Consiste como objetivo fundamental do estudo analisar o artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor, extraindo da sua definição a melhor oportunidade pela qual o magistrado deverá observar, declarando, quando atendidos os requisitos legais, a inversão das regras do ônus da prova, sem prejudicar os princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal.
1. Justificativa da tutela do consumidor.
Diante dos problemas sociais surgidos pela complexidade da sociedade moderna, o legislador pátrio buscando minimizar os reclamos de grupos e de indivíduos, instituiu o Código de Defesa do Consumidor; poderoso instrumento capaz de reduzir os anseios da população que, devido ao “fenômeno de massa”, sob o ponto de vista econômico, ficava nas mãos dos fornecedores de serviços e de produtos.
Com efeito, o consumidor para satisfazer suas necessidades de consumo, comparecia ao mercado, e, nessa circunstância, precisando de determinado produto ou serviço, submetia-se as condições que lhe eram impostas, não possuindo forças para contestar sobre eventuais prejuízos; devido, destarte, a sua vulnerabilidade e/ou hipossuficiência.
Anterior a este rumo, a Organizações da Nações Unidas já vinha se posicionando no sentido de afirmar, de acordo com a resolução nº 29/248, de 10 de abril de 1985, que “os consumidores se deparam com desequilíbrios em termos econômicos, nível educacional e poder aquisitivo, refletidos em sua vulnerabilidade e hipossuficiência”.
Destarte, tendo em vista esta hipossuficiência, alguns consumidores desprovidos de recursos financeiros ficavam impossibilitados de contratarem advogados para a defesa de seus direitos, bem como de pagarem as despesas processuais. Aliás, naquele, destaca-se com nitidez a franca superioridade dos fornecedores, os quais geralmente possuem, em seus estabelecimentos comerciais, departamentos jurídicos organizados e de bom nível técnico, o que influenciam na disparidade da situação de inferioridade do consumidor.
A propósito, esta mesma situação fática foi vivida há cinqüenta anos, quando surgiu a tutela do empregado nas relações de trabalho, o que só se tornou combatível, quando se reconheceu a situação de fragilidade e dependência econômica, agora reconhecida entre fornecedor e consumidor1
2. Requisitos: Verossimilhança da alegação ou hipossuficiência.
Em verdade, a verossimilhança da alegação diz respeito ao convencimento do magistrado a ser elaborado em conformidade com a causa petendi invocada pelo consumidor, que pretende a inversão do ônus da prova. Não se destina apenas a verificação do direito subjetivo material, mas também e, principalmente, ao perigo de não conseguir, em decorrência da sua fragilidade já relatada, provar o fato constitutivo de seu direito, acarretando, sobretudo, a inviabilidade do acesso ao judiciário; pois ingressar em juízo sem ter a oportunidade de provar o fato constitutivo, não pela falta de provas, mas pelo abuso de defesa do réu, é o mesmo que não entrar.
Na lição de Carreira Alvim, a verossimilhança somente se configurará quando a prova apontar para “uma probabilidade muito grande” de que sejam verdadeiras as alegações do litigante.2
Em que pese o requisito da verossimilhança, o legislador ao editar referida norma ressaltou a importância do princípio da hipossuficiência consagrado no direito do trabalho, pois acrescentou ao texto legal a partícula alternativa; destarte, mesmo que as alegações do consumidor não possuírem a certeza da verossimilhança, poderá ser beneficiado pela inversão do ônus probante, desde que prove a condição de hipossuficiente.
Nesse rumo, ensina o Professor José Roberto Bedaque, com apoio em Ada Pellegrini Grinover, que “os princípios inerentes ao processo liberal não garantem um processo “justo” que só se verifica se, além da igualdade jurídica, houver também igualdade técnica e econômica3”, pois, “vãs seriam as liberdades do indivíduo se não pudessem ser reivindicadas em juízo. Mas é necessário que o processo possibilite à parte a defesa de seus direitos, a sustentação de seus limites, a produção de suas provas”4.
3. Inversão do ônus da prova e oportunidade para declará-lo
Inicialmente, antes de adentrarmos no objeto principal do estudo, indispensável é identificar a razão da existência das normas de distribuição do ônus da prova.
Partindo deste ponto, a parte deve ter o conhecimento prévio dos critérios de distribuição que serão utilizados pelo magistrado para direcionar sua sentença, sob pena de não ter a oportunidade de provar suas alegações no momento ideal, bem como, por conseqüência, ser ao final surpreendido por um provimento favorável ao seu adversário.
Nesse sentido, admitir que as partes somente possam ter conhecimento das regras de distribuição do ônus da prova no momento em que o juiz for prolatar sua sentença, ou seja, após toda a instrução probatória ter sido precluída, consideramos como um afronto ao princípio da ampla defesa, pois, não obstante, a parte já não poderá mais, na sistemática processual vigente, produzir novas provas, salvo nos termos do artigo 303 do Código de Processo Civil.
Em que pesem os respeitáveis posicionamentos contrários, ousamos divergir, sustentando que no momento em que o consumidor ingressa em juízo com sua pretensão, o magistrado diante das alegações carreadas, dispõe, desde já, com a possibilidade de aplicar a inversão, quando preenchidos os requisitos legais, ou seja, verossimilhança da alegação, que exerce através de um juízo de probabilidade, ou a hipossuficiência, facilmente constatada, pelas condições educacionais, sociais e econômicas.
Destarte, permitir que seja aplicada a inversão somente na fase decisória, constitui um verdadeiro atentado ao princípio da ampla defesa, já que para as partes, enquanto não se dispuser do contrário, competirá produzir as provas que lhes interessam, dentro da sistemática processual da regra geral prevista no artigo 333 do Código Processual Civil. Assim, desenvolvendo-se toda instrução probatória sobre a regra geral, não poderá o juiz, agora na fase decisória, alterar as “regras do jogo”, pois, não obstante, será indiscutivelmente pego de surpresa o fornecedor o qual mobilizou toda a sua defensiva com base nas provas trazidas pelo consumidor.
Ciente agora que o magistrado não poderá declarar invertido o ônus da prova na sentença, sob pena de violar o princípio da ampla defesa, causando cerceamento de defesa, mister se faz identificar o momento adequado para declará-lo.
É induvidoso que a inversão aqui tratada seja de grande utilidade para o consumidor, libertando-o de provar, por exemplo, a colocação de produto e serviço no mercado e o nexo causal entre o defeito e o dano, encargos que passam aos ombros do fornecedor.
Com efeito, tratando-se de direito básico do consumidor, não há necessidade de ser requerido a inversão no pedido inicial, pois é matéria de ordem pública a qual compete ao juiz declarar de ofício, quando atendidos os pressupostos legais.
Ao receber a inicial, e esta estando em termos, o magistrado determina a citação do réu, oportunidade em que por intermédio de uma decisão interlocutória, concede a inversão sobre o ônus da prova. Assim, quando o réu é citado para defender-se, é também intimado da decisão que inverteu o ônus probante, iniciando-se, por conseguinte, o prazo de dez dias para apresentar agravo, na forma de instrumento ou retido, o qual ficará prejudicado caso não haja defesa em tempo hábil (revelia).
Busca-se com esta exigência manter inabalável o princípio da concentração da defesa ou da eventualidade, visto que o fornecedor poderá elidir a sua culpa através de prova documental; caso em que se declarada a inversão em outra oportunidade, não poderá utilizar deste poderoso meio de prova, cerceando, em conseqüência, sua defesa.
Conclui-se, portanto, que o melhor momento pelo qual o magistrado deverá declarar invertido o ônus de prova é na ocasião da determinação da citação, à luz dos requisitos de verossimilhança da alegação ou hipossuficiência.
Notas:
1. Por esse motivo, alguns autores relacionam o surgimento da tutela do empregado com o consumidor, cf. Cappelletti, formações sociais…, Revista de Processo, cit., p. 131 e 148/150 e nota nº 89, e Antonio Hermen Bejamin, O conceito jurídico de consumidor, RT, 628: 69/79, fevereiro de 1988.
2. (Carreira Alvim, CPC Reformado, Belo Horizonte, Ed. Del Rey, 1995, p. 145; J. E. S. Frias, ob. cit., p. 65; Cândido Dinamarco, A Reforma do Código de Processo Civil, 2º ed., São Paulo, Ed. Malheiros, 1995, p. 143).
3. Grifo nosso.
4. Cf. José Roberto Bedaque, in “Os poderes instrutórios do juiz”, op. cit., pág. 67. Em Nota de nº 151.
(“As garantias constitucionais”, págs. 14/15), op. cit., pág. 67).
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Informações Sobre o Autor
Eduardo Calmon de A. Cézar
Acadêmico de Direito na Universidade Mackenzie/SP