Luiz Felipe Pinto Lima Graziano
(Advogado atuante em questões relacionadas à infraestrutura há mais de 15 anos. Autor de diversos artigos sobre o tema. Foi vice-presidente da Coordenação de Saneamento Básico do Conselho Federal da OAB (Gestão 2013 / 2016) e Coordenador do Comitê Jurídico da ABCON – Associação Brasileira das Concessionárias Privadas dos Serviços Públicos de Água e Esgoto (de janeiro de 2013 até janeiro de 2016). É membro da Comissão de Saneamento Básico do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo (nomeado em 08/10/2014). É sócio no Giamundo Neto Advogados).
Há muito se discute sobre quais seriam os reais entraves e as consequentes necessidades de ajuste no Marco Regulatório do Saneamento Básico (Lei nº 11.445/2007) para que sejam enfim implementados os esperados investimentos necessários para a universalização dos serviços de água e esgoto no país.
Com a expiração da Medida Provisória nº868/18 sem sua conversão em lei, não houve a mudança do Marco Regulatório e alguns debates permanecem, dentre eles aquele em relação ao tratamento a ser dispensado aos contratos de programa que tenham por objetivo a prestação de serviços de saneamento básico.
Como se sabe, os contratos de programa surgiram na tentativa de substituir os antigos convênios e são em sua essência contratos de concessão (conforme previsto pelo inciso II do §1º do art. 13 da Lei 11.107/05), diferindo essencialmente por serem celebrados com dispensa de licitação (inciso XXVI do art. 24 da Lei 8.666/93) e por (teoricamente) estarem contextualizados no âmbito de uma prestação de serviços públicos de forma associada, com base em consórcio público ou convênio de cooperação.
Este modelo, cujas origens históricas remontam ao Plano Nacional de Saneamento Básico – PLANASA, instituído no ano de 1.971, foi determinante para assegurar que nada menos do que 71% dos municípios tenham companhias estaduais contratadas para a prestação dos serviços de água e esgoto (27% dos municípios prestam o serviço diretamente e apenas 2% licitaram concessões plenas, contratando a iniciativa privada para a prestação conjunta dos serviços de água e esgoto).
Em que pese a aguerrida defesa do modelo vigente pelas associações representativas dos operadores públicos, repensar o modelo é imprescindível se o país de fato pretende um dia universalizar estes serviços. Segundo o SNIS – Sistema Nacional de Informações de Saneamento, do Ministério das Cidades, mais de 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso aos serviços de água e mais de 100 milhões não têm acesso aos serviços de esgoto.
Argumenta-se, na defesa do modelo vigente, que somente as companhias estaduais poderiam equilibrar a prestação dos serviços entre os sistemas (ou municípios) “viáveis” e os “inviáveis”, através do chamado subsídio cruzado. Segundo esta lógica, as operações superavitárias (normalmente nas capitais e nos grandes centros urbanos) devem subsidiar as operações deficitárias (cidades menores e mais isoladas).
No entanto, a viabilidade ou a inviabilidade econômica de determinados sistemas precisa ser analisada com bastante cautela. Veja-se, por exemplo, que a operação destes serviços em um município com 5 mil habitantes pode ser inviável para um grande operador (público ou privado), mas tem sido viável para operadores de pequeno porte. Não é por outra razão que cerca de 30% das concessões privadas existentes estão localizadas em municípios com menos de 5 mil habitantes e 58% delas em municípios com menos de 20 mil habitantes, conforme dados do Panorama da Participação Privada no Saneamento 2018 (disponível em http://abconsindcon.com.br/panoramas/)
Apelando ao senso comum para ilustrar o que se afirmou, e simplificando (muito) a discussão, da mesma forma que seria absolutamente antieconômico contratar uma grande construtora para reformar um banheiro de apartamento, não seria racional contratar um empreiteiro de pequeno porte para construir uma usina hidroelétrica.
Em grande parte, é essa inadequação de prestador que o subsídio cruzado financia. Não são poucas as companhias estaduais que não arrecadam o suficiente para arcar com seus custos operacionais, sem nenhuma perspectiva de conseguirem realizar os investimentos necessários à universalização dos serviços.
Não se pretende com isso negar a existência de operações deficitárias, nas quais a arrecadação tarifária será insuficiente para amortizar os investimentos necessários para a universalização. Mas, nos casos em que se constate esta inviabilidade econômica, parece muito mais adequado que se tenha um subsídio transparente, claramente previsto e segregado da tarifa a ser cobrada do usuário.
Além de ser um contrassenso falar em operação superavitária em municípios que ainda não universalizaram estes serviços essenciais (apenas para exemplificar, não existe nenhuma capital no Brasil que tenha atingido a universalização), na sistemática atual é impossível entender quanto do “superávit” de uma operação financia operações deficitárias (nem quais e porque seriam elas deficitárias) e quanto destes recursos se esvai na ineficiência operacional.
Aliás, sobre a questão da eficiência operacional, salta aos olhos a constatação de que a iniciativa privada, ainda que opere os serviços de água e esgoto em apenas 6% dos Municípios (consideradas também as contratações para a execução de apenas parte dos serviços), tem respondido por cerca de 20% dos investimentos realizados no setor, conforme dados disponíveis no Panorama da Participação Privada no Saneamento 2018.
Considerando a natureza tarifária dos preços públicos cobrados pelos serviços de água e esgoto, que pressupõe o pagamento de uma contraprestação por um serviço efetivamente prestado, seria muito mais adequado que o ônus de subsidiar operações deficitárias fosse arcado pelo contribuinte, não pelo usuário. Merece ser analisada, nesse ponto, a experiência positiva de países como Inglaterra, Colômbia e Chile na utilização do subsídio direto do Poder Público para o usuário de baixa renda (e não para o operador dos serviços).
Um subsídio mais transparente certamente permitiria efetividade ao controle social, um dos princípios fundamentais na prestação destes serviços (cf. art. 3º, X, da Lei 11.445/2007). De fato, na atual sistemática, na qual as próprias companhias estaduais não informam (ou mesmo desconhecem) quem está subsidiando quem, é impossível que a sociedade exerça de fato o controle social, o que inclusive é condição de validade destes contratos (cf. art. 11, V, da Lei 11.445/07).
Diante destes elementos, a discussão sobre o esgotamento do modelo de subsídios cruzados originado no PLANASA e as alternativas para viabilizar a tão esperada universalização destes serviços essenciais nunca foi mais oportuna. A questão, agora pautada pelas discussões do Projeto de Lei nº 3261/2019, pode passar a ser tratada mais sob a perspectiva do usuário do que a do prestador.