Resumo: Os novos entendimentos acerca das relações familiares, principalmente em decorrência da constitucionalização do direito civil e dos reflexos sobre o direito de família, possibilitam uma ampliação do conceito tradicional de família, que tinha por base apenas a relação pai, mãe e filhos, essencialmente patriarcal e biologizada para uma família reconhecidamente afetiva, igualitária e com novas configurações. A evolução social e cultural muitas vezes não é acompanhada pelo mundo jurídico e a multiparentalidade é um exemplo de que a realidade, no direito de família deve ser respeitada, muito mais do que em outras áreas. A multiparentalidade constitui-se como principal expressão das famílias reconstituídas, em que cria-se a figura da madrasta e enteados ou padrasto e enteados, além dos filhos que podem advir da nova união, que muito embora não tenham reconhecimento expresso constitucional e nem infraconstitucional, estão mais presentes na sociedade do que se possa imaginar. Desta forma, tendo em vista ser um tema de recente abordagem, o presente artigo pretende desenvolver uma análise, ainda que breve e incipiente, sobre a multiparentalidade e os seus efeitos jurídicos.
Palavras-chave: Multiparentalidade. Efeitos Jurídicos.
Abstract: The new understandings of family relationships allow an extension of the traditional concept of family based solely on the parent, mother and children, and essentially patriarchal biologizada for a family admittedly emotional, egalitarian and new configurations. The multiparentalidade constitutes itself as the main expression of reconstituted families, it creates the figure of the stepmother or stepfather and stepchildren and stepchildren, and children that may result from the new union, even though they have not expressed constitutional recognition nor infra, is more prevalent in society than imaginable. Thus, in order to be a subject of a recent approach, this article aims to. develop an analysis, albeit brief and incipient about multiparentalidade and its legal effects.
Keywords: Multiparentalidade. Legal Effects.
Sumário: Introdução. Multiparentalidade e efeitos jurídicos. Conclusão.
Introdução
O reconhecimento da multiparentalidade significa um avanço do Direito de Família no Brasil, pois efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana de seus envolvidos, bem como demonstra o respeito pelo princípio da afetividade. A Constituição Federal assume a opção pela família socioafetiva e dessa forma entende-se que o liame afetivo se sobrepõe ao liame biológico.
É necessário que se verifique os efeitos da multiparentalidade, para que se reafirme a sua legitimidade, sendo uma forma justa de estabelecimento do vínculo de filiação em que o vínculo biológico e o vínculo afetivo andam lado a lado e, onde muitas vezes, sobrepõe-se o vínculo construído na essência pela afetividade ao vínculo sanguíneo ou biológico.
Multiparentalidade e efeitos jurídicos
A partir do momento em que a nova concepção de Direito de Família se desvincula do objetivo de proteção ao patrimônio e volta-se à proteção das pessoas, inicia-se o reconhecimento das relações interpessoais que são existentes na sociedade. Nessa linha de raciocínio, o direito de família deve buscar a criação de meios para o reconhecimento dessas relações no campo jurídico e conjuntamente a efetivação dos direitos dos sujeitos envolvidos, quando estes, em função da omissão do direito são prejudicados.
Sabe-se que atualmente a família constitui-se das mais variadas formas, e a noção de que apenas a família biológica e baseada no casamento pode ser considerada estruturada e moralmente correta está afastada. A exemplo disso, o reconhecimento da família monoparental, da união estável, do casamento e adoção por pares homoafetivos, da proibição de distinção da filiação e da paternidade socioafetiva demonstra o avanço do Direito de Família brasileiro no reconhecimento, promoção e efetivação dos direitos das pessoas e das famílias.
Esse reconhecimento que as famílias que não seguem o padrão tradicional estão a receber, concretiza o princípio da dignidade da pessoa humana. Com a elevação do princípio da dignidade humana a fundamento da ordem jurídica, priorizou-se a pessoa, o que transpassou o limite do patrimônio. Novamente, destaca-se que o direito de família e as próprias famílias deixaram de estar fundados no patrimônio que tinha a finalidade de fortalecer o Estado e conservar os bens entre a família, fundando-se então, na personalização das relações e em uma aproximação substancial entre as pessoas.
É na família que a dignidade da pessoa vai se fortalecer, especialmente, em cada um dos seus membros, fundamentando-se na ordem constitucional para tanto. É através da dignidade da pessoa humana que é possibilitado o desenvolvimento e a vivência de cada um dos membros familiares, considerados em si mesmos e nas suas relações pessoais e com o mundo e na busca pela complementaridade da vida e da felicidade.
Além da dignidade humana, também pelo princípio da afetividade a multiparentalidade recebe aparato jurídico.
Com o reconhecimento do afeto como um princípio do direito de família e como direito fundamental, há uma quebra de paradigmas, dando-se valor e lugar para o afeto, para o que permeia cada uma das relações familiares. É por esta razão que diz-se que as relações de consanguinidade são menos importantes que as oriundas de laços de afetividade e convivência familiar, despontando a afetividade como elemento nuclear e definidor da união familiar, com consequente aproximação desta da instituição social.
Assim, atualmente o que identifica a família não é o casamento e nem mesmo a diferença de sexo ou o envolvimento para procriação, mas sim, a presença de um vínculo de afeto que une as pessoas, em busca de um comprometimento mútuo, projetos de vida com alguma identidade e propósitos em comum.
Neste contexto, a multiparentalidade significa a legitimação da paternidade/maternidade do padrasto ou madrasta que ama, cria e cuida de seu enteado(a) como se seu filho fosse, enquanto que ao mesmo tempo o enteado(a) o ama e o(a) tem como pai/mãe, sem que para isso, se desconsidere o pai ou mãe biológicos. A proposta é a inclusão no registro de nascimento do pai ou mãe socioafetivo permanecendo o nome de ambos os pais biológicos.
Dessa forma, a multiparentalidade diverge da adoção unilateral em que o cônjuge ou companheiro do pai ou mãe do enteado adota este, o que resulta no total rompimento dos vínculos jurídicos com o outro genitor, salvo os impeditivos de casamento. Nesta modalidade de adoção unilateral, não há alteração da paternidade/maternidade do cônjuge ou companheiro do adotante, bem como do exercício do poder familiar e nos vínculos jurídicos.
A multiparentalidade é uma forma de reconhecer no campo jurídico o que ocorre no mundo dos fatos. Afirma a existência do direito a convivência familiar que a criança e o adolescente exercem por meio da paternidade biológica em conjunto com a paternidade socioafetiva.
Em decisão inédita no ano de 2012, o Tribunal de Justiça de São Paulo deferiu pedido para acrescentar na certidão de nascimento de jovem de 19 anos o nome da mãe socioafetiva, sem ser retirado o nome da mãe biológica. Esta morreu três dias após o parto, sendo que quando o filho tinha dois anos o pai se casou com outra mulher, postulante da ação em conjunto com o enteado. O jovem sempre viveu harmoniosamente com o pai, a madrasta, que sempre chamou de mãe, bem como com a família de sua mãe biológica, que nunca fora esquecida. O filho que sempre conviveu entre as três famílias tem agora um pai, duas mães e seis avós registrais (FOLHA DE SÃO PAULO, 2012).
Para maior compreensão, colaciona-se o recorte jurisprudencial da ementa do acórdão:
“EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido.” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2012).
A decisão reafirma a opção da Constituição Federal de 1988 pela família socioafetiva, que tem tanta relevância jurídica quanto a comprovação de liame biológico, não havendo qualquer tipo de sobreposição entre uma e outra.
O artigo 1.593 do Código Civil define que “o parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. (BRASIL, 2002). Numa visão hermenêutica, o dispositivo apresenta a percepção de que os laços afetivos são tão relevantes quanto os laços consanguíneos. Em algumas situações os laços afetivos tornam-se superiores aos laços consanguíneos, pois são aqueles que efetivamente concretizam o telos da família: o amor mútuo, o respeito e a solidariedade. Dessa forma, a multiparentalidade é plenamente aceitável juridicamente, promove a família e vem ao encontro do melhor interesse da criança e do adolescente.
O referido artigo 1.593 do Código Civil guarda íntima relação com o artigo 227, parágrafo 6º da Constituição Federal, que determina que
“os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” (BRASIL, 2002)
Assim, Lôbo, ensina que “a filiação não é um dado da natureza, e sim uma construção cultural, fortificada na convivência, no entrelaçamento dos afetos, pouco importando sua origem”. (LOBÔ, 2011).
Ao dar provimento ao pedido da primeira inclusão do nome da mãe socioafetiva no registro de nascimento do filho, o desembargador Alcides Leopoldo e Silva Junior, do TJSP, refere que:
“Não se evidencia qualquer tipo de reprovação social, ao contrário, pelo caminho da legalidade (diversamente da via comumente chamada de “adoção à brasileira”), vem-se consolidar situação de fato há muito tempo consolidada, pela afeição, satisfazendo anseio legítimo dos requerentes e de suas famílias, sem risco à ordem jurídica” (TRIBUNAL DE JUSTIÇA SÃO PAULO, 2012, p. 5).
Ao se legalizar a multiparentalidade essa passa então a trazer efeitos, não só no cotidiano da vida da família, que se sente realizada, pois conseguiu tornar existente na área jurídica o que já existia na realidade fática, mas também acarreta em efeitos jurídicos.
A partir da inclusão do pai socioafetivo no registro de nascimento, se estabelece a filiação do filho em relação a este em conjunto com os pais biológicos, bem como todos os seus efeitos.
O artigo 54, itens 7º e 8º da Lei 6.015/73 – Lei de Registros Públicos, determina que no registro deverão constar os nomes e prenomes dos pais e dos avós maternos e paternos. Assim, no registro de nascimento constará como pais os nomes dos pais biológicos, do pai ou mãe socioafetivo(a), bem como constarão como avós todos os ascendentes destes. O filho poderá usar o nome de todos os pais.
Por analogia ao previsto no artigo 47, parágrafo 4º do ECA em relação a adoção, não constará nenhuma observação no registro sobre o ato. O filho manterá as relações de parentesco com a família dos pais biológicos, e passará a ter relações de parentesco com os parentes do pai socioafetivo.
Quando tratar-se de filho menor, incumbirá ao pai socioafetivo o poder familiar em conjunto com os demais. Na prática em muitos pontos o poder familiar já é exercido pelo(a) pai/mãe socioafetivo(a), assim apenas se regularizará os demais itens.
Assim caberá ao pai socioafetivo em relação ao filho dirigir-lhe a criação e educação; tê-lo em sua companhia e guarda; conceder-lhe ou negar-lhe consentimento para casar; nomear-lhe tutor por testamento ou documento autêntico, se os outros dos pais não lhe sobreviverem, ou os sobrevivos não puderem exercerem o poder familiar; representá-lo, até aos dezesseis anos, nos atos da vida civil, e assisti-lo, após essa idade, nos atos em que for parte, suprindo-lhe o consentimento; reclamá-lo de quem ilegalmente o detenha e exigir que lhe preste obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição, como dispõe o artigo 1.634 e incisos do Código Civil.
Ainda o artigo 21 do ECA determina que o poder familiar será exercido por ambos os pais, em igualdade de condições, sendo que em caso de discordância há o direito de se recorrer à autoridade judiciária. Por força do artigo 22 da mesma lei, cabe aos pais o dever de guarda, sustento e educação, além da obrigação de cumprir e fazer cumprir determinações judiciais em relação aos filhos menores.
A guarda, que é um dos deveres do poder familiar, será exercida de acordo com o princípio do melhor interesse da criança, bem como o direito de visitas (PÓVOAS, 2012). Poderá ser realizada tanto na modalidade unilateral, quanto compartilhada, aplicando tanto aos pais biológicos como ao socioafetivo as disposições contidas nos artigos 1.583 ao 1.590 do Código Civil.
O artigo 229 da Constituição Federal define que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade”. Assim, a partir da inexistência de distinção de filiação, o dispositivo é plenamente aplicável aos pais e aos filhos integrantes da multiparentalidade.
Na medida em que o artigo 1.696 do Código Civil assegura que a prestação de alimentos é recíproca entre pai e filho, tanto todos os pais poderão prestar alimentos ao filho, bem como este poderá prestar alimentos a todos os pais. Tais situações deverão levar sempre em consideração o binômio possibilidade – necessidade, em respeito ao parágrafo 1º do artigo 1.694 do Código Civil.
No tocante dos fins previdenciários, o filho será beneficiário de ambos os pais, uma vez que o artigo 16, inciso I, da Lei 8.213/91 determina que:
“Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:
I – o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou invalido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente;” (grifo nosso) (BRASIL, 1991).
O mesmo artigo, em seu inciso II, determina que os pais também são considerados beneficiários. Na multiparentalidade, assim como em qualquer relação de filiação, os pais, biológicos ou afetivos, e o filho, recebem a condição de dependentes do segurado.
Na sucessão, embora haja discussão na doutrina e até mesmo porque o assunto é novo, sob o aspecto da amplitude da relação, todos os pais são herdeiros do filho, e o filho é herdeiro de todos os pais. A mesma relação se estabelece em relação aos ascendentes e descendentes, bem como aos parentes colaterais de quarto grau. As sucessões dos pais não se comunicam entre si, salvo àqueles que são cônjuges ou companheiros.
Como já referido anteriormente, a multiparentalidade é o reconhecimento de uma relação interpessoal já existente. Na lição de Póvoas, 2012:
“[…] não há como deixar de reconhecer que a multiparentalidade será, em breve, mais comum do que se imagina, na medida em que, em determinados casos, é a única forma de garantir interesses dos atores envolvidos nas questões envolvendo casos de filiação, albergando-lhes os princípios constitucionalmente e eles garantidos da dignidade da pessoa humana e da afetividade” (PÓVOAS, 2012, p. 11).
A multiparentalidade é uma forma justa de se reconhecer a paternidade e a maternidade de um filho que é amado por ambos os pais, sem que para isso necessite a exclusão de um ou de outro. A exclusão pode existir tanto ao se substituir o nome de um(a) pai ou mãe do registro de nascimento, quando este por motivos legítimos não o quer, quanto na permanência do registro na forma em que sempre esteve, sem considerar a sua falácia no mundo fático, uma vez que aquele filho tem mais de uma mãe ou de um pai em sua vida.
Conclusão
A multiparentalidade efetiva o princípio da dignidade da pessoa humana e da afetividade, reconhecendo no campo jurídico a filiação – amor, afeto e atenção – que já existe no campo fático.
A multiparentalidade diverge da adoção unilateral, pois não substitui nenhum dos pais biológicos, mas acrescenta no registro de nascimento o pais ou mãe socioafetivo. Por meio dele se estabelece entre o filho e o pai/mãe socioafetivo(a) todos os efeitos decorrentes da filiação.
Assim a tendência é que cada vez mais o sistema jurídico brasileiro reconheça mais situações de multiparentalidade como forma de efetivação dos direitos dos sujeitos envolvidos, quando estes, em função da omissão do direito são prejudicados.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
______ Lei 8.213 de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências.
______. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências.
______. Lei nº 10.406 de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias. 4ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011. p. 273.
PÓVOAS, Mauricio Cavallazzi. A dignidade da pessoa humana, o afeto e as relações parentais: a multiparentalidade e seus efeitos. Dissertação submetida ao Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI , como requisito parcial à obtenção de Título de Meste em Ciência Jurídica. Itajaí, Santa Catarina, 2012.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE GOIÁS. Sandra Teodoro Reis. 2012
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO. Alcides Leopoldo e Silva Junior, acórdão nº 2012.0000400337, p. 5.
Informações Sobre os Autores
Aline Taiane Kirch
Advogada. Graduada em Direito pela Faculdade Meridional – IMED
Lívia Copelli Copatti
Advogada. Mestre em Direito pela UNISC. Docente na Faculdade Meridional – IMED, RS e na UNOESC – Campos Novos, SC