesquisa, atualmente não há norma que regule a penalização de homicidas diagnosticados como portadores de psicopatia; na realidade, a lacuna se aplica aos criminosos psicopatas como um todo. Na ausência de norma específica, o judiciário tem feito uso das regras aplicadas a criminosos “comuns”, que se demonstram, por muitas vezes, ineficazes.
Foi possível conhecer o conceito de psicopatia, traçando sutilmente o histórico do transtorno, expondo as opiniões de estudiosos no assunto a fim de melhor elucidar questões envolvendo seu diagnóstico e suas principais características, peculiaridades que podem parecer insignificantes, mas que representam grandes diferenças quando uma patologia é comparada à outra.
No tópico a respeito dos homicidas seriais, se pode perceber que nem todos os assassinos que matam diversas pessoas podem ser considerados seriais. Estabelecendo uma diferenciação entre serial killers e homicidas comuns, utilizou-se as definições dadas por alguns doutrinadores para estabelecer o conceito de assassino em série e foi possível notar uma dificuldade em elucidar tal conceituação. Porém, verificou-se que assassinos em série possuem modus operandi bastante peculiar e geralmente têm uma assinatura que os caracteriza.
Foram estabelecidos conceitos de culpabilidade e imputabilidade e abordadas as sanções que o psicopata homicida sofre atualmente dentro do sistema penal brasileiro, quais sejam, penas e medidas de segurança. Demonstrou-se que, na maioria das vezes o criminoso psicopata é considerado semi-imputável, e lhe é aplicada medida de segurança; porém mencionou-se que as penas aplicadas atualmente se mostram inadequadas a estes indivíduos, visto que possuem caráter dissimulado e não aprendem por meio de punições, sendo muito provável que voltem a cometer crimes assim que soltos.
O último capítulo se trata mais de opinião pessoal, onde se fala da possibilidade de haver alternativas de punição para psicopatas criminosos, dentro do sistema penal. A psicopatia não tem cura; o psicopata, quando “decide” pela conduta criminosa, não possui condições de continuar inserido na sociedade, tamanho o risco que apresenta; assim sendo, adequado seria a criação de um sistema ou política de tratamento envolvendo esferas jurídicas e de saúde, como a Psicologia, por exemplo, em que o criminoso recebesse tratamento especializado, sendo submetido a cada determinado período de tempo, a exames psicológicos rigorosos para estabelecer seu grau de periculosidade e só podendo voltar ao convívio social se considerado apto a isso.
O tema não se esgota neste estudo, visto que frequentemente e cada vez mais aparecem casos de homicidas em série, que necessitam de penalização específica, precisam ser estudados cada vez mais a fundo. É importante para o Direito, para a Medicina, para a Psicologia, diversas áreas, e para a sociedade em geral, que este assunto alcance cada vez mais repercussão, para que se perceba a necessidade de reformas em determinados aspectos da legislação penal.
Informações Sobre os Autores
Emanuela Gonçalves Ceolin
Bacharel em Direito formada pelo Centro Universitário Barriga Verde – UNIBAVE
Flavio Rodrigo Masson Carvalho
Professor Doutor Pesquisador e Orientador. do Centro Universitário Barriga Verde – UNIBAVE