Resumo: No presente trabalho busca-se retratar de forma crítica a inexistência de “vida” civil, principalmente referente ao Direito da Personalidade. Para isso, objetivando o desnudamento da aplicabilidade do Direito de Personalidade, a obra literária se apresenta como um mecanismo que possibilita estudo de casos jurídicos, o que permitiu fazer uma análise por meio de levantamento de dados da obra em detrimento da Lei aqui apresentada. Analisou-se aspectos histórico, jurídico, bem como a animalização do homem, na obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e os elementos convergentes entre a lei e a obra, que foi tomada como base para esse estudo, retratando significativamente os cidadãos esquecidos pelo Estado, sem nenhuma referência civil e tampouco perspectiva de vida. Deste modo a obra contribuiu para expor que, mesmo depois de mais de setenta anos de sua publicação, a exploração, humilhação, a ausência do Direito da Personalidade ainda estão bem presentes nos dias de hoje na sociedade brasileira. A sustentação teórica estará pautada em Carlos Roberto Gonçalves, Pablo Gagliano, Rogério Lacaz-Ruiz, dentre outros, como também em artigos relacionados sobre o tema.
Palavras-chave: Animalização do homem, Direitos da Personalidade, Cidadania
Abstract: In this work we seek to critically portray the lack of civilian "life", mainly referring to the Law of Personality. For this aim the denudation of the applicability of the Right of Personality, the literary work is presented as a mechanism that enables the study of legal cases, which allowed us to make an analysis through data collection of the work to the detriment of Law presented here. We analyzed historical, legal aspects, as well as animalization man at work Barren Lives, Graciliano Ramos, and convergent elements between the law and the work, which was taken as the basis for this study, significantly portraying citizens forgotten by State, without any reference nor civil life perspective. Thus the work helped to expose that even after more than seventy years of its publication, exploitation, humiliation, lack of law and Personality are still present today in Brazilian society. The theoretical framework will be guided by Roberto Carlos Gonçalves, Pablo Gagliano, Rogério Lacaz-Ruiz, among others, as well as in related articles on the topic.
Keywords:Animalization man, Personality Rights, Citizenship.
Introdução
Há muito se tem conhecimento que tudo que permeia a Literatura tem em seu bojo muitos aspectos históricos, sociais e culturais. Mesmo as produções fictícias são pautadas em lapsos temporais ou retratam uma sociedade de determinada época.
No que se refere a perspectiva jurídica, esta deve acompanhar a evolução da sociedade, podendo ser reconhecida em várias produções literárias. Isso fomenta muitos estudos no campo jurídico-literário, o que é um meio eficaz para conhecer uma determinada sociedade e tudo que a permeia.
Deste modo, visto que há produções científicas envolvendo Literatura e Direito, decidiu-se analisar a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, com foco no Direito de Personalidade, o que dará um parâmetro jurídico-cultural a fim de contribuir para a compreensão do processo de desnudamento de algumas lacunas referentes as ações do Estado para com seus cidadãos, além de ampliar as possibilidades de estudos de casos jurídicos a partir do campo literário.
Desse modo, a escolha da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos é um bom exemplo para demonstrar que a omissão do Estado para com os sertanistas não vem de hoje, considerando que o país possui uma grande discrepância social desde o período colonial.
Será abordado através da obra o contexto jurídico do Capítulo II – Os Direitos da Personalidade, inserido na Parte Geral do Livro 1 – Pessoas, da Lei nº 10.406/02 do Código Civil. Buscará uma reflexão acerca do cenário hostil e miserável, levando os personagens a uma ruptura de sua condição humana para animal, privando deles seus direitos enquanto cidadãos.
Para uma melhor compreensão, o texto foi desenvolvido sobre quatro aspectos: o histórico – momento em que a obra foi escrita; o jurídico – focando sucintamente o Direito Civil (Direitos da Personalidade); animalização dos personagens principais e, finalizando, os arquétipos que permeiam a lei e a obra.
Contexto histórico
Pensar no Brasil antes da Constituição Federal de 1988, é trazer à tona várias décadas de negligências e opressão sobre aqueles que eram vistos como sociedade marginal ou pessoas que buscavam, por meio de revoltas e revoluções, adquirir seus direitos como cidadão brasileiro, garantindo sua liberdade de expressão e ideológica. Seguindo esta perspectiva, se focará a década de trinta, não só pelos eventos mundiais e nacionais ocorridos naquela época, como também pela obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos, que fará parte da análise proposta neste artigo.
A década de 1930 é constituída de várias mudanças sociais no Brasil, a começar pela Quebra da Bolsa de Nova Iorque, ocorrida em 1929, o que repercutiu mundialmente, gerando uma forte crise no Globo. Em se tratando do Brasil, a crise provocou uma ascendência econômica e social. Outro ponto a ser considerado foi a crise cafeeira, registrada oficialmente em 1929, ocasionando a falência dos proprietários de terra e um aumento significativo de pessoas desempregadas. Estes acontecimentos, somados a outros tantos, contribuíram para a Revolução de 1930, liderados pelos estados de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul, resultando no Golpe de Estado em 1938. Os episódios ocorridos na década de 1930 se finalizaram com o início da Segunda Guerra Mundial.
Tais eventos fez com que ocorresse uma grande instabilidade política no país, o que levou muitos literatos a um posicionamento político frente ao caos instalado. Nesta linha de pensamento, surge a obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos que, pertencente a Segunda Geração Modernista, traz um retrato mimético dos sertanistas, por meio de uma análise crítica e psicológica, em que o homem passa a ser visto como um objeto, um animal que busca sobreviver em um ambiente hostil e degradante, politizando sua narrativa com aspectos de crítica e denúncia.
Esse cenário narrado por Graciliano Ramos é apresentado por meio de uma linguagem enxuta e direta, revelando o descaso do Estado sobre esta parcela da sociedade brasileira, tornando-os invisíveis aos olhos do poder estatal e social. Salienta-se que o autor não deixa claro o local onde ocorre a narrativa, insinuando que não é apenas no sertão que ocorre este ‘fechar de olhos’ para os menos afortunados, mas para todos aqueles que se integram na chamada sociedade marginal, que vivem a margem do poder e da sociedade estabelecida. A denúncia que ocorre durante a trama vivenciada pelo personagem Fabiano deixa evidente que a sua posição, assim como de seus filhos e esposa se aproxima, ou melhor, os coloca na posição de animais que brigam, lutam contra outros mais fortes para poder sobreviver mediante a sua perda de identidade.
Os acontecimentos narrados por Graciliano Ramos, na obra, é um retrato da sociedade que irá se estender por décadas, até chegar a Constituição de 1988, quando surgem definitivamente leis que amparam o homem em sua identidade e direitos de personalidade.
Diretos da personalidade
A Segunda Grande Guerra tornou-se um marco para muitos aspectos, dentre eles têm-se: o social, o cultural, o político, o industrial, o econômico, etc. Dos mencionados, o aspecto social ganha relevo pelo importante fato de se viver em um país democrático, que traz em seu bojo a ideia de poder soberano do povo. Nada mais coerente do que garantir seus direitos básicos, dentro eles o da personalidade jurídica.
O aspecto jurídico também ganha destaque no cenário social em virtude das mudanças ocorridas no mundo pós-guerra. Com o avanço tecnológico e político, a sociedade buscou maior proteção referentes aos seus bens, porque com o caos vivido nos anos 30, o homem tornou-se vulnerável, seja como ser humano, seja como cidadão. Segundo Pedro Henrique[1],
“os direitos da personalidade constituem-se uma construção recente da doutrina. Tendo em vista os avanços científicos e políticos, buscou a sociedade após Segunda Guerra Mundial inserir proteção aos bens existenciais do indivíduo, vista sua notada fragilidade após o caótico evento.”
Entende-se que, assim como o homem teve que sofrer modificações internas e externas, o Direito também precisou acompanhar tais mudanças a fim de que a sociedade tivesse uma proteção maior relacionada aos seus bens. Igualmente, a constitucionalização do Direito Civil se amplia, principalmente os direitos “subjetivos clássicos”.
No Brasil, somente em fins do século XX se pode construir a dogmática dos direitos da personalidade, estabelecendo a noção de respeito à dignidade da pessoa humana, consagrada no art. 1°, III, da CF/88. Até então, o Código Civil de 1916, elaborado no ano de 1899, tinha uma estrutura puramente agrária, beneficiando os proprietários de terra em detrimento às condições que deveriam viver as pessoas. Os autores Pablo Gagliano e Rodolfo Filho[2] expõem muito bem sobre esse período histórico:
“Nesse contexto, o Código Civil de 1916, cuja concepção original foi elaborada por CLÓVIS BEVILÁQUA em 1899 (discutido anos a fio no Congresso Nacional, oportunidade em que receberia a influência humanista de RUY BARBOSA, como visto), traduz, em seu corpo de normas tão tecnicamente estruturado, a ideologia da sociedade agrária e conservadora daquele momento histórico, preocupando-se muito mais com o ter (o contrato, a propriedade) do que com o ser (os direitos da personalidade, a dignidade da pessoa humana).”
Portanto, os Direitos da Personalidade estão intrinsicamente relacionados à dignidade da pessoa humana. Todavia, o direito a identidade é precoce no que se refere a doutrina. Ainda de acordo com Pedro Henrique[3] “a identidade pessoal, possui duas facetas: Uma genética, estática e imutável, e outra social, dinâmica e mutável”. Não importa se é genética ou social, a identidade pessoal é um bem em si mesmo e como tal, despido da condição social em que está inserido. O que se deve analisar é o reconhecimento dessa identidade e a proteção que o Estado garante ao indivíduo.
Como se nota, destinam-se os direitos da personalidade a resguardar a dignidade humana. Carlos Roberto Gonçalves[4] menciona que,
“o respeito à dignidade humana encontra-se em primeiro plano, entre os fundamentos constitucionais pelos quais se orienta o ordenamento (…) na defesa dos direitos da personalidade” (CF, art. 1º, III).
É notório que no Brasil esse respeito à dignidade da pessoa humana, em muitos aspectos não é cumprido pelo Estado, visto que muitos brasileiros vivem em condições precárias, sendo explorados ou mesmo à mercê da própria sorte.
Logo, como meio para exemplificar a ausência do Estado para com seus cidadãos é que a obra, que será analisada na sequência, vem demonstrar que, assim como ocorriam nas décadas que antecederam a Constituição de 1988, ainda muitos brasileiros têm seus direitos negados por parte do poder público.
Animalização do homem
O processo constituinte do ser humano ao longo dos séculos tem demonstrado uma inclinação do poder em subjugar aqueles desprovidos de posses, ou proteção de outrem. Isso fez com que grande parte da sociedade brasileira se tornasse instrumento de trabalho e não trabalhadores, levando-os a serem vistos como animais ou se ver como animais. De acordo com Rogério Lacaz-Ruiz[5], há duas formas de zoomorfização:
“Quando o homem livremente se animaliza pelos seus atos é possível considerá-lo como um doente para si e para a sociedade. Neste caso, ele é classificado como um doente e a síndrome que o acomete bem merece um estudo especializado. O homem que é animalizado pela sociedade, o famoso "excluído", merece o resgate de sua dignidade.”
A vivência do homem determinará, em parte, seu declínio zoomórfico, ou da animalização. Neste viés e de acordo com o fragmento acima, quando o homem por si só se comporta como um animal, é possível que o considerem com algum tipo de demência. Mas, quando a pessoa é animalizado pela sociedade ou quando há omissão do Estado, este se aceita como tal, perdendo o bem jurídico, como por exemplo, sua dignidade, sua personalidade.
A partir desta reflexão, o que dizer de Fabiano e sua família, personagens da obra que, em virtude da seca nordestina se tornam retirantes, oscilando de um lado para o outro, se submetendo a condições sub-humanas, sem amparo do Estado, que acaba negligenciando sua presença, visualizando-os como animais desgarrados, sem dono? A zoomorfização surge como se fosse um refluxo, em que o meio digere o homem e o devolve, recriando-o pronto para aguentar as mazelas do mundo, aproximando-os da animalização.
Segundo Dácio Castro[6],
“os retirantes, na busca de sustento e de um lugar estável para viver, beiram a perfeição instintiva dos animais. A animalização a que são submetidos é, na verdade, uma tentativa de representação dos limites superiores do homem, uma avaliação de sua capacidade de sobrevivência em ambientes agressivos”.
Graciliano Ramos proporciona por meio de uma colocação mimética[7] uma atmosfera carregada pela seca do sertão nordestino, mas que pode muito bem estender os tentáculos da aridez do sertão a todas as regiões que possuem seus Fabianos empilhados nas grandes cidades.
Neste processo de animalização dos personagens destacam-se as condições precárias em que viviam, mesclado ao sofrimento, as injustiças e humilhações. Estes, são traços marcantes neste processo de quebra de identidade, ausência de personalidade social, pois a expectativa de vida é baixíssima, levando-os a uma rotina incessante pela sobrevivência e fuga da miséria que os acompanham dia após dia, como se nota no fragmento da obra abaixo:
“A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos.” (RAMOS, 1992, p. 3)
A aridez da terra retrata o processo da brutalização do homem, no caso de Fabiano o torna um animal por afeição, se aceita como tal, se dizendo: “Fabiano, você é um homem.” E, que logo em seguida se corrige e diz: “Você é um bicho, Fabiano.” (RAMOS, 1992, p. 18).
Diante dos fatos, pode-se dizer que tanto o meio quanto a sociedade tende a interferir direta ou indiretamente no comportamento social do indivíduo. O protagonista Fabiano, e isso inclui sua família, possui traços característicos da zoomorfização, tornando-o sub-humanos, cujas leis do Estado não se aplicam a eles, como ocorre no episódio do soldado amarelo, em que há o abuso de autoridade, além de apresentar as injustiças, pelas quais Fabiano passaria:
“Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão, atirou-o contra o jatobá. […] Aprumou-se, disposto a viajar. Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada, uma ruga na testa. […] Com uma pancada certado chapéu de couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as pessoas em roda e moderou a indignação”. (RAMOS, 1992, p. 15)
Quando Fabiano constata que não é um cidadão, não é um homem, coloca-se como não merecedor da atenção do governo, a não ser se cometer um delito. O Estado existe para reprimir e não para auxiliar o sertanejo em sua luta contra a natureza:
“E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-os depois. Governo não devia consentir tão grande safadeza”. (RAMOS, 1992, p. 17)
Pior é constatar que isto ainda é realidade e que muitos brasileiros não possuem perspectiva de melhores condições, sejam elas econômicas, educacionais ou sociais para si ou sua família.
Tem-se, então, o homem animalizado por sua própria condição miserável, ignorante, sem identidade. Não se reconhece como homem, nem interage como tal, mesmo tendo fragmentos de certa fluidez humana por parte dos personagens. A dignidade humana inexiste, reforçando ainda mais a característica animalesca presente na narrativa.
A obra Vidas Secas é um retrato da animalização daqueles que vivem à margem da sociedade, subjugando-se a custo de migalhas. Isso atingiu a sociedade durante décadas, e ainda atinge, tanto antes quanto depois da Constituição Federal de 1988.
Diante da explanação, apresentar-se-á a partir de agora, o resultado deste processo de animalização de Fabiano no contexto jurídico usando como embasamento o Direito Civil – Os Direitos da Personalidade, bem como o Código Civil Brasileiro.
Os arquétipos que permeiam a lei e a obra
A Constituição da República Federativa do Brasil, nossa Carta Magna, em seu artigo 1º, traz como um dos fundamentos do Estado a dignidade da pessoa humana. O artigo 5º dispõe sobre o direito à vida, um direito do ser humano. Como é cediço, a vida é o maior bem que temos, por isso obtém a salvaguarda do ordenamento jurídico pátrio.
O Direito da Personalidade elencado nos artigos 11 à 21 do Código Civil de 2002, são adquiridos pelo nascimento com vida. E a lei ainda garante a todas as pessoas direitos e deveres na ordem civil (art. 1º, Código Civil). Ora, no viés que estamos examinando, qual seja a obra Vida Secas, não foi observado esse direito fundamental. Se a assertiva é verídica os personagens não sobreviveriam em condições tão absurdamente desumanas. O ser humano, a pessoa tem primazia sobre qualquer outro.
Todas as dificuldades enfrentadas por Fabiano e sua família apenas elucidam seu sentimento de exclusão e não pertencimento social, sentiam-se e eram animais, coisas. O Código Civil coloca os animais no rol dos bens semoventes, que se locomovem de um lugar para outro com movimento próprio, assim consideram-se os personagens.
Diante da incapacidade de transformarem suas vidas, a identidade que segundo nosso ordenamento jurídico é direito de todos aqueles que nascem com vida, nunca chega a se concretizar para os menos afortunados, os pobres rejeitados sertanejos que na luta diária pela sobrevivência não tem sequer a assistência mínima, obrigatória do Estado.
O nível de desumanização é tão grande que a cachorra Baleia tem um tratamento digno, recebe carinho dos donos, privilégio esse que nem mesmo os filhos de Fabiano possuem.
Os personagens da obra não têm assegurados seus direitos à vida, honra, identidade e integridade física. De tudo isso, o que mais indigna e comove é o fato de sabermos que toda a omissão e inação estatal referente a essas famílias nordestinas continua atualíssima, causando a morte degradante de seres que ao menos queriam ter a denominação de “humanos”. Um quadro inconstitucional, que diverge do Direito alicerçado na evolução e melhoria dos erros e lacunas sociais.
Onde o Direito de Personalidade poderia ser encaixado na situação sociocultural aqui exposta? Se não há personalidade, consequentemente não existem direitos, destarte o Estado não atua de modo a proteger os bens juridicamente tutelados. O mais importante é que, antes disso, haja condições suficientes para que possam ter acesso à alimentação de qualidade, saúde, moradia, higiene e principalmente passem a ter dignidade.
Essa tal “dignidade” é completamente alheia à realidade de tantos homens, que com esforços incansáveis, passam por uma vida insignificante e sem perspectivas. Uma cultura decorrente da marginalização e da absoluta falta de educação, ignorância, tão exaustivamente abordado em nosso artigo. Crianças nascem e nunca chegam a ser registradas em cartórios de registro civil das pessoas naturais. Um documento que confere cidadania, que inclui o novo ser na sociedade, o que não chega a ser feito, na grande maioria das vezes, pelas famílias de retirantes, daqueles sem condições e conhecimentos.
Percebemos que um espaço não preenchido inicialmente, leva a uma sequência de erros. Primeiro, porque é dever estatal o oferecimento de educação, através das escolas, projetos pedagógicos, incentivo a leitura, pesquisa, esclarecimento de questões de interesse público, veiculação de informações relevantes. A partir do momento em que isso não se concretiza em sua plenitude, certas camadas sociais, os menos afortunados, sofrem com o impacto negativo do desconhecimento. O que conduz a um segundo erro, a não oficialização de atos essenciais a logística do país, no sentido de organização de políticas públicas e planejamento para determinadas áreas, com aumento de qualidade de vida e apoio nos aspectos mais fracos da sociedade.
Sem o registro de nascimento devidamente efetuado, desconsidera-se a existência. O ser nem ao menos existe, levando-o a questão da animalização, narrado adequadamente por Graciliano Ramos.
O homem é o ponto máximo do Direito, ou melhor, é o destinatário, é agente e objeto. A dignidade está intrínseca até mesmo no fato de o homem pertencer ao gênero humano. É negligenciada essa condição básica quando voltamos a fazer o paralelo com Vidas Secas. Há uma cadeia causal de acontecimentos e características que demonstram que existe uma inobservância da realidade vivida por inúmeras famílias e a teoria prevista na Constituição Federal e no Código Civil.
O Direito como um fenômeno externo, tem que se adaptar às transformações sociais e o avanço jurídico deve seguir as constantes mutações da sociedade moderna e criativa, de modo a garantir o máximo de igualdade.
Considerações finais
A sociedade brasileira, no contexto analisado, desde o Brasil colônia tem como aspecto principal subjugar os menos favorecidos, deixando-os à mercê da própria sorte e em contrapartida sempre teve a função de privilegiar e concentrar riquezas nas mãos das classes mais altas.
Graciliano Ramos, que vivenciou a década de 30, esteve inserido no contexto político e social do país, assumindo posicionamento crítico diante dos acontecimentos por ele presenciados e revelou em sua obra Vidas Secas, de forma magistral e através de uma crítica ímpar, o descaso que o Estado tem com seus cidadãos, desprovidos do mínimo necessário para sua sobrevivência.
Analisando sua crítica, abordamos os direitos da personalidade consagrada na Constituição Federal, através da dignidade da pessoa humana e constatamos que naquele período e, ainda hoje, temos um Estado inerte e estático diante desse preceito, marginalizando e negligenciando os desprovidos. Como, no sertão narrado por Graciliano Ramos, encontramos na atualidade, homens sendo zoomorfizados e animalizados, deixados à própria sorte, sem conhecer os direitos que lhes são inerentes.
Neste liame entra em cena, fazendo um paralelo com a realidade dos personagens da narrativa, o direito da personalidade, consagrado desde 1916, mas, por deveras, modificado ao longo dos anos. Tal direito corresponde a um valor fundamental, a começar pelo do próprio corpo, que é a condição essencial do que somos, do que sentimos, percebemos, pensamos e agimos. Esse conceito é inerente ao ser. No entanto, não foi observado na vida dos personagens, que não imaginavam merecer tais direitos, colocando-se na condição de meros expectadores do “direto alheio”, cauterizando suas mentes e acreditando piamente que estavam abaixo do nível dos animais. Mas o que reza o direito da personalidade?
O direito, em razão da estreita conexão existente, deve tutelar os valores considerados importantes pela sociedade. O Código Civil de 2002 é nítido reflexo das transformações ocorridas na sociedade brasileira. Se o Código Civil de 1916 tinha como pilares básicos a propriedade, o contrato, o testamento e a família, sempre com uma visão patrimonialista desses institutos, o Código atual volta-se para a proteção do real fundamento do direito: o homem. Mas este mesmo homem é marginalizado pelo Estado, sua omissão gera a pobreza, o alargamento entre as classes sociais, afetando diretamente os Direitos Humanos, fazendo-se necessária a implementação de políticas públicas com vistas a extinguir tal processo que fora criado durante tantos anos.
Deve-se dar aos cidadãos acesso aos seus diretos, levando em consideração os direitos previstos no Código Civil, como o Direto da Personalidade, até os direitos garantidos na Constituição Federal brasileira. É ampliar a busca por um Estado mais igualitário.
Assim, foi de muita valia tal análise não só pelo contexto explorado mas, principalmente porque a obra Vida Secas faz parte de um dos contextos históricos mais importantes do Brasil, a Geração Modernista. Não podemos esquecer que, toda e qualquer obra literária pode e deve ser trabalhada nas mais diversas áreas do conhecimento, pois está carregada de informações não só de uma sociedade, mas sua cultura, sua política, seus direitos e deveres. Estes últimos marcados de contradições e discrepâncias que marcam o Brasil e seu povo.
Informações Sobre os Autores
Alessandra de Menezes Gomes
Gabriela Pinheiro Avila do Nascimento
Acadêmica de Direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental. Especialista em Gestão Escolar pela Universidade Católica de Goiás. Graduada em Letras Vernáculo pela Universidade Federal do Acre
Jacqueline Maciel de Souza Modesto
Acadêmica de Direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental. Bacharel em Ciências Sociais com Habilitação em Sociologia pela Universidade Federal do Acre
Mariana Clara Felício Braga
Acadêmica de Direito pela Faculdade da Amazônia Ocidental. Especialista em Gestão Escolar. Licenciada em Geografia pela Universidade Federal do Acre