Os transgênicos e o consumidor brasileiro

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O que são os transgênicos?


A palavra transgênicos indica transformação, via tecnologia genética, em seres vivos; daí porque soa tão radicalmente apocalíptica. A palavra é formada por prefixação: trans (alteração, manipulação)+gênico (de gene, carga genética); logo é a modificação genética de um ser biológico (animal ou vegetal). São, em suma, organismos geneticamente modificados (OGM). Conquanto esta tecnologia cromossômica já esteja disponível para a reengenharia humana, no momento, no entanto, a grande discussão gira em torno do seu uso em Botânica. É pois, na  biotecnologia agrícola que se abre aquele apocalíptico quadro e que tem gerado, por ora, o mais alto temor pelas conseqüências, ambientais e humanas, ainda obscuras deste avanço tecnológico. Já há uma crescente concorrência  entre as indústrias para dominar a tecnologia e o respectivo mercado desta nova geração de lavouras transgênicas. São verdadeiras revoluções genéticas na agricultura, na pecuária, com a inserção de genes de animais em plantas (e vice-versa) para aumentar sua resistência às pragas, para controlar o mercado das sementes.


Parece que atingimos o segredo mais escondido da natureza, o ápice da essência primeira da existência biológica; já manipulamos, vale dizer, a substância que faz a existência ser o que é e como é. Já estamos brincando no jardim da criação não mais como criaturas, porém como criador. Em março de 1998 o Departamento de Agricultura dos EUA e uma empresa do Mississipi anunciaram o registro da patente de nova biotecnologia agrícola, que gentilmente denominaram de “Controle de Expressão Gênica das Plantas”. Significando isto autorização governamental para que os licenciados possam criar sementes estéreis, programando seletivamente o DNA da planta para que ela extermine seus próprios embriões. Tal tecnologia, chamada na intimidade dos cientistas de terminator  (exterminador) já está largamente licenciada em mais de 78 países, basicamente do terceiro e segundo mundo. Isto significa que o nosso agricultor, que em geral já não tem terra para plantar, agora também não terá semente para plantios sucessivos, não terá liberdade de plantar livremente. Não. Ele terá a cada plantio que comprar a semente de que precisa. Não poderá estocá-las de uma safra para a outra, uma vez que elas não terão mais o natural poder germinativo em face desta reengenharia genética. Assim, o natural ciclo da vida vegetal : semente/planta/semente, tão natural quanto a vida humana, será encerrado. Vagens, feijão, milho, trigo, soja, arroz, etc. terão sementes programadas geneticamente para produzir a planta cuja semente será estéril (improdutiva) e esta é apenas uma das possibilidades da engenharia transgênica no campo da agricultura.


Conseqüências e temores dos transgênicos


Como se pode perceber haverá completo e total controle biológico/econômico sobre as plantações, restando ao agricultor e ao mercado consumidor a absoluta dependência diante das empresas cujas matrizes e interesses são insondáveis.A lógica destas inovações radicais é a seguinte: as empresas detentoras do direito à exclusividade exploratória (patentes) destas tecnologias buscam se ressarcir dos investimentos realizados na pesquisa aplicada e após isto, visam a mera lucratividade com o controle da produção de alimentos por exemplo. Mas não é só. Há, ainda, os royalties para o governo norte-americano, estes na base de 5% dos lucros da atividade ali licenciada. A empresa Monsanto, gigante da biotecnologia norte-americana e controladora do mercado de milho em boa parte do mundo (já comprou a empresa brasileira Agroceres, detentora de 30% do mercado de milho no Brasil) já lançou em solo brasileiro sua semente (geneticamente modificada) de soja round up ready, mas felizmente temos magistrados, ainda, não ideologicamente modificados e os riscos da insegurança, tanto econômica quanto à saúde ambiental e humana, foram prudente e eficazmente postergados1. Os produtores de milho e consumidores brasileiros são, agora, o alvo do Terminator e de outras sementes transgênicas, como o milho “apomíctico” cuja planta produz semente híbrida (geneticamente uniformes/clones de sementes), enfim o milho do pobre (tal como o café mais barato em face do reiterado uso da borra).  


Na atual situação do planeta Terra, já muito combalido – efeito estufa, buraco na camada de ozônio, desmatamento desenfreado, extinção de espécies, para não citar outras ameaças oriundas da ganância autodestrutiva do homem – surgem agora novas tecnologias que, afinal, nos certificam que o exterminador do futuro não é um andróide….        


Alternativas, precauções e biosegurança : novas exigências sociais


 Todo este quadro exige enorme esforço do espírito humano para conciliar os desejados progressos da ciência com os esperados, bons e convenientes, resultados em prol da espécie humana. A biosegurança é cada vez mais uma exigência dos dias atuais. Urge, pois, uma nova adequação ético-jurídica de responsabilidades e prioridades que garantam a qualidade de vida no planeta. É que os inevitáveis riscos trazidos pelas inovações tecnológicas afetam desde a ética cientifica (bioética, p.ex.), o meio-ambiente, o consumo humano, dentre outros interesses para a vida integral do homem. Convém que se registre, no entanto, que há um novo (ou como alguns preferem um velho) conceito, uma nova alternativa, para lidar com tais exigências  do mundo atual : a permacultura, uma cultura humana que visa mudar o curso de nossa interferência no planeta para algo mais equilibrado e favorável aos destinos do homem. Até porque se não mudarmos nossa direção, acabaremos onde o vento nos levar… Cuidar do planeta e das espécies, partilhar os excedentes, reconhecendo os limites de consumo e de crescimento, eis os princípios da permacultura. “Nossa habilidade de mudar a face da Terra aumenta mais rápido do que nossa habilidade de prever as conseqüências”, é bem este o centro das preocupações que nos movem neste ensaio.


Os transgênicos e o microssistema jurídico de proteção ao consumidor brasileiro


Por outro lado, estas inovações biotecnológicas interferem diretamente no microssistema jurídico de proteção do consumidor mundial e muito especialmente do brasileiro, cuja legislação específica  (o Código de Defesa do Consumidor-CDC) é tecnologia jurídica das mais avançadas. Assim os alimentos ditos transgênicos para serem comercializados no Brasil terão de enfrentar dois níveis de exigência. Um deles, de caráter cautelar, decorre da responsabilidade estatal de controlar, fiscalizar e garantir a segurança geral da população consumidora destas novas variedade alimentícias. Assim, só mesmo após toda uma série, cautelosa e exaustiva, de análises e pesquisas que assegurem, razoavelmente, aquele pressuposto elementar da segurança ao consumidor é que estas novas tecnologias podem alcançar o mercado consumidor. E isto deflui já não somente do microssistema específico, mas também do macrossistema jurídico e até da natural responsabilidade ética do poder público (art.37 da Constituição Federal)


Com efeito, não é de se exigir, no caso, prova científica absoluta de dano, bastante será o risco do desconhecimento dos impactos, dos efeitos que sendo irreversíveis ou graves já impõem à autoridade publica o dever de não esperar para tomar as precauções protetivas, sobretudo da razão de ser de todo o Direito (inclusive o ambiental), ou seja, o homem, o substrato do consumidor. O  outro nível de exigência  para a regular comercialização dos transgênicos no Brasil, é o respeito ao direito básico do consumidor à informação ampla, eficaz e veraz, direito este tanto mais necessário quanto maior o grau de novidade e risco do produto em questão.


Direito de informação ao consumidor e as inovações  tecnológicas    


O direito à informação é basilar, como não podia deixar de ser, no sistema de proteção do consumidor brasileiro. Só um consumidor completamente informado pode bem exercer a liberdade volitiva pressuposto do ato jurídico de consumo (o consumo consciente e refletido). Vale notar que a chamada relação de consumo já não é mais regida pela regra milenar (do caveat emptor) segundo a qual compete ao consumidor, ao comprador informar-se para resguardar-se de eventuais danos. Sobretudo após o CDC, impera agora a regra moderna do caveat venditor, ou seja, é ao vendedor, fornecedor (comerciante, fabricante, importador…) que compete, legalmente, prestar a mais ampla informação ao consumidor em potencial. É que, só assim o consumidor pode desempenhar seu papel no ciclo econômico da produção, o papel de parceiro econômico e não de mera referência mercadológica. Sucede que a evolução tecnológica impõe a evolução jurídica, daí o esforço criativo e técnico dos homens de Direito e a vontade política dos homens públicos.


Assim resulta que o Direito do Consumidor no Brasil repousa sua estrutura lógico-jurídica nos seguintes princípios basilares e norteadores deste microssistema jurídico :


I ) Princípio da vulnerabilidade do consumidor (art.4º, I ,CDC) : este é o princípio dos princípios, não se trata de presunção legal (logo inadmissível prova em contrário), mas de pressuposto fático necessário à justa equação das relações de consumo. O consumidor já por definição é vulnerável, sendo, pois, esta a sua característica imanente, sua qualidade intrínseca e indissociável. É, enfim, a aplicação plena do principio natural/constitucional da isonomia (tratar desigualmente segundo as desigualdades);


 II) Princípio do dever governamental (art. 4º, II,VI e VII, CDC): é da responsabilidade do Estado, enquanto  organizador/regulador da sociedade ( poder de polícia , p.ex.), promover meios  para a efetiva proteção do consumidor, inclusive diante do próprio Estado (enquanto fornecedor);


III) Princípio da garantia de adequação (art.4º, caput ) : é direito do consumidor a plena adequação dos produtos e serviços ao binômio da segurança/qualidade. É um dos fins deste microssistema de proteção, sendo dever dos fornecedores e do Estado enquanto fiscal ;


IV) Princípio da boa-fé nas relações de consumo (art.4º, III, perpassando vários dispositivos do CDC) : antiguíssimo principio geral de Direito, mas agora positivado. A transparência e a harmonia nas relações de consumo, enquanto meta da Política Nacional do setor (art. 4º, CDC) será resultante desta regra geral de comportamento entre os homens, verdadeira essência do regime do CDC;


V) Princípio da ampla informação (arts.4º; 6º, III; 8º; 9º;10;12;13;18;19; 20; 30; 31; 35; 36; 37; 38; 56; 60; 63; 64; 66; 67 e 72) : pela presença deste principio expressamente em muitos dispositivos do CDC pode-se avaliar a sua relevância. Está diretamente ligado à educação do consumidor, à divulgação, à publicidade (afins) e ao conexo principio da veracidade (que baniu o dolus bonus, ou menos mau). O princípio da ampla informação assume a relevância transcendental da afirmação da liberdade no ato de consumo, sendo assim, importante aspecto do moderno conceito de cidadania (participação consciente na formulação de políticas/decisões governamentais e mesmo no simples ato de consumir).É principio cuja responsabilidade é do Estado e dos fornecedores.


VI) Princípio do acesso efetivo e diferenciado à Justiça. (art.6º,VII, VIII;5º, I; 43, § 4º;117) é princípio que deriva necessariamente do microssistema protetivo determinado pela Constituição Federal (art.5º, XXXII;170,V;48 /ADCT) e recomendado pela Resolução 39/248/85 das Nações Unidas (ONU, 16/4/85), item 3, “c ”. 2


Informação plena: responsabilidades do Estado e dos fornecedores


Como se vê, a ampla informação vai da informação rotulativa à abertura total e suficiente da informação útil e eficaz ao consumidor, quanto à segurança, economicidade, desempenho, composição e precauções (etc.), informação esta promovida por meio de publicidade, manuais, serviço direto e gratuito de informações telefônicas e sempre ao alcance do mais simples consumidores. A responsabilidade em face deste básico direito à informação do hipossuficiente na cadeia econômica, é o Estado, enquanto agente regulador e fiscal,  e o próprio fornecedor, no exercício de seus deveres (boa-fé/transparência) de fornecedor (empresa ou não).  Enfim, qualquer deficiência na concepção, na execução do dever de informar (além, é claro, quanto ao próprio produto) redundará em responsabilidade civil objetiva (independente de verificação de culpa, bastando o dano ao consumidor) do fabricante, do produtor (inclusive agrícola), do construtor, nacional ou estrangeiro, do importador (art.12, CDC) e do comerciante quanto à responsabilidade subsidiária (secundária) daqueles fornecedores listados no art.12 (art.13, CDC). Como se vê, em princípio o risco (art. 8º : riscos normais de produtos e serviços e art.9º, riscos potenciais) corre por conta do fornecedor, jamais do consumidor (ou raramente). Há poucos situações de exclusão desta regra geral de responsabilização sem culpa do fornecedor, p.ex., por culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro, §3º, art.12, CDC). 


A ampla informação garantida a todo custo


O direito fundamental do consumidor à informação, além de tutelado na esfera civil (responsabilizações/ indenizações), na órbita administrativa (multa, apreensões, contrapropaganda, art.55/60, CDC), também vem fortemente amparado por imposições penais (cadeia e multas). É que pune-se a conduta positiva (por ação) e pune-se o comportamento negativo, a abstenção, a omissão. Assim, para  assegurar o alcance daqueles ideais normativos do CDC, foram  também tipificados como crime cujas  penas atingem até dois anos de detenção (cadeia). Assim, as condutas omitir informações (dizeres,/sinais…) sobre periculosidade de produto em rótulos e publicidades (art. 63,CDC); e fazer afirmação falsa ou enganosa  acerca de produtos e serviços (art.66, CDC). Ademais, “deixar de comunicar à autoridade e aos consumidores” riscos ou efetividade de insegurança em geral de produto, cujo conhecimento soube-se posteriormente à colocação do mesmo no mercado, também é crime (pena :dois anos de detenção, art. 64,CDC).


Há, ainda, outros crimes cujo alvo é a ampla e veraz informação : “Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser enganosa ou abusiva”(art.67,CDC); “Fazer ou promover publicidade que sabe ou deveria saber ser capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa a sua saúde ou segurança”(art. 68, CDC) e “Deixar de organizar dados fáticos, técnicos e científicos que dão base à publicidade”(art.69,CDC). Por fim, registre-se também que: “Quem, de qualquer forma, concorrer para os crimes referidos neste código, incide as penas a esses cominadas na medida de sua culpabilidade, bem como o diretor, administrador ou gerente da pessoa jurídica que promover, permitir ou por qualquer modo aprovar o fornecimento, oferta, exposição à venda ou manutenção em depósito de produtos ou a oferta e prestação de serviços nas condições por ele proibidas”(art.75, CDC).


Conclusão


Conclui-se que os transgênicos (p. ex.: a soja  round up ready, a semente terminator, etc.) assim como todas as substâncias ou organismos geneticamente modificados (OGM), dadas as iniciais incertezas quantos aos seus efeitos e impactos (lembremos da talidomida) no meio-ambiente e principalmente à saúde humana ou animal, devem exigir máxima e antecipada precaução por parte do poder público, quer impedindo sua comercialização enquanto não houver aquela certeza científica de sua inocuidade; quer impondo, após aquela certificação, aos interessados em sua exploração econômica (quem lucra se responsabiliza), a mais ampla e eficaz informação ao mercado geral. O  consumidor precisa, deve  e tem o direito (cuja norma-fonte é do interesse social e de ordem pública, logo absolutamente imperativa) de saber e reconhecer, de antemão, as diferenças  entre os produtos que lhe são ofertados, ainda que gratuitamente. Como acabamos de ver, há todo um sistema de defesa e proteção do consumidor brasileiro, pronto, moderno e eficaz para enfrentar o avançado problema dos transgênicos, restando a disposição governamental, da sociedade organizada e dos consumidores individuais para que a lei se faça eqüidade concreta. A rigor, a consciência em torno da cidadania econômica, é o rumo mais seguro  para os ataques especulativos das novidade deste maravilhoso mundo novo….    


Não é,  por outro lado, de se desprezar o fato do controle estratégico-econômico,  que parece ínsito e sub-reptício em certas inovações biotecnológicas alimentícias. Em um mundo ainda faminto, parece impensável a exploração e exclusividade econômicas de tecnologias de que favorecem o aumento da produção de alimentos. Urge, assim, que normas supranacionais vedem, limitem, ou criem mecanismos que a par de garantir o progresso da ciência (os investimentos privados nas pesquisas aplicadas) previnam, também, a vil exploração econômica de tecnologias avançadas de interesse vital para a humanidade, ou para a porção faminta dela. (out.1999)


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NOTAS


1 Vide Sentença da lavra do il. Juiz Titular da 6ª Vara Federal de Brasília e  professor da UCB,  Dr. Antônio de Souza Prudente (In Consulex, Leis & decisões, n.º 33, 30/9/99).


2 Cf.  Amaral, Luiz. “Nações Unidas na Defesa do Consumidor”, CNDC/MJ, Brasília, 1986.



Informações Sobre o Autor

Luiz Otavio O. Amaral

Advogado em Brasília/DF
Ex-Professor de Direito da UNB e da UDF


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