Resumo: O presente trabalho visa abordar o tema da conciliação dos interesses conflitantes dentro da órbita dos direitos dos consumidores. Para tanto, inicia-se a discussão demonstrando a importância e as vantagens deste tipo de composição. Observadas as peculiaridades da natureza jurídica do direito em questão, enfrenta-se o tema do conteúdo do TAC. E, por fim, demonstram-se as consequências do acordo por meio do Termo de Ajustamento de Conduta.
Palavras-chave: Conciliação; Tutela Coletiva; Termo de Ajustamento de Conduta na fase extraprocessual; Natureza jurídica; Consequências do pacto.
Sumário: 1. A conciliação e a indisponibilidade de direitos coletivos lato sensu; 2. A natureza jurídica do ajustamento de conduta; 3. Conteúdo do TAC. 4. Consequências do pacto. 5. Considerações finais. 6. Bibliografia.
1. A conciliação e a indisponibilidade de direitos coletivos lato sensu
Em que pese a literalidade do art. 841 do CC/02, que versa sobre a transação quanto a direitos patrimoniais de caráter privado, é amplamente aceita a possibilidade de conciliação em causas coletivas, especialmente diante da expressa previsão do compromisso de ajustamento de conduta.
O ordenamento jurídico elege algumas razões para determinar a indisponibilidade dos direitos. Na maioria dos casos, o motivo está ligado à sua patrimonialidade. Por sua vez, os direitos metaindividuais apresentam características peculiares que poderiam, em tese, representar um entrave para este tipo solução de conflito. Contudo, diante da prevalência do interesse da efetiva tutela transindividual, esta restrição deve ser mitigada. “Seria render homenagem à forma em detrimento do próprio interesse tutelado”[1].
No caso dos direitos difusos, não se poderia considerar possível que um direito transindividual, cujo titular é indeterminado, singularizado pela indivisibilidade ampla e absoluta, possa ser objeto de manipulação de um determinado sujeito em prejuízo da coletividade[2]. Já quanto ao direito coletivo stricto sensu, em razão da indivisibilidade interna dos bens ou interesses, não seria cabível um indivíduo, unilateralmente, dispor do interesse da coletividade, ou mesmo de seu próprio interesse enquanto associado[3]. Por fim, nos direitos individuais homogêneos, a indisponibilidade está relacionada à tutela coletiva e não propriamente ao direito, já que cada indivíduo pode tratá-lo em sua esfera individual[4].
Essas particularidades dos direitos coletivos lato sensu demonstram que não é possível tratar o processo coletivo nos mesmos moldes da tutela dos direitos individuais. Outrossim, o novo enfoque de acesso à justiça reconhece a necessidade de adaptar o processo civil ao litígio coletivo.
É interessante destacar a visão de Alexandre Amaral Gavronski que esclarece que não há uma disposição dos direitos no resultado da construção consensual entre o legitimado e o responsável pelo dano ou ameaça de lesão. Em verdade, há uma concretização de direito que deve operar com base na disciplina positivada do interesse, lembrando sempre que o compromisso é de ajustamento da conduta às exigências legais. Ademais, tal concretização também deve guiar-se pela regra da proporcionalidade, especialmente no que concerne à adequação das medidas propostas aos fins de proteção e efetividade específicos e à revisão de meios suficientes à efetiva implementação, tendo em conta as concretas possibilidades daquele que se submete ao TAC, a complexidade da realidade disciplinada e as necessidades dos titulares[5].
“Desde logo, convém afirmar que o necessário respeito à ordem jurídica positiva não elimina, apenas reduz a liberdade do legitimado na concretização do direito pelas técnicas extraprocessuais. Em uma sociedade complexa, em que a lei é necessariamente genérica e o direito crescentemente dessubstantivado (ou deslegalizado), muitos são os aspectos dependentes de concretização notadamente no que respeita às condições de modo, tempo e lugar. Assim, em tudo que a norma não pré-estabelece os critérios para essa concretização, ou seja, na lacuna, há um considerável espaço de atuação do legitimado coletivo na concretização do direito. Antes da fixação dos aspetos lacunosos, não há direito a um determinado prazo ou à implementação de um dado modo ou em um dado lugar sobre o qual se possa dispor”[6].
Nesse panorama, Marco Antonio Marcondes defende a necessidade de “romper dogmas”[7] visando uma efetiva tutela dos direitos metaindividuais. Para o autor, embora não sejam de ordem patrimonial, os interesses difusos e coletivos não devem se submeter ao quanto dispõe o art. 1035 do CC[8] pelas seguintes razões:
“a) esse dispositivo foi editado sob o manto de uma ordem jurídica diversa da que se tem atualmente; b) no momento em que se reconhece constitucionalmente a tutela dos interesses coletivos não se pode impedir a efetivação deles, cerceando a atuação de quem por eles compete lutar; c) o Ministério Público, bem como as pessoas do art. 5°, caput, ostenta legitimidade autônoma para propositura da ação civil pública, logo, não lhe empece as limitações da condição de substituto processual do direito processual comum; d) a indisponibilidade do direito não será afetada porque o que será objeto da transação será a maneira da implementação mais rápida do interesse tutelado e ficará prestigiada a instrumentalidade do processo; e e) a Lei de Ação Civil Pública prevê a possibilidade de compromisso de ajustamento”[9].
Com efeito, nas ações coletivas de defesa de interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos, os colegitimados não agem em busca de direito próprio, mas sim de interesses transindividuais. Embora alguns deles, em parte, possam também estar defendendo interesse próprio, como as associações civis ou as fundações privadas, que buscam fins estatutários (para aqueles que entendem que essas pessoas têm legitimidade, esta polêmica será abordada no tópico seguinte), ou o próprio Estado e seus órgãos, buscando alcançar fins institucionais, a essência do objeto litigioso coletivo será sempre a reparação ou tutela acautelatória de interesses transindividuais[10].
Sendo assim, é fundamental que o legitimado adote uma postura direcionada à construção de uma solução acordada, especialmente quando não houver, por parte do obrigado uma pré-disposição à negociação.
Diante desse contexto, é crescente a evolução de estudos tendentes a desenvolver técnicas de negociação para capacitar os protagonistas das soluções extraprocessuais, de modo a incrementar significativamente a efetividade da tutela coletiva por meio da construção de consensos em que não haja abdicação do conteúdo positivado no direito, mas tão somente a concretização negociada da norma[11]. Com base nestes estudos realizados, especialmente, na Universidade de Havard[12], para alcançar o sucesso das negociações, não realizando, necessariamente, concessões, é fundamental:
“1) evitar confundir as pessoas (no caso o obrigado) com o problema (o descumprimento da norma); 2) priorizar o equacionamento dos interesses envolvidos ao invés das posições de antagonismo; 3) procurar identificar ganhos mútuos (regra do ganha-ganha); 4) pautar a negociação em critérios objetivos”[13].
É importante destacar que a conciliação sobre direitos indisponíveis já é encontrada no mundo jurídico pátrio, cita-se, como exemplo, as causas alimentícias. Outrossim, a Constituição Federal permite conciliação no âmbito penal para as “infrações de menor potencial ofensivo”, conforme autorização dada pelo art. 98, inc. I, e posteriormente regulamentada, no âmbito dos Juizados Especiais, pelo art. 72 da lei n° 9.099/95. A lei n° 9.605/98, que dispõe sobre crimes ambientais, também permite a transação penal, condicionada à prévia composição de dano, salvo caso de comprovada impossibilidade.
Com base no exposto, a partir do desenvolvimento cultural, social, jurídico e político do Brasil criou-se, de forma original[14], o chamado Termo de Ajustamento de Conduta compatibilizando, assim, a possibilidade de acordo com a indisponibilidade inata desta categoria de direitos.
2. A natureza jurídica do ajustamento de conduta
Não há um consenso na doutrina quanto à definição da natureza jurídica deste instituto. Os posicionamentos resumem-se, basicamente, em duas vertentes, uma que o define como transação e outra o reconhece como ato jurídico diverso, no sentido amplo da palavra[15].
Aqueles que consideram o TAC como modalidade específica de transação[16], defendem que este seria um tipo de “transação especial” diante da indisponibilidade intrínseca dos direitos transindividuais, bem como da diversidade entre os legitimados a celebrar o ajuste e os titulares do direito material. Assim, cogita-se em um temperamento do comando do art. 840 do CC/02 que revela a licitude do fato dos interessados prevenirem ou terminarem o litígio mediante concessões mútuas.
Neste sentido, Daniel Roberto Fink sustenta que o objeto do ajustamento de conduta são as condições de modo, tempo e lugar do cumprimento das obrigações destinadas a reparar os danos causados ou evitá-los, e não os direitos dos consumidores, estes sim indisponíveis. Defende que estas obrigações possuem um completo conteúdo patrimonial, uma vez que se destinam a reparar vícios ou fatos de produtos ou serviços. Acrescenta, ainda, que mesmo não tendo conteúdo patrimonial imediato, como ocorre com os danos morais, sua reparação será avaliada nesses termos[17].
Destarte, o intitulado autor estabelece que o regime jurídico que disciplina o TAC é a transação sob uma interpretação restritiva, ou seja, apenas naquilo em que couber, deve-se aplicar o regime da transação prevista no Código Civil, já que os direitos dos consumidores são indisponíveis e de ordem pública[18]. Este mesmo entendimento, baseado na defesa de uma categoria especial de transação, é seguido por autores como Rodolfo de Camargo Mancuso[19], Luiz Manoel Gomes Jr.[20], Pedro Lenza[21], Sérgio Shimura[22] e Marco Antonio Marcondes Pereira[23].
Ricardo de Barros Leonel, também defende que não se trata de transação na acepção precisa do vocábulo, já que não há concessões mútuas. Desta forma, defende que este instrumento amolda-se melhor à espécie denominada “submissão”, já que há uma subordinação do responsável pela lesão ao cumprimento dos preceitos protetivos, respeitando os interesses supra-individuais[24].
Por outro lado, parte da doutrina defende que não se pode cogitar na hipótese de transação justamente porque os direitos são indisponíveis, possuem uma natureza extrapatrimonial e a legitimação para o seu exercício está submetida a determinação das peculiaridades, como visto[25].
Hugo Nigro Mazzilli define o TAC como ato administrativo negocial por meio do qual só o causador do dano se compromete. O órgão público que o toma a nada se submete, exceto, implicitamente, a não propor ação de conhecimento para pedir aquilo que já está reconhecido no título. Desta forma, esclarece que reconhecer a natureza de transação, seria realizar um contrato, supondo um poder de disposição dos contraentes. Entretanto, ressalta que na formação do TAC não são feitas concessões[26].
À seu turno, Geisa Rodrigues pondera que se trata de negócio jurídico bilateral[27] da Administração (e não negócio jurídico administrativo), haja vista que a Administração está em uma posição superior ao administrado[28]. Ressalva, ainda, que esta figura não pode ser identificada com o contrato, embora seja negócio já que há manifestação de vontade tanto dos legitimados quanto do ofensor dos direitos. Outrossim, argui que a flexibilização das condições de prazo, modo e lugar do adimplemento não está na esfera de transação, mas sim de negociação, sendo pautada pelo atendimento aos fins e princípios que incidem sobre a matéria. Por fim, acrescenta que a bilaterialidade está presente no fato de envolver, necessariamente, dois sujeitos, não podendo cogitar-se em “auto-ajustamento”, quando os legitimados sejam os causadores da ameaça ou do dano[29].
Observa-se que, este grande dissenso reside nos esforços empreendidos pelos doutrinadores em utilizar conceitos que foram concebidos para disciplinar relações individuais, para tutelar relações jurídicas emergentes que se caracterizam por sua dimensão coletiva[30].
Com efeito, compartilhe-se a ideia de que o fato do ajustamento de conduta evitar ou encerrar conflito judicial não o identifica necessariamente com o instituto da transação. Esta é apenas uma espécie do gênero conciliação[31]. Ademais, concorda-se com as críticas realizadas no sentido de que o enquadramento da transação às peculiaridades da tutela coletiva acaba por desconfigurar o próprio instituto. Desta forma, adere-se à ideia defendida Celso Antonio Fiorillo, Marcelo Abelha Rodrigues, Rosa Maria Andrade e Luis Roberto Proença que defendem que dadas as suas peculiaridades, em verdade, trata-se de um comprometimento ao ajuste de conduta às exigências legais, instituto novo, que existe per se, com suas próprias características[32].
Por outro lado, Antonio Gidi critica essas disputas acadêmicas, qualificando-as como “vazias e inconseqüentes”. Para ele esse dissenso é meramente terminológico, camuflado de “vestes de questões substanciais”. “Isso leva, não raro, a análises ambíguas, confusas e contraditórias e não se sabe exatamente o que o autor quer dizer”[33].
Em suma, não resta dúvida em tratá-lo como “modalidade de acordo, com nítida finalidade conciliatória”[34]. A grande parte da doutrina concorda que na prática não se pode dispor dos direitos transindividuais, sendo possível apenas que uma negociação quanto às questões acessórias atinentes ao modo, tempo e lugar. Sendo assim, deve-se estar atento às peculiaridades do caso concreto diante da complexidade que envolve esta modalidade de interesses.
3. O conteúdo do TAC
Com base no exposto, o TAC deve ser visto como um ajuste pelo qual o causador ou ameaçador do dano aos direitos coletivos lato sensu aceita submeter-se à legalidade. Assim, este instrumento visa “ajustar a conduta do infrator às exigências legais, mediante cominações, divisando um acordo extrajudicial, que dispensa homologação judicial, salvo se ajuste for feito nos autos de uma ação coletiva já instaurada[35]”.
Tratar a conciliação dos direitos coletivos por meio do termo de ajustamento de conduta não significa afirmar que os legitimados possam dispor do direito que não lhes pertencem. O que se permite é discutir o modo mais eficaz de concretizar a defesa do direito coletivo tutelado, moldando a melhor maneira de materializar a obrigação fixada no TAC. Portanto, a fixação da obrigação no compromisso envolve atividade vinculada, reservando-se certo grau de discricionariedade apenas quanto aos critérios de adimplemento a serem observados pelo causador do dano, sempre atendendo aos limites impostos pelo princípio da razoabilidade[36]. Esclarece Daniel Roberto Fink:
“A possibilidade de se ajustarem as condições de modo, tempo e lugar do cumprimento das obrigações evitará maior dispêndio de tempo e dinheiro em ações judiciais, que devem ser deixadas como último recurso para composição de conflitos. O fornecedor, ao se submeter voluntariamente a corrigir sua ação danosa por meio do compromisso de ajustamento de conduta, o faz de livre e espontânea vontade, aumentando a possibilidade da satisfação das obrigações assumidas. O cumprimento de obrigações assumidas voluntariamente é mais fácil e mais frequente que o cumprimento de determinações cogentes emergentes de decisão judicial”[37].
Nas hipóteses em que o TAC é celebrado extraprocessualmente, deverá nele constar o mesmo conteúdo esperado na prestação jurisdicional, caso houvesse ação e fosse ela procedente. Isto porque o acordo substitui a fase de conhecimento, sendo formado um título executivo extrajudicial, que poderá, de imediato, ser executado em caso de descumprimento[38], conforme esclarece Fernando Grella Vieira.
Com efeito, o acordo poderá ter por conteúdo obrigação de dar, fazer e não fazer, sujeitando-se o infrator às cominações pecuniárias caso descumpra o quanto acordado pelas partes, podendo ser executadas diretamente como título extrajudicial no caso de TAC pré-processual ou como título judicial se o firmado deu-se em juízo. “Assim, pode ser obtida não apenas a tutela específica no compromisso de ajustamento, mas também a indenização ou reparação do dano causado, a constituição ou desconstituição de certa situação jurídica, etc”[39].
Desta forma, deve-se garantir que estejam presentes os requisitos necessários à formação do título executivo extrajudicial ou judicial e à sua exigibilidade, de modo que o legitimado possa propor a ação de execução sem ter que passar necessariamente pela ação de conhecimento. Geisa Rodrigues, sinteticamente, indicam alguns pontos que devem ser seguidos para que o título seja líquido e certo, de modo que o exame do instrumento permita:
“a) a identificação de quem é o obrigado, inclusive com sua qualificação jurídica adequada; b) a definição das obrigações assumidas, devendo estas primarem pela clareza e objetividade; c) a fixação dos prazos para que o cumprimento das obrigações, ou a determinação de cumprimento imediato das mesmas, e d) no caso das obrigações complexas deve restar evidente que os estudos e projetos anexos ao instrumento o integram”[40].
Impende destacar que, também, não há um consenso na doutrina quanto à possibilidade de se estabelecer cláusula penal compensatória da obrigação principal, mais perdas e danos. Aqueles que não a admitem, o fazem com base na impossibilidade de se definir um limite máximo à responsabilidade. Ocorre que, conforme ensinamentos de Daniel Roberto Fink, a prática tem demonstrado esta possibilidade, estabelecendo-se previamente um montante que representaria o valor da obrigação e seus acréscimos que de fato se mostre suficiente, diante da indisponibilidade do direito material e do princípio da plena tutela do consumidor. O benefício deste tipo de fixação se revela na vantagem de facilitar o processo de execução da obrigação, que, se não cumprida, poderá ser executada em quantia em dinheiro, possibilitando que terceiro, por conta do fornecedor, cumpra a obrigação principal[41].
Outro aspecto relevante no que tange a delimitação do objeto do TAC consiste na possibilidade de serem levadas em consideração as condições econômicas e políticas do fornecedor, revelando-se, assim, ainda mais atraente para o mesmo. Assim, aduz Daniel Roberto Fink:
“Na recomposição dos danos aos consumidores, sem abrir mão de quaisquer direitos, as partes poderão estabelecer um cronograma que atenda, além do interesse dos consumidores, também à situação econômica do fornecedor, evitando-se reflexos indesejáveis na produção, tais como desemprego e financiamentos a juros altos”[42].
Dentro especificamente da tutela coletiva do consumidor, o comando do art. 6°, §3° do Decreto n° 2.181/97[43], – que dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC), estabelece as normas gerais de aplicação das sanções administrativas previstas no CDC e dá outras providências -, em um rol não exaustivo, determina que o TAC deve conter cláusulas que estipulem condições sobre a obrigação do fornecedor de adequar sua conduta às exigências legais, no prazo ajustado.
Ademais, segundo o dispositivo, deve nele constar pena pecuniária, diária, pelo descumprimento do ajustado, levando-se em conta os critérios: a) o valor global da operação investigada (incluindo sobretudo, o lucro auferido ou esperado pelo fornecedor e inserindo-se completamente o componente econômico na determinação da garantia do compromisso); b) o valor do produto ou serviço em questão; c) os antecedentes do infrator (como forma de apurar a verdadeira intenção do fornecedor em dar cumprimento às obrigações que assumiu, dando tratamento mais rigoroso ao fornecedor inadimplente); d) a situação econômica do infrator (considerando a capacidade de o fornecedor suportar o valor estabelecido como cláusula penal)[44].
A inserção destas cláusulas penais é recomendada por grande parte da doutrina, principalmente no que tange às obrigações que envolvem prestações de serviço. Desta forma, revela-se mais um artifício de coação ao cumprimento do TAC, visando a efetividade dos direitos em tela. Todavia, impende destacar que embora o dispositivo determine “pena pecuniária diária”, o lapso temporal deve atender às peculiaridades do caso concreto.
E, por fim, ainda conforme o supracitado decreto, o compromisso deve conter cláusulas que abordem o ressarcimento das despesas de investigação da infração e instrução do procedimento administrativo.
4. Consequências do pacto
A doutrina costuma elencar como principais efeitos da celebração do ajustamento de conduta: a) a determinação da responsabilidade do obrigado pelo cumprimento do ajustado com a formação do título executivo extrajudicial que define como deve ocorrer a prevenção ou reparação do dano, tema abordado no tópico referente ao conteúdo do TAC; b) a suspensão do procedimento administrativo no qual foi tomado, ou para o qual tenha repercussão; c) encerramento da investigação após seu cumprimento[45].
A análise das consequências do pacto remete à necessidade de um estudo acerca da legitimidade concorrente e disjuntiva diante da fiscalização do colegitimado em face do TAC firmado por outro sujeito autorizado por lei. Eis que o compromisso afeta diretamente os interesses dos mesmos, pois constitui um título executivo. Neste sentido, impende perquirir como compatibilizar a referida fiscalização com a possibilidade de revisão e com a segurança jurídica que a solução extraprocessual deve levar ao ofensor das regras legais. Ressalta-se que esta abordagem também pode ser aplicada para os casos em que ação civil pública não visa questionar o TAC firmado pelo colegitimado, ou seja, adequa-se à situação em que outro sujeito deseja ajuizar ACP discutindo as obrigações que devem ser assumidas para a prevenção ou reparação dos mesmos danos objeto de compromisso anterior.
No contexto da esfera consumerista, os parágrafos do art. 6° do Decreto n° 2.181/97 indicam alguns efeitos legais relacionados à questão. O parágrafo 1º do mencionado artigo determina que a celebração de termo de ajustamento de conduta não impede que outro, desde que mais vantajoso para o consumidor, seja lavrado por quaisquer das pessoas jurídicas de direito público integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça – SDE, por meio do seu Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor – DPDC, e os demais órgãos federais, estaduais, do Distrito Federal, municipais e as entidades civis de defesa do consumidor).
O comando do parágrafo 1° não expõe, com clareza, se o novo TAC substituirá o anterior. Daniel Roberto Fink defende que não haverá esta troca já que a expressão “mais vantajoso” comporta diversas interpretações. Desta forma, o entendimento mais adequado seria deixar ao alvitre do consumidor escolher entre um ou outro compromisso conforme entender ser o melhor para o exercício de seus direitos. Ainda, seguindo tal raciocínio, o autor expõe que caberá ao órgão de defesa do consumidor, em especial aquele que celebrou o último TAC, dar aos consumidores conhecimento dos termos de ambos os compromissos, a fim de que possam optar de forma mais consciente[46].
Com efeito, resta claro o objetivo do legislador em não restringir à apenas um legitimado a possibilidade de tomar por termo o ajustamento de conduta. Este raciocínio baseado na escolha do consumidor é plenamente cabível quando se trata de defesa de direitos individuais homogêneos, em que é possível identificar as vítimas, bem como de direitos coletivos stricto sensu, cuja titularidade pertence a um grupo, categoria ou classe de pessoas indeterminadas, mas determináveis.
Por outro lado, o enquadramento deste raciocínio para a defesa dos interesses difusos é incabível vez que não se pode conceber que o titular do direito, ou seja, a coletividade formada por pessoas indetermináveis, pondere e exerça esse poder de escolha do TAC mais vantajoso.
O parágrafo 2° do supracitado artigo complementa determinando que, a qualquer tempo, o órgão subscritor poderá, diante de novas informações ou se assim as circunstâncias o exigirem, retificar ou complementar o acordo firmado, determinando outras providências que se fizerem necessárias, sob pena de invalidade imediata do ato, dando-se seguimento ao procedimento administrativo eventualmente arquivado. Ao que parece, o legislador deseja a desconsideração pura e simples do compromisso de ajustamento perfeitamente concluído, de forma unilateral e administrativamente pelo órgão público.
É importante salientar que assim como o compromisso é um acordo de vontades, a sua consequente revisão também deverá ser. Para Daniel Roberto Fink, o alcance deste dispositivo abrange a possibilidade de denúncia unilateral do compromisso pelo órgão de defesa do consumidor, caso este novo acerto de vontades não seja possível, pois a norma indica que outras providências poderão ser tomadas, sob pena de invalidade do ato. Eis que não se pode impor administrativamente novos compromissos ao infrator, caso não queira assumi-los[47].
Sobre essas questões, destacam-se os seguintes posicionamentos mais relevantes.
Hugo Mazzilli[48], Sérgio Shimura e Luiz Roberto Proença defendem que o TAC constitui uma garantia mínima, de modo que o mesmo ou outro legitimado pode pedir em juízo mais do que pactuado, independentemente do conteúdo do termo. Defendo tal posicionamento, o último doutrinador aduz que “regem a matéria o princípio da indisponibilidade do direito material objeto da avença e o fato de ser a legitimação para a ação civil pública concorrente e disjuntiva”[49]. O segundo autor entende que o TAC impede o aforamento de ação coletiva, se houver identidade de objetos, revelando que:
“Em verdade, a razão do ajustamento é exatamente obviar os percalços inerentes à demanda judicial, aumentando ainda mais o volume dos processos, razão porque a lei lhe confere força executiva. Assim, careceria de interesse processual o ente legitimado que postulasse o mesmo direito, já reconhecido no termo de compromisso”[50].
A seu turno, Hugo de Nigro Mazzili esclarece que nem sempre a ação anulatória do compromisso será necessária e, em certos casos, nem mesmo será conveniente, pois se for considerado insatisfatório, mesmo assim já terá assegurado um mínimo em favor dos titulares dos direitos transindividuais. Desta forma, conclui que “prescindindo da necessidade de anulá-lo, qualquer colegitimado poderá discordar do compromisso de ajustamento de conduta e propor diretamente a ação cabível”[51]. Caso contrário, esses interesses poderiam ficar sem possibilidade de defesa em juízo.
Por outro lado, a ação civil pública sempre pode ser proposta pelos demais colegitimados, desde que objetive complementar obrigações contidas no TAC, ou para impugná-los[52]. Neste sentido, Edis Milaré expõe que:
“O ajuizamento da ação civil pública por outro ente, co-legitimado, sob pena de se vulnerar o princípio da segurança jurídica, só será possível para suprir a omissão da transação (por exemplo, a prestação necessária, não incluída no compromisso) ou em razão de vício propriamente dito (por exemplo, o estabelecimento de obrigações em condições atentatórias à finalidade da lei). Em qualquer dessas situações não poderá o compromisso ser ignorado, pois a ação civil pública ou visará ao fim supletivo ou será cumulativa com o pedido de desconstituição do compromisso”[53].
Adotando outro entendimento, Geisa de Assis Rodrigues aduz que os outros colegitimados se vinculam ao ajuste daquela conduta específica e só podem adotar alguma medida judicial contra o obrigado se invalidarem o compromisso[54]. O TAC “somente será eficaz para os demais colegitimados à defesa dos direitos transindividuais quando atender plenamente ao objetivo da norma, de ensejar, naquele caso concreto, a adequação da conduta às exigências legais”[55]. Para concluir qual será o melhor TAC, a intitulada autora distingue o termo que objetiva prevenir fatos gravosos a um direito pluriindividual e os ajustes que tenham conteúdo eminentemente reparatório.
Na primeira hipótese, a insuficiência das medidas assumidas para a prevenção do dano não podem conduzir à sua ineficácia, sob pena de se criar uma situação mais desfavorável ainda ao direito transindividual protegido. A solução, neste caso, seria complementá-lo, seja através de um aditivo ao termo já celebrado, seja através da via judicial.
Já quanto aos ajustes que versam sobre a reparação, a mesma tem que ser a mais integral possível, tendo como limite o que seria obtido por meio da tutela judicial. “A tutela extrajudicial, assim, não pode culminar em uma redução da garantia em relação ao fundo do direito, o que a torna ineficaz para os demais co-legitimados”[56]. Desse modo, defende que somente haverá eficácia do compromisso quando atender plenamente ao direito transindividual. Caso contrário, não haveria uma verdadeira adequação às exigências da lei, e nem, por conseguinte, um ajustamento de conduta, independentemente do rótulo que se atribua a este ato.
Assim, segundo entendimento da intitulada autora, “a existência do compromisso de ajustamento de conduta é um óbice à propositura de uma ação civil pública genérica, versando sobre os mesmos fatos”[57], por falta de interesse processual.
Seguindo as linhas gerais de Geisa Rodrigues com alguns temperamentos, Alexandre Amaral Gavronski[58] desenvolve outra solução. O citado autor defende que o compromisso de ajustamento de conduta é a solução jurídica para o caso concreto ou a concretização dos direitos e interesses coletivos em questão, sendo assim, mais que uma garantia mínima. Desse modo, só pode ser revisto em juízo se não puder ser tomado como uma solução correta para a proteção dos direitos e interesses coletivos envolvidos. Isto ocorrerá quando houver vícios na formação de compromisso (erro, coação, ausência injustificada de isonomia, entre outros), ou se contrariar a lei ou desatender a regra da proporcionalidade, que acontece quando as obrigações assumidas no compromisso não forem adequadas ou suficientes à respectiva proteção e forem os prazos e condições pactuados desproporcionais à complexidade das medidas a serem implementadas. Na primeira hipótese, a invalidação compromete integralmente o compromisso ou a cláusula questionada. Já na segunda demanda, haverá tão somente a correção específica do ponto que identifica a falta de proporcionalidade, preservando dentro do possível a disposição pactuada.
Destarte, é ônus do legitimado coletivo, que pretende dar para o mesmo fato solução jurídica diversa da alcançada pelo TAC, demonstrar especificamente a incorreção deste.
O intitulado autor afasta-se do entendimento de Geisa Rodrigues ao não defender a necessária invalidação do compromisso para tornar cabível a discussão do termo, salvo se a solução ajustada contrariar a lei. De qualquer sorte, a solução jurídica, por ele apresentada para a questão fática, não deve ser ignorada na nova ação civil pública em que ela for rediscutida.
Noutro giro, não comunga com as ideias de Hugo Mazzilli e seus adeptos, pois acredita ser inquestionável que havendo identidade entre o pedido da ação civil pública e a obrigação assumida no compromisso, faltará interesse de agir. Para ele, “a ação civil pública de conhecimento tem por finalidade, basicamente concretizar o direito ou interesse coletivo supostamente lesado ou ameaçado, e, na sequência, torná-lo efetivo, realizá-lo materialmente”. A crítica baseia-se na essência do TAC que é justamente contemplar uma solução jurídica que concretize esse direito. Neste sentido, conclui:
“Se ele (o compromisso de ajustamento) está sendo cumprido ou em vias de cumprimento, então, em princípio, não há necessidade de um provimento judicial nem para concretizar o direito, pois isso já ocorreu no termo de ajustamento de conduta, nem para efetivá-lo, pois isso já ocorreu, está ocorrendo ou vai ocorrer no tempo pactuado. Se não está sendo cumprido, qualquer legitimado pode buscar em juízo seu cumprimento, mas então o interesse de agir é para esse específico fim, não para nova concretização do direito”[59].
Desta forma, tanto no caso de rediscussão do TAC quanto na hipótese de ajuizamento de ação civil pública genérica, não se pode desprezar o compromisso de ajustamento perfeitamente firmado por um legitimado. Afinal, “a busca de uma solução mais correta (melhor) tende ao infinito, ou, mais especificamente, aos vinte anos que a ação levará até transitar em julgado”[60].
Nesse panorama, o TAC deve oferecer uma segurança jurídica ao responsável pelos danos ou ameaças de lesão, sendo este o principal estímulo para sua celebração, consagrando-o como um meio alternativo de solução de controvérsias. Ana Luiza de Andrade Nery pondera que se o autor da ofensa aceita a submeter-se ao ajuste de conduta, sujeito ainda a cominações em caso de descumprimento, há de atribuir-lhe um mínimo de segurança jurídica. “E essa segurança jurídica consiste exatamente em não se poder desprezar a existência do compromisso”[61].
Nesse sentido, o Conselho Superior do Ministério Público de São Paulo alterou a Súmula n° 30 passando a conter a seguinte redação:
“A formalização de compromisso de ajustamento de conduta entre o autor de dano a interesse difuso e coletivo com o respectivo órgão não autoriza o arquivamento do inquérito civil. O arquivamento deverá ser formalizado após a comprovação da efetiva reparação de dano ou da constatação de que o órgão público tomou providências necessárias para a execução judicial do termo de ajustamento”[62].
Desta forma, é possível concluir que o Parquet reconhece que o compromisso de ajustamento de conduta celebrado por outro colegitimado efetivamente vincula, pois o Ministério Público mantém o inquérito civil suspenso até que tenha notícia do adimplemento do compromisso celebrado, momento em que esse procedimento pode ser arquivado[63]. Em outras palavras, o quanto acordado por outro colegitimado por meio do TAC também pode ser eficaz, “motivo pelo qual a instituição ministerial deve aguardar o cumprimento do quanto avençado pelas partes para depois arquivar o inquérito civil”[64].
Seguindo este mesmo raciocínio, o legislador determinou no art. 6°, § 4° do Decreto n° 2.181/97 que a celebração do compromisso de ajustamento suspenderá o curso do processo administrativo, se instaurado, que somente será arquivado após atendidas todas as condições estabelecidas no respectivo termo.
Sendo resultado de uma negociação, espera-se que o compromisso seja espontaneamente cumprido. Para aferir o irregular desempenho, com base na liquidez e certeza do TAC, há que se demonstrar o decurso dos prazos previstos no instrumento, bem como o inadimplemento das obrigações. Nos casos em que o cumprimento não se verifica, não resta outra alternativa que a execução do título executivo formado, que deve obedecer às normas gerais do processo de execução, dependendo do tipo de obrigação[65]. Ademais, os outros colegitimados podem também promover a execução do ajustamento de conduta, posto que também são credores das obrigações assumidas[66].
O supramencionado decreto ainda traz uma inovação, introduzida pelo art. 6°, §3°, inciso III, qual seja, a possibilidade de ressarcimento das despesas de investigação da infração e instrução do procedimento administrativo. Em que pese o dispositivo não indicar a destinação destes recursos, nada impede que legislação estadual ou municipal determine que este montante fique retido no próprio órgão de proteção e defesa do consumidor[67].
Outrossim, existe, ainda, a possibilidade do legitimado, em circunstâncias excepcionais, propor ação de homologação do ajustamento de conduta com a participação do obrigado, obtendo, assim, um título executivo judicial, nos moldes do art. 57 da lei n° 9099/96 que, embora discipline ações nos Juizados Especiais Cíveis, é aplicável a qualquer situação[68].
Por fim, insta ressaltar que é possível que, após o cumprimento fiel do que tenha sido acordado, se conclua pela inadequação das medidas adotadas para o atendimento das exigências legais. Em outras palavras, cumpriu-se o compromisso, porém a lei não foi plenamente atendida. Desta forma, como o mandamento legal continua sendo desacatado, mantém-se a pretensão dos legitimados, inclusive daquele que pactuou o compromisso[69].
5. Considerações finais
Diante da necessidade de uma eficaz tutela para os conflitos metaindividuais, a doutrina se depara com a urgente demanda para uma adaptação criativa do arsenal processual existente, de modo a moldá-lo às novas exigências emergentes da sociedade.
Como demonstrado, é plenamente possível e recomendável acordo em face de direitos transindividuais. Neste contexto, o Termo de Ajustamento de Conduta torna-se um instrumento muito poderoso e eficaz. Afinal, o próprio causador do dano propõe-se espontaneamente a ajustar seu comportamento e assume essa obrigação por termo.
Os operadores do direito, em especial os advogados e as partes, precisam parar de manipular o processo como um jogo, e amadurecer a perspectiva quanto à realização de acordos e ao cumprimento voluntário do direito e da sentença, seguindo, assim, uma tendência global.
O que se busca, atualmente, é uma nova ponderação do due process of law que não se restringe apenas aos institutos processuais, como também abrange uma mudança do posicionamento dos protagonistas do cenário jurídico em face das vantagens de conciliação dos conflitos coletivos. A hipótese de substituição do processo cognitivo, ainda não sentenciado que poderia desdobrar-se em recursos, por uma decisão irrecorrível, construída pelas partes, é a melhor composição para uma eficaz resolução do litígio.
Informações Sobre o Autor
Roberta Pires Alvim
Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Pós-graduada em Direito do Estado pelo Instituto de Excelência Juspodivm