Neste primeiro ano de
mandato do governo do presidente Lula, em se intensifica uma campanha contra a
fome, denominada “Programa Fome Zero”, faz 115 anos que a Lei Áurea foi
editada, ocasião em que se pôs oficialmente fim à escravidão no Brasil.
E o momento,
pós-Conferência Mundial contra o Racismo, realizada em Durban, África do Sul,
em 2001 e do fim do último mandato do governo do presidente FHC, exige uma
reflexão sobre a realidade em que vivem os descendentes de ex-escravos de
origem africana no Brasil, em face dos dados publicados nos indicadores sociais
de institutos de pesquisas e universidades no Brasil e no exterior, e ainda nos
organismos internacionais especializados no âmbito das Nações Unidas.
Com a edição da referida
Lei, não foi sancionada nenhuma outra que permitisse aos ex-escravos de origem
africana uma inserção na sociedade, diferentemente do ocorrido para grupos
étnicos e raciais vindos com a corrente imigratória européia iniciada já no fim
do séc. XIX, fazendo com que as suas gerações futuras ficassem expostas a um
legado de exclusão social, que os indicadores sócio-econômicos, com recorte racial e de gênero, denunciam
cotidianamente.
Por exemplo, em 2001, ressalta a historiadora Wânia Sant´Anna, que “o
economista Marcelo Paixão concluiu e divulgou os resultados obtidos com a
aplicação do índice de Desenvolvimento Humano (IDH) às populações
afro-descendente e branca no Brasil. Utilizando o ranking fornecido pelo
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), a população branca
ocupou a 49a posição e os negros a 108a posição. Tomando
como parâmetros os resultados obtidos no Relatório de Desenvolvimento (RDH), de 1999, o Brasil ocupou a 74a
posição”.
Esse déficit
gerou nos afro-brasileiros, em sua grande maioria, uma crônica “fome de
direitos” (para utilizar a metáfora de uma campanha que está circulando em
camisetas pelo Rio de Janeiro neste momento), que está legitimando a exigência
de políticas públicas compensatórias particularistas (denominadas de ações
afirmativas ou políticas públicas de ´focalização´, conforme a mídia impressa
vem utilizando nos jornais e revistas), que lhe viabilize uma cidadania plena,
com usufruto adequado dos direitos econômicos, sociais, políticos e culturais
já alcançados por outros grupos étnicos e raciais que também participaram do processo civilizatório nacional. Seria, pois, na
linguagem utilizada por Florestan Fernandes, a “Segunda Abolição”: a abolição
social.
Essa crônica “fome de
direitos” dos afro-brasileiros resulta numa vulnerabilidade jurídica e
subjetiva: (i) a vulnerabilidade jurídica, porque os afro-brasileiros
ainda não possuem status
sócio-econômico suficiente e capaz de impor seus interesses e têm bastante
limitada sua capacidade de participar e de se beneficiar do processo de desenvolvimento
nacional; (ii) a situação de vulnerabilidade subjetiva ocorre
porque os afro-brasileiros, no entender do psicanalista dr. Marco Antônio
Chagas Guimarães, acabam sendo expostos a situações psíquicas conflitantes, que
são os fenômenos psíquicos que se originam de situações cotidianas, como a
desigualdade, a intolerância, o preconceito, a discriminação, o racismo a que
estes indivíduos são submetidos, e que, por serem paradoxos sem possibilidade
de compreensão, tornam-se difíceis, por vezes impossíveis, de serem elaborados,
e que, marcando esses indivíduos desde muito cedo pela falta de um meio
ambiente adequado, pode vir
a criar uma
‘carência continuada’ ou uma
‘carência crônica”.
O Brasil não se louvou,
após a “libertação” dos seus escravos, nas experiências sociais exitosas de
outras sociedades, como a dos EUA, África do Sul, e diversos Estados europeus,
que à nossa semelhança tiveram passado escravista, que viabilizasse aos
ex-escravos e a seus descendentes, igualdade em direitos e oportunidades, o que
se comprova, através do fato de que, até antes do governo Fernando Henrique
Cardoso, iniciado em 1995, a única forma de proteção dos afro-brasileiros se
deu através da edição de leis de natureza penal, como a Lei Afonso Arinos e
outro artigo do mesmo gênero na Constituição Federal promulgada a 5 de outubro
de 1988.
Nesse sentido, e diante
de outras perspectivas de ações governamentais possíveis, o professor Jacques
d´Adesky, diz que: “Se é preciso admitir, com Taguieff, que existem limites à
ação do Estado na condução da luta anti-racista, há de se concordar também que
as políticas públicas fornecem aos regimes democráticos um importante meio de
engajamento contra o racismo. Elas oferecem um leque variado de ações
anti-racistas, que vão das políticas de ação afirmativa à organização de
campanhas multimídia de luta contra o racismo, os preconceitos e a segregação
residencial no espaço urbano, passando pela eliminação do vocabulário, segundo
a lógica do politically correct, de palavras ou expressões consideradas
ofensivas a determinados grupos culturais ou comunidades étnicas”.
E de fato, no Brasil,
começamos a viver sob a experiência de implementação de ações afirmativas (ou
políticas públicas de focalização, termo, aliás, criticável, haja vista que a
expressão ação afirmativa é anterior e adotada universalmente) para os
afro-brasileiros, como por exemplo, é o caso da criação de cotas nas
Universidades públicas estaduais do Rio de Janeiro (UERJ e UENF) e na Bahia
(UFBA).
Contudo, apesar de estarmos
procurando uma solução endógena para a implementação das ações afirmativas e
seus mecanismos (como as cotas, a tributação progressiva, o sistema de bônus e
os incentivos fiscais), é importante seja observado que nos EUA, essas
iniciativas foram além do ingresso na educação superior, pois que também foram implementadas no âmbito do mercado de trabalho e nos
contratos governamentais.
Mas, pela reação quase
virulenta a essas iniciativas, por parte de alguns setores da sociedade
brasileira, da mídia, e do próprio governo, vemos que o princípio da igualdade
proclamado pelo ideário da Revolução Francesa há mais de 300 anos, continua
revolucionário no Brasil, na arguta observação da pesquisadora Edna Roland.
Não bastasse isso, foram
ajuizadas diversas ações judiciais para anular os efeitos dessas leis, sob a
alegação de inconstitucionalidades contras as Constituições Estaduais e
Federal. No caso do Rio de Janeiro, foram ajuizados mais de 200 mandados de
segurança e duas representações de inconstitucionalidade perante o Tribunal de
Justiça. Na Bahia outros tantos mandados de segurança. Por último, foi ajuizada
uma ação direta de inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal,
que aguarda julgamento.
Mas esses insatisfeitos
com o progresso social dos negros, se esquecem que o Brasil é signatário dos
mais importantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos
fundamentais, bem como a atual Constituição Federal instituiu ações
afirmativas, por exemplo, para os indígenas, as mulheres e os portadores de
necessidades especiais.
Convém observar, que o
julgamento desfavorável desses processos pode vir a obstaculizar as diversas
políticas públicas a serem instituídas pelo Executivo ou pelo Legislativo. Há
inúmeros projetos de lei em curso em todo o País sobre o tema, e eles perderão,
no mínimo, em qualidade, dependendo das decisões judiciais a serem proferidas.
Em vista da intensa
movimentação da comunidade negra nesse momento no Brasil pela implementação de
ações afirmativas e de mecanismos como as cotas, podemos nelas vislumbrar uma
primeira etapa a ser alcançada – e suplantada – para a consolidação dos
direitos humanos fundamentais dos afro-brasileiros, que apontamos como sendo o
momento da “Segunda Abolição”.
Informações Sobre o Autor
Luiz Fernando Martins da Silva
professor de Direito na cidade do Rio de Janeiro, e um dos advogados que participa da defesa das cotas nas ações de inconstitucionalidades em curso no TJ-RJ e STF.