Introdução
Em tempos de globalização pode-se ter acesso a informações de cada ponto do mundo de forma quase simultânea. Assim, a xenofobia, a homofobia e o racismo manifestados por cada cidadão, nação e governo ganham perspectivas planetárias.
Entretanto, apesar da percepção de que o preconceito é o mal dos últimos séculos e que, em seu nome justificam-se atrocidades e genocídios, os direitos fundamentais também têm conquistado um espaço nunca antes imaginado, embora ainda não tenham atingido o patamar de importância que lhes é devido.
A cada atitude preconceituosa e cruel contrapõem-se conquistas e ampliações significativas quanto ao alcance dos direitos humanos à vida e à dignidade.
A consideração mútua de cada ser humano como igual, apesar de circunstanciais e aparentes diferenças é o objetivo dos movimentos mundiais em prol do estabelecimento definitivo de uma consciência sócio-jurídica concreta e inclusiva baseada nos direitos e garantias fundamentais.
Sob este prisma, analisaremos a diversidade sexual representada pela transexualidade, pois o conhecimento das peculiaridades do que nos diferencia uns dos outros proporciona a aproximação esperada para que incluamos todos os indivíduos humanos no mesmo patamar de igualdade.
Transexualidade
Muitas vertentes da ciência, como a psicologia, a neurologia e a psiquiatria vêm buscando uma definição para o fenômeno da transexualidade. No entanto, poucos autores da área médica destoam do senso comum que considera a transexualidade uma patologia.
Assim como a homossexualidade foi considerada pela medicina uma doença até o final do século XX, permanece sendo assim considerada a transexualidade.
Para tratarmos sobre a transexualidade, primeiramente, cabe relembrar e esclarecer alguns conceitos básicos, como o de personalidade, auto-imagem, sexualidade, bem como os termos usuais como, por exemplo, psicossexual, identidade e papel de gênero.
Personalidade
Para STAATS (1973), a personalidade é o fator determinante do comportamento do indivíduo, entretanto, percebe-se que o comportamento e o repertório de respostas a estímulos externos antecedem e transcendem à formação da personalidade. Isto é, há uma força interna inerente à essência de cada ser humano que determina seu funcionamento operante e a forma com que este indivíduo será influenciado pelo meio social.
“A personalidade, portanto, partiria de um histórico que se estrutura a partir de interações que acontecem na sociedade e na cultura e cujas variáveis são de significado central para o desenvolvimento de comportamentos adquiridos através da manipulação do próprio ambiente e dos arranjos existentes no repertório de respostas de cada indivíduo”. (MOSQUERA, MOURIÑO, 1974)
Conclui-se, então que a personalidade é construída através do aprendizado resultante do ajustamento humano ao regramento social e a estímulos externos que geram a emissão de um repertório de respostas próprias de cada indivíduo de acordo com sua essência, constituindo assim, o modo principal do desenvolvimento do auto-conceito, que, por sua vez, consubstancia o desejo de sentir-se coerente/congruente consigo mesmo.
Auto-imagem
A auto-imagem é o conhecimento de si mesmo, de suas preferências, sentimentos, atitudes e idéias. É o núcleo da personalidade com o qual nos defrontamos perante os outros indivíduos. Esta auto-imagem se desenvolve num processo constante de valorações inconscientes baseadas em aspectos primitivos da própria estrutura pessoal e que determinam a vida individual e a forma com que o indivíduo se integrará socialmente.
Embora a auto-imagem perceba e reaja ao ambiente e adquiria novas dimensões durante o crescimento e o desenvolvimento, há uma perenidade e constância inalterável denominada de “conhecimento da própria estrutura, ou seja, o corpo na existência” (MOSQUERA, MOURIÑO, 1974).
Sexualidade
O comportamento sexual humano é determinado por diversos fatores relacionados entre si. Sejam eles: auto-conceito, relacionamentos interpessoais, fatores biológicos, genéticos, comportamentais, culturais e de personalidade.
Não se pode limitar a sexualidade humana às funções reprodutivas e coitais.
No universo das possibilidades de manifestação da sexualidade nos seres humanos há desvios comportamentais importantes que devem ser considerados em suas diferenças, porém, compreendidos e respeitados por constituírem livre exercício da autodeterminação, direito fundamental inerente à cada pessoa humana.
A sexualidade interliga-se à totalidade da personalidade do indivíduo e, portanto, intrinsecamente relacionada com seu auto-conceito. Desta forma, afeta as relações interpessoais do indivíduo e seus padrões de comportamento, não podendo ser considerada como elemento apartado.
Psicossexual
A sexualidade depende de três fatores: identidade sexual, identidade de gênero e comportamento sexual. Esses fatores, relacionados entre si, desenvolvem a personalidade, sendo, por esse motivo, denominados também como fatores psicossexuais. (COMPÊNDIO DE PSIQUIATRIA – CIENCIAS COMPORTAMENTAIS, PSIQUIATRIA CLÍNICA,1993)
O termo psicossexual implica no desenvolvimento da personalidade e na forma de seu funcionamento e manifestação das características da sexualidade de cada indivíduo.
A biologia, por si só, ou o sexo registral e documental não configuram a expressão verossímil do gênero psicológico e social a ser desenvolvido e vivenciado na fase adulta.
Diante disso, pode-se afirmar seguramente ser a sexualidade mais do que o sexo físico, coital ou reprodutivo e menos do que todas as facetas de comportamento que objetivam o prazer.
Portanto, a psicossexualidade consiste na exteriorização do auto-conceito do gênero percebido internamente pela pessoa humana.
Identidade de gênero
O transexual possui um senso sobre sua masculinidade ou feminilidade discordante com seu sexo anatômico. Esse senso denomina-se identidade de gênero.
A identidade de gênero é a forma como a pessoa percebe sua masculinidade ou feminilidade. A partir desta íntima convicção se autodetermina como sendo do gênero masculino ou feminino.
A identidade de gênero conota a forma como o indivíduo se portará socialmente e determina os papéis aos quais ele se habilitará a desenvolver dentro de seus relacionamentos interpessoais, profissionais e sentimentais.
Sendo assim, os termos “sexo” e “gênero” se dissociam em essência. Cada ser humano possui duas identidades. Uma identidade sexual, referente aos caracteres biológicos, cromossômicos e gonádicos e uma identidade de gênero que consiste na expressão genuína da percepção do self e, decorrentes dela, as formas com que este indivíduo se relaciona consigo mesmo e mediante a sociedade em que está inserido.
Papel de gênero
Da identidade de gênero deriva o papel de gênero que é, literalmente, a expressão social da identidade de gênero do indivíduo. Isto é, consiste nas atitudes, preferências e posturas adotadas para expressar a masculinidade ou a feminilidade para que a pessoa possa se colocar na posição de homem ou de mulher.
Este papel de gênero não é estabelecido pelo sexo gonádico ou biológico. Ele é formado durante as várias fases de desenvolvimento, de forma cumulativa, pelas experiências individuais trocadas que configuram uma forma de aprendizado. Isto é, o indivíduo sente-se homem ou mulher, mas é através do papel de gênero que ele toma posse desta condição, através de um aprendizado constante.
Transtornos de identidade de gênero
A transexualidade é um transtorno de identidade de gênero.
Importante ressaltar as diferenças entre o sexo, a identidade de gênero e o papel de gênero.
– Identidade de gênero é o auto-conceito, a auto-percepção de ser homem ou de ser mulher;
– Papel de gênero é a forma de interação do indivíduo com a sociedade através da manifestação da sua identidade de gênero;
– Sexo é um conceito limitado às características anatômicas e fisiológicas que identificam o macho e a fêmea da espécie humana.
Enquanto o comportamento sexual dos mamíferos inferiores é determinado pelos hormônios pré-natais, estes mesmos hormônios, nos humanos, apenas influenciam, não determinam seu comportamento. Isto é, a testosterona, hormônio sexual masculino pode aumentar a libido da mulher, enquanto o estrógeno, hormônio sexual feminino pode reduzir a libido do homem.
O que se percebe é que estes hormônios apenas influenciam no comportamento e que jamais definirão a identidade de gênero que será percebida pelo indivíduo.
A transexualidade é uma incongruência entre a percepção íntima do indivíduo a respeito de sua sexualidade e a sua identidade sexual.
Poder-se-ia afirmar que esta “crença” do transexual de ser do outro sexo seria um delírio, entretanto, esta insistência de ser do sexo oposto não é um delírio, pois, o que o transexual quer realmente dizer é que ele se sente como um membro do outro sexo, e não que ele acredita verdadeiramente ser um membro do outro sexo. Isto é, embora ele reconheça o seu sexo biológico, o renega e repudia, afirmando a certeza de sentir-se como sendo do outro sexo.
Logo, o homem transexual, embora tenha consciência de seu sexo anatômico, sente-se como sendo uma mulher, e vice-versa.
Esta “disforia de gênero” tem ocorrência rara na sociedade, e é maior a sua incidência entre os homens do que entre as mulheres, 1 em 30.000 para entre os homens e 1 para 100.000 entre mulheres (COMPÊNDIO DE PSIQUIATRIA – CIENCIAS COMPORTAMENTAIS, PSIQUIATRIA CLÍNICA,1993, p. 799)
A transexualidade é caracterizada basicamente pelo desconforto persistente e crônico em relação ao próprio sexo anatômico, chegando a repulsa. Esta sensação deve ser percebida por um período mínimo de dois anos consecutiva e constantemente para que o “diagnóstico” seja correto. Além deste desconforto, segue uma sensação inabalável de ser do sexo oposto, sensação esta que determina que o indivíduo exerça o papel de gênero característico do sexo percebido.
Esta convicção de ser do sexo oposto leva o transexual a agir conforme o considerado adequado a este sexo, vestindo-se, ingerindo hormônios sexuais para amenizar as características secundárias do sexo biológico e desenvolver características sexuais secundárias do sexo “desejado”, e, podendo chegar a solicitações de Cirurgias de Redesignação Sexual.
Porém, diante de tantas adversidades e preconceitos impostos ao transexual no decorrer de seu desenvolvimento até a fase adulta, a maior parte destes indivíduos possuem um relacionamento social e ocupacional prejudicado e desenvolvem depressão, podendo atentar contra a própria incolumidade física, visando obter a adequação física desejada.
Esta sensação de inadequação dentro do próprio corpo e dentro da sociedade afeta sobremaneira o indivíduo, de forma que transexuais masculinos chegam a castrar a si próprios, na esperança de que um cirurgião resolva seus problemas, enquanto as mulheres utilizam faixas para reduzir o volume dos seios e procuram submeter-se a procedimentos cirúrgicos como a mastectomia (retirada das mamas), histerectomia (retirada do útero) e ooferectomia (retirada de ovários). Nos casos mais graves podem chegar ao suicídio, pois, muitos transexuais vêem a morte como forma de se livrar do corpo inadequado.
A contribuição da Medicina
Não há relatos de sucesso nas tentativas de “cura” da transexualidade. Entretanto, após um desenvolvimento sob condições sociais tão inóspitas e discriminatórias, o indivíduo transexual pode apresentar alguma disfunção psicológica advinda de traumas relacionados à sua inadequação social. No mais das vezes, essa inadequação pode desencadear processos depressivos e mutilatórios.
A sociedade humana está baseada em um conjunto de crenças e disposições estruturais hierarquizantes relativas a padrões relacionais e modelos identitários (hetero) sexistas e heteronormativos.
Estabeleceu-se um padrão de “normalidade” para a manifestação da sexualidade em que sexo e gênero coincidem e se correspondem e, desta coincidência nasce o papel de gênero “normal”. Ou seja, uma pessoa de sexo masculino é do gênero masculino e deve desenvolver um papel de gênero masculino. O mesmo vale às pessoas do sexo feminino. Assim, qualquer dissonância nesta lógica discriminante torna-se perversa e indesejável, merecendo, portanto, o repúdio social e jurídico.
Essa heterossexualização compulsória está disseminada em todos os setores da sociedade, de forma mais preocupante na área educacional, em que até os livros didáticos apresentam como padrão as famílias biparentais heterossexuais brancas, excluindo, desta forma, as minorias raciais e sexuais.
Os reflexos desta institucionalização do preconceito são percebidos nitidamente em números estatísticos. De um lado, tem-se o Brasil como líder mundial em assassinatos movidos por “homofobia” (estenda-se a “fobia” a Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transgêneros, Travestis e Transexuais), que atinge dois assassinatos por dia (Dados da UNESCO 2002); e nos números referentes ao nível cultural alcançado por essas pessoas que são alijadas de educação e dignidade desde as mais tenras idades, feridas em sua humanidade de formas atrozes e irreversíveis, gerando, assim, possivelmente, patologias relacionadas a essas “boas-vindas” rendidas aos transexuais desde crianças. Este tratamento “especial” dispensado é composto de ofensas à dignidade reiteradas até vinte e seis vezes por dia (!) (Pesquisas realizadas na Parada do Orgulho GLBT, Rio de Janeiro, 2004); espancamento, também diário, como forma de “moldar” uma identidade de gênero; desprezo; perversidade; e por, fim, o exílio social em sua própria pátria.
A estes casos, a medicina pode oferecer auxílio produtivo e satisfatório, através de terapias anti-depressivas e de grupo, objetivando amenizar os traumas causados pelo tratamento diferenciado repleto de preconceito e pela crueldade que lhes foi dedicado desde tenras idades.
Sendo assim, haja vista e irreversibilidade da condição transexual, a medicina percebe que a “cura” do desconforto causado pela transexualidade consiste na harmonização psicossomática dos vários vetores que definem o gênero, através da Cirurgia de Redesignação Sexual, quando necessária e de terapia hormonal supervisionada objetivando amenizar efeitos colaterais indesejados relativos a ação de hormônios sexuais, como hiperplasia hepática, neoplasias de mama e disfunções renais.
Como já foi demonstrado, as próprias ciências possuem bases discriminatórias, classificando como “patologias” quaisquer alterações no desenvolvimento do papel de gênero, fundamentando “concessões” judiciais aos transexuais como forma de suporte e auxílio no tratamento desta referida “enfermidade” psíquica. Quando, estas “boas ações” do Judiciário são, na verdade, uma mínima colaboração para manutenção da condição humana desses cidadãos.
A forma encontrada pelo Poder Judiciário, depois de compreendida a situação do transexual como sui generis foi buscar atenuar o desconforto destes indivíduos através do fato inconteste de que o sexo relaciona-se à fatores bio-fisiológicos enquanto o gênero representado pela identificação social representada pelo nome é o que qualifica e prevalece sobre os demais fatores, devendo, portanto, ser alterado mediante ação de retificação de registro civil, adequando o nome do indivíduo ao papel social por ele desenvolvido, através da manifestação de sua identidade de gênero genuína.
Um novo conceito de transexualidade
A transexualidade é uma possibilidade de manifestação da sexualidade humana, oposta e contrária à ordem heterosexista limitante e discriminante imposta e protegida através das instituições sociais modernas de educação.
Ambos os sexos são oprimidos pela compulsoriedade da heterossexualidade, os meninos treinados na insensibilidade e no distanciamento emocional e as meninas docilizadas e robotizadas pela ótica patriarcal.
Os papéis de gênero são pré-fixados e definidos, não admitindo desvios ou relativizações, haja vista os grandes movimentos feministas ocorridos durante o século XX para tentar igualar os direitos entre os sexos, que dirá as grandes movimentações sociais que são esperadas para igualar os direitos entre os gêneros?
“A diferença entre os sexos emerge como fundamento dos processos de subjetivação, mas não como indicadora de uma garantia que o sexo conferiria à constituição psicossexual do indivíduo: antes, a diferença sexual é, em si, uma condição diante da qual todo sujeito humano deverá se posicionar, havendo de ser elaborada nas experiências relacionais do indivíduo”. (LIONÇO, 2006)
Através de brincadeirinhas inocentes implícitas, jogos de palavras cruéis e táticas de guerra fria, a heterossexualidade tornou-se a manifestação da normalidade sexual, relegando quaisquer outras das infinitas formas humanas de manifestação sexual aberrações ou anormalidades indesejadas.
Urge uma nova compreensão dimensional da sexualidade humana, abrangendo as diferenças e incluindo na sociedade o que antes foi exposto como patológico e vergonhoso.
A dignidade humana é um dos fundamentos dos Estados Democráticos de Direito Contemporâneos Modernos, e para que essa idéia adentre o mundo dos fatos, há que se destruir antigos óbices dogmáticos à igualdade e à dignidade humanas. Abrangendo conceitos, integrando o que foi setorizado/fragmentado, compreendendo, respeitando e admirando as diferenças, aprendendo com elas. Utilizar todo o conhecimento obtido pela várias ciências de forma inter e trans-relacionada, a fim de que todos nós vejamos ao outro como um de nós mesmos e não como o outro diferente, insignificante, repugnante e que estamos acostumados a estigmatizar e preconceber. Quem sabe seja este o grande passo para que cada ser humano seja individualmente considerado, para que assim todos e cada um de nós sejamos respeitados em toda nossa grandeza e para que a sociedade se torne um meio inclusivo e digno de uma humanidade melhor.
Bibliografia
Informações Sobre o Autor
Sheila Cunha da Cunha