Como resultado da morosidade da justiça, por razões que não abordaremos neste artigo, fazendo com que os processos judiciais se arrastem por anos, às vezes, mais de uma década, inúmeros instrumentos legislativos de natureza processual vêm sendo adotados, periodicamente, transformando o Código de Processo Civil em uma colcha de retalhos.
Obviamente, tais inovações, algumas delas com tendência de retorno à legislação anterior, como é o caso do agravo com efeito ativo, acabam gerando uma grande insegurança jurídica.
Remendos casuísticos, sem levar em conta o ordenamento jurídico como um todo, mais retardam a prestação jurisdicional do que aceleram, por ensejarem recursos processuais antes desnecessários. Penso que é chegada a hora de proibir inovações ou alterações no Código de Processo Civil por um determinado período de tempo. É preciso aplicar corretamente os instrumentos processuais existentes.
Fala-se muito em apelações protelatórias. É o caso de se indagar. Por que não se faz uma triagem prévia dos processos ingressados no Tribunal, a fim de decidir monocraticamente esses recursos protelatórios, no prazo de dois ou três dias? Se existir firma jurisprudência sobre a matéria objeto de apelação dita protelatória, não se precisará de maiores estudos!
Como todos os processos, ainda que virtualmente distribuídos, aguardam cerca de dois anos e meio para entrar em pauta de julgamento pelo colegiado, as partes, com razão, ou sem razão, continuam atolando os tribunais com recursos, isto é, continuam investindo na morosidade do Judiciário.
A origem da penhora on-line está no convênio firmado pelo Tribunal Superior do Trabalho com o Banco Central, à época em que o Ministro Almir Pazzianoto presidia aquela Corte de Justiça. Com base nesse convênio, que, claramente implicava usurpação de competência legislativa do Congresso Nacional, as maiores atrocidades processuais vinham sendo perpetuadas fora do âmbito da Justiça do Trabalho, destinatária do aludido convênio.
Esse convênio ilegal, que permitia o bloqueio indiscriminado de todas as contas do devedor encontradas pelo Banco Central, foi se alastrando, primeiramente, no âmbito da Justiça Federal. Ao depois, na Justiça Estadual, principalmente, nas execuções fiscais.
A irracionalidade do computador, que bloqueava todas as contas do devedor que fossem detectadas por modernos meios da informática, era de tal ordem, que o Senhor Procurador-Geral do Estado teve que determinar a suspensão temporária desse absurdo procedimento eletrônico, até que a máquina conseguisse desenvolver, com um mínimo de inteligência, um critério razoável, compatível com o princípio do equilíbrio processual das partes litigantes.
Para se ter uma idéia do absurdo, na eventualidade de a carta AR de citação na execução fiscal não ser entregue ao legítimo representante legal da empresa executada, essa só tomava conhecimento da execução mediante o bloqueio de todas as suas contas bancárias, impedindo o pagamento de tributos (inclusive os retidos na fonte), salários, fornecedores etc.
Uma cliente minha foi vítima desse procedimento arbitrário só por figurar como sócia de uma empresa devedora, na qual não exercia qualquer função. A citação da empresa, por carta AR, não havia chegado ao seu conhecimento. Mesmo depois de substituído o bloqueio total das contas por propriedade imobiliária em valor ‘n’ vezes superior às importâncias bloqueadas, levou-se cerca de seis meses para efetivamente promover o desbloqueio das contas. Acrescente-se que a substituição de penhora foi feita como sucedâneo da exceção de pré-executividade por ilegitimidade passiva ad causam, que não era apreciada pelo juiz. Fácil imaginar que uma situação dessa, que representa uma espécie de ‘morte civil’, acaba por forçar o devedor atingido a buscar alternativas anormais.
Posteriormente, ainda, no nível infra-legal, foi firmado o Convênio Bacen-Jud para sua utilização em caráter preferencial, atento ao princípio da celeridade processual.
Finalmente, a exemplo do que ocorreu com a figura da penhora de 30% do faturamento bruto da empresa, hoje normatizado no § 3º do art. 655-A do CPC, o bloqueio de contas bancárias também veio a ser disciplinado pela Lei nº 11.382/06, que acrescentou o art. 655-A, nos seguintes termos:
‘Art. 655-A – Para possibilitar a penhora de dinheiro em depósito ou aplicação financeira, o juiz, a requerimento do exeqüente, requisitará à autoridade supervisora do sistema bancário, preferencialmente por meio eletrônico, informações sobre a existência de ativos em nome do executado, podendo no mesmo ato determinar sua indisponibilidade, até o valor indicado na execução.
§ 1º – As informações limitar-se-ão à existência ou não de depósito ou aplicação até o valor indicado na execução.
§ 2º – Compete ao executado comprovar que as quantias depositadas em conta corrente referem-se à hipótese do inciso IV do caput do art. 649 desta Lei ou que estão revestidas de outra forma de impenhorabilidade.’
O texto original da Lei nº 11.382/06 permitia a penhora on-line de até 40% do salário mensal do devedor que ultrapassasse 20 salários mínimos. Esse texto foi vetado pelo Executivo sob o manto do interesse público.
Vejo com muita reserva o texto legal sob exame.
Aparentemente, faculta ao devedor provar que o dinheiro depositado é impenhorável, nos termos do art. 649, IV do CPC, porque se refere à verba de natureza alimentar, inclusive, honorários de profissional liberal, observado quanto a estes o disposto no § 3º do aludido artigo. O § 3º, que permitia a penhora de parte dos honorários, sofreu veto do Executivo, de sorte que esses honorários (na verdade correspondente a salários e vencimentos) ficaram absolutamente impenhoráveis.
O problema é que a comprovação da situação de impenhorabilidade acontece somente após efetuada a penhora on-line, tornando indisponível o dinheiro depositado em instituição bancária até o limite do valor da execução.
Se o bloqueio é imediato, o seu desbloqueio pode levar meses ou até anos se depender da boa vontade da parte adversa, que tem interesse em constranger ao máximo o devedor, não importando se isso vai acarretar o encerramento de suas atividades. É bom relembrar que o juiz nada decide sem ouvir a outra parte, que costuma retirar os autos do Cartório, e, às vezes, é preciso expedir mandado de busca e apreensão do processo.
É como a figura da indisponibilidade universal de bens do devedor (imóveis, contas bancárias, ações, veículos etc) criada pelo art. 185-A do CTN, acrescido pela LC nº 118/05, seguida de “imediato levantamento da indisponibilidade” na hipótese de excesso. Empresa que for vítima de tal instrumento certamente entrará em falência. Ironicamente, essa LC nº 118/05 veio para adequar as disposições do CTN às novas disposições da Lei nº 11.101/05, que introduziu a recuperação judicial e extrajudicial das empresas em dificuldades financeiras (nova lei de falências).
Outrossim, não basta a observância da impenhorabilidade do inciso IV do art. 649 do CPC. Em se tratando de devedora pessoa jurídica, ‘n’ outras situações impedem a penhora do dinheiro.
É preciso interpretar corretamente o art. 655 do CPC, que cuida da gradação da penhora. O fato de o dinheiro estar elencado em primeiro lugar não quer dizer preferência na penhora de qualquer dinheiro, mas apenas daquele disponível na conta do devedor. Se o dinheiro não está aplicado para gerar lucro não operacional, porém, encontra-se na conta bancária para pagamento de imposto retido na fonte, de tributos em geral, de salários de empregados, de alugueres, de fornecedores, de contas de luz, água, telefone etc., obviamente, o bloqueio on-line de conta bancária, dependendo do volume do débito sob execução, inviabilizará a continuidade da atividade empresarial.
O avanço tecnológico na área da informática é de tal ordem que é possível bloquear todas as contas da empresa devedora no âmbito nacional, de forma a provocar a paralisação de todos os estabelecimentos da empresa devedora, tudo em nome do princípio da celeridade processual, invocado de forma não razoável.
Não é razoável interpretar o texto legal de sorte a conduzir à total supressão da unidade produtiva que, afinal de contas, é a que produz riquezas, gerando empregos e tributos. Enfim, a razoabilidade é um princípio que norteia e limita a própria atividade legislativa.
Por isso, impossível invocar, por meio de interpretação canhestra, a preferência da penhora on-line do dinheiro depositado em conta bancária, sem atentar para o importante princípio do menor sacrifício, previsto no art. 620 do CPC, que assim prescreve:
‘Quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor.’
Como se vê, o juiz é o destinatário dessa norma de caráter impositivo. Não se trata de mera faculdade.
Aliás, a preferência a que alude o art. 655-A do CPC diz respeito à utilização do meio eletrônico para requisição de informações em substituição ao obsoleto ofício. A penhora on-line é uma faculdade do juiz que a utilizará em hipóteses excepcionais.
Realmente, sabemos que existem executados de má-fé, que protelam ao máximo o cumprimento de sua obrigação, enquanto levam uma vida de ‘nababo’, rodando em veículos da moda, viajando de primeira classe, comendo e bebendo do bom e do melhor. Para esse tipo de devedor amoral só mesmo a imobilização total de seus bens, transformando-o em um “joão ninguém”. Todavia, a exceção não pode ser transformada em regra.
Não faz menor sentido a utilização indiscriminada da penhora on-line, a pretexto de agilizar a prestação jurisdicional, quando a realidade é bem outra: petições levam meses para serem juntadas aos autos; encaminhamentos de despachos judiciais para publicação na imprensa oficial, expedição de mandado de levantamento de dinheiro depositado etc., também, levam meses.
Por que apenas a penhora indiscriminada de contas bancárias tem de ser imediata? Busca de eficiência? Se for para buscar eficiência, fora dos parâmetros legais, o meio mais eficaz e convincente é a cobrança armada. Cada caso deve merecer exame à parte. Se se contesta um tributo inconstitucional ou inexistente, por exemplo, não há como pretender substituir a penhora de um imóvel, de valor suficiente para garantia da dívida em caso de vitória da Fazenda, por penhora on-line, a pretexto de abreviar o curso da execução pelo emprego de instrumento coativo irresistível.
Concluindo, tenho a convicção de que uma empresa que for prejudicada em seus negócios por bloqueio on-line de sua conta bancária, atingindo numerário destinado ao pagamento de fornecedores, por exemplo, implicando paralisação de sua atividade, pode buscar a indenização do Estado, baseado na teoria da responsabilidade objetiva, cabendo ao Estado condenado promover ação regressiva contra quem de direito, na hipótese de dolo ou culpa do agente.
SP, 9-8-07.
Informações Sobre o Autor
Kiyoshi Harada
Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.