Resumo: O presente estudo objetiva estabelecer contornos mínimos para que se possa dimensionar os elementos necessários à caracterização do ato causador de ofensa dirigida à imagem de candidato em disputa eleitoral. A relevância do tema decorre da intrigante tarefa de se estabelecer uma comparação entre valores que, em tese, ostentam a mesma relevância. Tratam-se de preceitos igualmente erigidos pela carta política fundamental cidadã, no caso a de 1988, à condição de direitos fundamentais[1], a saber: direito à informação do cidadão-eleitor, de um lado, e, em contraposição, o direito à preservação da imagem, honra e vida privada (aqui representado pela figura do suposto ofendido). Buscar-se-á, “a priori”, traçar as premissas metodológicas da investigação, lastreadas no pós-positivismo, para, então, feita a ressalva concernente à visão de mundo[2], chegar-se a uma solução “cientificamente”[3] coerente. Perceber-se-á a necessidade de relativização dos direitos dos candidatos ante à necessidade da construção de um processo eleitoral efetivo.
Palavras-chave: Direitos fundamentais. Homem público. Pós-positivismo. Eleições. Democracia.
Abstract: This paper aims to estabilish minimum contours to detect the necessary elements to characterize the offense act addresses to a candidate image in election. The issue’s relevance stems from the process of establishing a comparison of values which, in theory, have the same relevance. These are precepts commonly erected by the Brazil’s Constitutional Law of 1988 as fundamental rights: citizen-voter’s right of information and, by contrast, image’s preserve right, honor and privacy (here represented by the figure of the alleged offense). First of all, it aims to trace the methodological assumptions of research, based on post-positivism, for then made the caveat concerning the worldview, arriving at a coherent’s solution. It will show the need to relativize the rights of candidates compared to the need of building an effective electoral process.
Keywords: Fundamental rights. Public person. Post-positivism. Election. Democracy.
Sumário: Introdução. 1. (Des)Caracterização do direito como ciência e opção hermenêutica na abordagem da temática. 2. Ofensa à imagem de candidato na disputa eleitoral. Conclusão. Referências.
Introdução
As últimas disputas eleitorais têm sido marcadas por um acirramento na disputa retórica protagonizada pelos candidatos a cargos públicos, sob a estrita orientação de equipes de marketing e comunicação eleitoral. Na disputa pela atenção e pelo apoio do eleitor tem valido quase-tudo, inclusive atribuir às candidaturas adversárias qualificativos nada honrosos. A campanha eleitoral, capilarizada pela imprensa e nas redes sociais, tem provocado uma avalanche de representações aos tribunais, sob a alegação de ofensa à honra/imagem dos postulantes. Nesse cenário, buscar-se-á delimitar a real esfera de proteção à imagem dos candidatos, de modo a não macular o processo democrático. Por rigor metodológico, todavia, opta-se por iniciar pela caracterização do modelo hermenêutico a ser seguido.
1. (Des)Caracterização do direito como ciência e opção hermenêutica na abordagem da temática
Uma das questões que mais desperta paixões nos estudiosos do direito é a sua caracterização.
Há quem defenda se tratar de ciência, tal qual a biologia, a física ou a química, por se tratar de especialização do conhecimento que se diferencia dos demais na medida em que dotado de toda uma principiologia própria, que o separa dos demais saberes. Malgrado entendimento respeitável, não merece prosperar.
A melhor caracterização do que vem a ser ciência, tal como aceita pelo maior espectro de estudiosos, e, inclusive, pela filosofia (esta última tida como a totalidade daquilo que pode ser conhecido[4]), é a possibilidade de verificação rigorosa dos resultados observados.
Como ciência sócio-cultural que é, e, portanto, em permanente construção, não é adequado qualificar o direito como ciência pura.
Por outro lado, tampouco merece ser tal ramo do conhecimento “desqualificado” por não ser “exato”.
Fato é que tal discussão não traz maiores repercussões práticas ao direito, sincreticamente chamado de “ciência dogmática”, expressão que apesar da contradição em si traz uma ideia bem aproximada da profusão de entendimentos pretensamente auto-excludentes defendidos pelos juristas.
Há, contudo, uma outra divisão, esta relevante pelo fato de implicar na opção hermenêutica do intérprete: trata-se das concepções não necessariamente excludentes, como veremos adiante, do direito natural e do direito positivo, que se reencontram, em certa medida, e se remodelam, na construção da visão pós-positivista.
De acordo com o entendimento professado pelos cultores do direito natural, o direito ganha forma a partir da emanação da racionalidade humana, ou, ainda, da vontade suprema do criador, conforme a variante adotada.
Os adeptos das doutrinas positivistas, ao revés, defendem que a legitimidade da lei decorre de simples edição por autoridade competente.
No primeiro caso, em havendo conflito entre o direito posto e a justiça, deixa-se de aplicar a lei, que não pode contrariar os preceitos maiores pressupostos no ordenamento (ordenamento jurídico visto como sistema aberto de normas); no segundo, por outra banda, prevalece o ato legislado, acerca de cujo acerto não se perquire, tendo em vista o fato de desconsiderar qualquer influxo valorativo na operação de subsunção fato-típica (ordenamento jurídico visto como sistema hermeticamente fechado e autorreferente).
Em breve mas conveniente digressão histórica, menciona-se que o ocidente teve forte influência do direito natural até meados do século XVIII. Tal característica, já verificável nos discursos socráticos (sem prejuízo de tempos anteriores), foi reforçada pelo ideário filosófico-cristão da Idade Média, bem como pelo absolutismo superveniente.
Todavia, ante um contexto econômico peculiar após os idos de 1700, a burguesia sobrepujou-se à monarquia na França, inaugurando nova ordem jurídica no território francês em 1789, ano em que foi editada a Constituição do país.
A constituição, escrita, era por esse motivo uma novidade para a época. Consubstanciava o desejo maior de uma classe social emergente de ter garantida a sua liberdade e propriedade, após uma realidade de opressão. Sem demora, foi editado o Código Civil Francês, e logo as codificações legais passaram a ser a regra no mundo. Pensava-se que o direito, racionalmente concebido, representava o estado final da arte, não devendo ser modificado na condição de garantia do cidadão contra o Estado.
Qual não foi a surpresa, contudo, quando o mundo se deparou com regimes totalitários mantidos e legitimados por uma lei? Esse fato novo e esperado, aliado aos escombros sociais, econômicos e humanitários resultantes de duas guerras mundiais, fez com que se repensasse a forma de concepção do direito.
Sem que se desconsiderasse as leis escritas, que, de algum modo, encerravam um mínimo de segurança jurídica para as complexas interações sociais já àquela época, optou-se por balizar o limite de aplicação do direito ao fato social pela carga moral axiológica reinante na comunhão social, havendo uma interpenetração das concepções que pode ser descrita que a eventual contenção de uma pela outra, com vistas à realização da justiça.
Desde então, consolidou-se no mundo social a concepção pós-positivista do direito.
Para que se tenha uma noção dos impactos sociais dessa inflexão epistemológica, foi a partir daí que se criou a ONU e que se desenvolveu com maior vigor o direito internacional dos direitos humanos, hoje tido como matéria de “jus cogens” nos países ocidentais.
Feita a breve e necessária contextualização do direito e da visão metodológica pós-positivista, passa-se ao enfrentamento direto da temática proposta.
2. Ofensa à imagem de candidato em disputa eleitoral
A imagem do candidato em pleito político-eleitoral (em sentido amplo) é aqui conformada tendo como núcleos delimitadores os atributos existenciais personalíssimos da dignidade-honra, dignidade-imagem e dignidade-privacidade.
Percebe-se, pelo exame da Constituição Federal de 1988, que é estabelecida, logo de saída, a dignidade da pessoa humana como um de seus fundamentos (art. 1º, inciso III, CF).
Ato contínuo, ao elencar os direitos fundamentais, dispõe a Carta Maior serem invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, inciso X, CF).
Confere o texto constitucional pátrio tal relevo a tais preceitos que, sem titubeios, estabelece, peremptoriamente, o direito à indenização por eventuais danos decorrentes da violação à imagem, considerada em sentido amplo, sejam eles patrimoniais ou extrapatrimoniais.
Em se tratando de embates eleitorais, núcleo da presente pesquisa, são cada vez mais contumazes os ataques a atributos pessoais dos contendores.
Isso se na medida em que, para a exposição das respectivas plataformas de governo, tem-se optado não só pela exposição dos projetos, como também, e principalmente, pelo julgamento do que pretensamente seria o projeto da candidatura adversária, além das habilidades pessoais e técnicas dos concorrentes.
Nesse sentido, são comuns avaliações no sentido da fragilidade das propostas apresentadas pelos oponentes, que não raro são caracterizados como inábeis à administração da coisa pública, como gestores medíocres, defensores de ideias ultrapassadas e detentores de um currículo que beira ao criminal em gestões anteriores.
Surgem, nesse contexto, situações que, sem maiores questionamentos, seriam enquadráveis como atentatórias à imagem de tal ou qual postulante fosse esse considerado como pessoa comum, e não como candidato.
Tratam-se de acusações lastreadas basicamente na retórica e em estratégias de marketing, as quais, não raro, são compartilhadas por todos os partidos e seus representantes na luta pela conquista do voto popular.
A questão a se analisar é: deve o candidato ostentar a mesma proteção ao direito fundamental à imagem detido pelo cidadão comum?
A resposta, com toda eloquência, deve ser negativa.
Primeiramente, porque a Carta Magna também estabelece como fundamentos da república, ao lado da dignidade, a cidadania. Como se sabe, embora não adstrita a ele, a cidadania se materializa em toda a sua plenitude no ato do sufrágio. E, para escolher a melhor proposta de governo, o cidadão tem o direito fundamental à informação, essencial ao aclaramento de sua missão de escolha dos representantes políticos, que o substituirão na condução do Estado.
Como é cediço, todo embate de ideias pressupõe o estabelecimento de um processo dialético de afirmações e negações, cuja síntese deve ser realizada pelo cidadão no exercício do direito de voto, após a comparação e o julgamento das (in)verdades divulgadas no decurso da campanha eleitoral.
Ademais, os postulantes aos cargos eletivos detêm meios próprios, consubstanciados na campanha eleitoral (inclusive no horário eleitoral gratuito do rádio e da televisão) para refutar eventuais impropriedades contra si lançadas.
Pensamento contrário implicaria no engessamento do processo político-eleitoral e em uma excessiva judicialização do já curto período de campanha eleitoral.
A dois, pois o homem público, por opção, abre mão de certo espectro de privacidade e se submete a julgamentos populares pela própria natureza de seus misteres.
Nesse sentido, transcreve-se ementa de julgamento proferido pelo Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Paraná:
"Apelação Cível. Indenização por danos morais. Ofensas veiculadas em programa radiofônico e comício político, que maculam a honra e imagem de candidato. Direito de informar. Homem público. Proteção a honra relativizada. Dever de indenizar. Não caracterizado. Reforma da sentença. Recurso de apelação cível provido, prejudicado o recurso de apelação. 1. A liberdade de comunicação, garantia alçada à categoria constitucional, encontra limites nos direitos individuais, que não foram extrapolados no caso dos autos. 2. (…) Não se pode, como pessoa pública, pretender uma privacidade típica de quem não exerce cargo público, visto que a exposição à crítica é ínsita aos atos públicos. Logo, o direito de privacidade do exercente de cargo público é mitigado tão só em decorrência desse exercício porque nem sempre será possível separar o homem, como pessoa moral dos acontecimentos em que se viu envolvido." (Acórdão 9542.0469329-2. Ap. Cível. 10ª Câmara Cível. Rel.: Des. Marcos de Luca Fanchin. J. 03/04/2008. Unânime.)
A três, o direito resultante do olhar filosófico pós-positivista, que parte da norma, mas a ela não se restringe, há de cumprir a função social para a qual é concebido, ponderando os valores eventualmente colidentes no caso concreto.
Lecionam o eminente Ministro Gilmar Mendes e Paulo Gustavo Branco que a liberdade de expressão, a princípio, alberga toda opinião, convicção, avaliação, sobre os mais diversos assuntos e pessoas, abarcando temática pública ou não, de valor ou não, na medida em que o estabelecimento de diferenciação entre opiniões valiosas ou sem valor é uma contradição num Estado baseado na concepção de uma democracia livre e pluralista (2011, p. 297).
Embora não aconselhável o sopesamento apriorístico de valores constitucionalmente relevantes como imagem e direito à informação, certo é que, no mais das vezes, o direito à informação em cenário como o investigado vai se sobrepor à imagem do homem público.
Não bastasse isso, o art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, protege o patrimônio moral na vida privada, sendo aplicável apenas após substancial temperamentos axiológicos à vida pública, que com a primeira não se confunde.
No sentido aqui defendido, certeiras são as colocações do magistrado Rodrigo da Silveira, relator de recurso eleitoral no Tribunal Regional Eleitoral de Goiás referente ao processo eleitoral de 2014, as quais, pela relevância, passa-se a transcrever (TRE-GO, ACÓRDAO N. 14786/2014, Data de Julgamento: 05/08/2014):
"A questão (…) não está sob o crivo da verdade ou da inverdade, pois isso não pode ser examinado quando se trata da liberdade de opinião.(…)
A teoria da proteção débil do homem público, ora adotada, estabelece que as pessoas que não exercem atividades públicas merecem proteção à honra em maior latitude que as outras que, por uma ou outra razão, estão mais sujeitas a um controle rígido da sociedade, pela natureza da atividade que livremente escolheram.
Isso não significa que os homens considerados públicos não merecem ter sua honra tutelada e garantida contra eventuais ataques, mas apenas que a proteção tem que ser mais débil, menos rígida, o que ocorre tendo em vista (SANTOS, 2001, p. 356):
a) a preservação do direito de crítica, como essencial ao sistema republicano;
b) frequente operatividade de interesses gerais prioritários (…);
c) a aceitação de que uma função pública traz em si uma tácita submissäo à crítica das demais pessoas (…).
Se as críticas são dirigidas a políticos, o senso comum leva a minimizá-las, precisamente porque todos sabem que quem faz política coloca-se em campo proceloso, ganhando a admiração de uns e o repúdio de outros (MAIA, 2014)."
Prossegue adiante o douto magistrado:
"Impende ressaltar, assim, que a crítica pode ser dura, desagradável, incômoda e até injusta, desde que não abusiva e se dirigida única e exclusivamente ao comportamento público ou social do político ou homem público.
Conforme jogo de palavras trazido a lume pelo Ministro Carlos Ayres Britto, ‘a liberdade de expressão é a maior expressão da liberdade’, sobretudo em se tratando de manifestação de pessoa física/eleitor."
A quatro, firme no ensinamento de Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Felipe Peixoto, é tranquila a constatação segundo a qual a informação a respeito da vida privada de políticos poderá ser divulgada sempre que contribua para a formação de juízo crítico s respeito da atuação pública da pessoa (2014, p. 760). Nesse sentido, mencionam trecho de voto proferido em recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça:
“A redução do âmbito de proteção aos direitos de personalidade, no caso dos políticos, pode em tese ser aceitável quando a informação, ainda que de conteúdo familiar, diga algo sobre o caráter do homem público, pois existe interesse relevante na divulgação de dados que permitam a formação de juízo crítico, por parte dos eleitores, sobre os atributos morais daquele que se candidata a cargo eletivo” (STJ, REsp 1.025.047, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª T, DJ 05/08/2008)
Conclusão
Ante o exposto, depreende-se que, em consonância com a leitura que privilegia o direito público à informação em face dos homens públicos/candidatos, como pressuposto do processo dialético democrático, apenas casos extremos, de inverdades manifestas, passíveis de verificação de plano, é que poderão ser alvo de cerceamento judicial e objeto de eventual direito de resposta, sob pena de fragilização do embate ideológico e da possibilidade de escolha cidadã da melhor representação política possível.
Numa democracia ainda em construção como a brasileira, conclusão diversa iria de encontro ao exercício de uma efetiva prática cidadã emancipadora, que vagarosa mas cotidianamente vai se construindo.
Não bastasse isso, faz-se necessário ao Poder Judiciário, na medida do possível, restringir-se às interferências estritamente necessárias no processo eleitoral, cujos protagonistas devem ser os cidadãos e suas reais demandas.
Informações Sobre o Autor
Célem Guimarães Guerra Júnior
Graduado em Direito pela Pontifícia Univerdade Católica de Goiás. Pós-graduado em Direito Público pela Fundação de Ensino Superior de Rio Verde/GO. Pós-graduando em Direito Civil pela Universidade Anhanguera e em Tecnologias e Educação a Distância pela Universidade Dom Bosco (ambos os cursos em caráter “lato sensu”). Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral de Goiás desde 2005. Aprovado para o cargo de Promotor de Justiça Substituto do Estado do Tocantins