Quando um plano de saúde nega a autorização de uma cirurgia, o consumidor pode recorrer da decisão e, em muitos casos, tem direito de exigir judicialmente a realização do procedimento. A recusa, dependendo da justificativa, pode ser considerada abusiva e ilegal, especialmente quando a cirurgia é essencial à saúde do paciente, está prescrita por um médico e consta no rol de coberturas obrigatórias da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Portanto, o segurado não está desamparado: ele pode buscar seus direitos com base no Código de Defesa do Consumidor e na legislação de saúde suplementar.
Neste artigo, explicaremos detalhadamente o que fazer quando o plano de saúde nega uma cirurgia, os fundamentos legais aplicáveis, como contestar a recusa, quais cirurgias costumam ser negadas, as principais justificativas utilizadas pelas operadoras e os caminhos para obter o procedimento via judicial.
Entenda o papel do plano de saúde
O plano de saúde é um serviço contratado pelo consumidor com o objetivo de garantir atendimento médico, hospitalar e cirúrgico mediante cobertura contratual. As operadoras são obrigadas a fornecer tratamentos que estejam no rol de procedimentos da ANS e que sejam indicados por profissional habilitado. Embora os contratos possam prever diferentes tipos de cobertura (ambulatorial, hospitalar com ou sem obstetrícia, referência, odontológica, etc.), as cláusulas não podem contrariar os direitos mínimos garantidos por lei.
As empresas não têm autonomia para decidir se o paciente precisa ou não de cirurgia. A decisão clínica é do médico que acompanha o caso. A operadora pode, no máximo, realizar auditoria médica para confirmar a pertinência da indicação, mas não pode substituir a prescrição profissional por critérios administrativos ou econômicos.
Quando a recusa é considerada abusiva
De acordo com o Código de Defesa do Consumidor (CDC), cláusulas contratuais que colocam o consumidor em desvantagem exagerada ou que limitam direitos essenciais são consideradas abusivas. Assim, a recusa de cobertura de uma cirurgia pode ser ilegal nos seguintes casos:
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A cirurgia está incluída no rol de procedimentos da ANS
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O médico responsável atestou a necessidade do procedimento
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Não há exclusão expressa e clara no contrato
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A negativa se baseia apenas em critérios econômicos ou burocráticos
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O plano cobre internação hospitalar, mas nega o procedimento
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A cirurgia é de urgência e o paciente corre risco
Além do CDC, a Lei dos Planos de Saúde (Lei nº 9.656/98) também prevê a obrigatoriedade de cobertura mínima, especialmente em casos de emergência ou urgência.
Principais justificativas de negativa utilizadas pelos planos
As operadoras de saúde costumam alegar diferentes motivos para negar cirurgias, mas nem todas são válidas legalmente. Algumas das justificativas mais comuns são:
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Procedimento não está no rol da ANS
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Carência contratual ainda não cumprida
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Alegação de que o procedimento é estético
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Tratamento experimental ou fora dos protocolos
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Cirurgia não urgente
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Alegação de que o hospital ou médico não está na rede credenciada
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Cirurgia indicada para uma doença preexistente não declarada
Cada uma dessas alegações deve ser cuidadosamente analisada. Muitas vezes, são utilizadas de forma genérica e injustificada para evitar custos. Quando a negativa contraria normas da ANS, jurisprudência consolidada ou viola os direitos do consumidor, ela pode ser revertida judicialmente.
Cirurgias mais frequentemente negadas
Algumas cirurgias têm índice maior de recusa pelos planos de saúde. Entre as mais negadas, destacam-se:
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Cirurgia bariátrica
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Mamoplastia redutora
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Cirurgia para endometriose
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Cirurgia de coluna (hérnia de disco, artrodese)
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Vasectomia e laqueadura
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Cirurgia para câncer
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Cirurgia ortognática
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Cirurgia de miomas uterinos
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Reconstrução mamária
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Cirurgia reparadora após bariátrica
Apesar de serem frequentemente negadas, várias dessas intervenções são cobertas pela ANS, desde que atendam aos critérios clínicos.
O que fazer imediatamente após a negativa
Ao receber uma negativa de cobertura de cirurgia, o beneficiário deve agir com rapidez e seguir os seguintes passos:
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Solicitar a negativa por escrito, com a justificativa detalhada
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Verificar a cláusula contratual que trata do procedimento
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Pedir parecer médico por escrito, descrevendo a urgência e a necessidade da cirurgia
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Registrar uma reclamação na ANS, pelo número 0800-701-9656 ou site da agência
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Guardar todos os documentos relacionados ao caso, como laudos, exames e protocolos de atendimento
Se o plano mantiver a negativa mesmo após recurso administrativo, o caminho judicial passa a ser o mais indicado.
Como contestar a recusa administrativamente
A contestação administrativa pode ser feita junto à própria operadora e também na ANS. É importante apresentar um requerimento formal com os seguintes itens:
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Dados do paciente e número do plano
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Cópia do pedido médico
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Documentos que comprovem a necessidade da cirurgia
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Fundamentação com base no rol da ANS e/ou no CDC
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Pedido de reconsideração da negativa
Esse pedido deve ser protocolado junto ao SAC da operadora e, preferencialmente, também enviado à ANS para fiscalização. A operadora tem o dever de responder de forma clara e justificada. A ANS também pode abrir um processo de fiscalização se identificar violação de direitos.
Quando é possível ingressar com ação judicial
Se a cirurgia for negada mesmo após recurso administrativo, ou se o caso for urgente, o consumidor pode ajuizar uma ação judicial com pedido de tutela de urgência, ou seja, solicitar que o juiz obrigue o plano a autorizar imediatamente o procedimento, antes mesmo do julgamento final.
A jurisprudência brasileira reconhece o direito do paciente nesses casos, especialmente quando o procedimento é necessário para preservar a vida ou a saúde.
Documentos importantes para ingressar com a ação:
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Cópia da negativa formal da operadora
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Relatório médico detalhado
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Cópias de exames e prontuário
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Contrato do plano de saúde
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RG, CPF e comprovante de residência do paciente
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Laudo médico indicando urgência (quando for o caso)
A ação pode ser proposta no Juizado Especial Cível, se o valor da causa não ultrapassar 60 salários mínimos, ou na Justiça Comum, com ou sem pedido de liminar. Em casos urgentes, a liminar pode ser concedida em menos de 24 horas.
O que é uma liminar e como ela funciona
A liminar é uma decisão provisória concedida pelo juiz nos primeiros momentos do processo, quando se reconhece que o paciente pode sofrer danos irreparáveis se tiver que aguardar a decisão final. Nos casos de negativa de cirurgia, o juiz pode conceder uma liminar obrigando o plano a autorizar e custear o procedimento imediatamente, sob pena de multa diária.
A liminar tem força legal e deve ser cumprida de imediato. Se a operadora descumprir, pode ser penalizada e o juiz pode determinar bloqueio de valores para garantir a cirurgia.
Exemplos de decisões favoráveis aos consumidores
A Justiça brasileira tem inúmeras decisões favoráveis a pacientes que tiveram cirurgias negadas por planos de saúde. Alguns exemplos:
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TJSP – Apelação Cível 1029511-26.2021.8.26.0002: plano foi condenado a custear cirurgia de coluna mesmo após negativa sob alegação de não constar no rol da ANS.
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TJRJ – Processo 0138973-54.2020.8.19.0001: plano foi obrigado a custear mamoplastia redutora indicada por motivo clínico, mesmo tendo alegado tratar-se de cirurgia estética.
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TJMG – Processo 5019981-44.2022.8.13.0024: liminar concedida para obrigar plano a realizar cirurgia de endometriose.
Esses exemplos demonstram que o entendimento judicial é, em geral, favorável ao paciente, especialmente quando o procedimento é necessário à saúde e há prescrição médica.
O que é o rol da ANS e qual sua importância
O rol de procedimentos da ANS é uma lista de tratamentos, exames, terapias e cirurgias que os planos de saúde são obrigados a cobrir. Ele é atualizado periodicamente pela ANS com base em critérios técnicos e científicos.
Em 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o rol é taxativo mitigado, ou seja, ele é obrigatório, mas pode ser superado em situações excepcionais, desde que:
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Exista prescrição médica
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O procedimento seja eficaz segundo a medicina baseada em evidências
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Não haja substituto terapêutico no rol
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O tratamento não tenha sido expressamente vetado pela ANS
Portanto, mesmo que a cirurgia não esteja no rol, pode haver obrigação de cobertura se ela for necessária e atender aos critérios citados.
Cirurgias estéticas versus reparadoras
Muitas vezes, os planos de saúde negam cirurgias sob a justificativa de que se tratam de procedimentos estéticos. No entanto, é preciso diferenciar cirurgia estética de cirurgia reparadora ou funcional.
Por exemplo:
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Mamoplastia redutora para aliviar dores nas costas e prevenir lesões ortopédicas é reparadora, não estética.
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Cirurgia bariátrica é funcional, voltada à saúde do paciente com obesidade mórbida.
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Reconstrução mamária após mastectomia é obrigatória por lei, conforme a Lei nº 9.797/99.
Sempre que a finalidade do procedimento for recuperar função, aliviar dor, tratar doença ou evitar complicações, a cirurgia deve ser entendida como terapêutica e, portanto, de cobertura obrigatória.
Diferença entre plano coletivo e plano individual
Muitas negativas ocorrem em planos coletivos por adesão ou empresariais, que têm regulação mais flexível que os planos individuais. Ainda assim, os direitos fundamentais do consumidor permanecem garantidos.
A principal diferença está nos mecanismos de reajuste e possibilidade de rescisão unilateral. Em relação à negativa de cobertura de cirurgia, os mesmos princípios se aplicam: o plano coletivo não pode negar cobertura de procedimento essencial sem justificativa técnica, e os direitos do consumidor e a responsabilidade objetiva continuam válidos.
Dano moral em caso de negativa de cirurgia
Em muitas decisões judiciais, os tribunais reconhecem que a recusa injusta de cirurgia causa dano moral, por agravar o sofrimento do paciente e expô-lo a risco de morte ou agravamento da doença. O valor da indenização varia conforme a gravidade do caso, podendo chegar a dezenas de milhares de reais.
Fatores considerados para fixação do dano moral:
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Urgência do procedimento
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Sofrimento causado pela espera ou agravamento da doença
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Necessidade de medida judicial para obter um direito básico
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Tempo de internação ou complicações médicas
O reconhecimento do dano moral não é automático, mas é cada vez mais comum quando a negativa causa consequências graves ao paciente.
Como o advogado pode ajudar
Contar com um advogado especializado em direito à saúde é fundamental para garantir seus direitos diante de um plano de saúde. O profissional poderá:
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Analisar o contrato e a cobertura
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Redigir e protocolar recursos administrativos
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Ingressar com ação judicial com pedido de liminar
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Reunir provas e fundamentar a petição inicial
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Acompanhar o cumprimento da decisão judicial
Em alguns casos, é possível pedir gratuidade de justiça para que o paciente não precise arcar com custas ou honorários iniciais.
Perguntas e respostas
O plano pode negar cirurgia prescrita pelo meu médico?
Em regra, não. Se a cirurgia for essencial e constar no rol da ANS ou cumprir os critérios legais, a negativa pode ser considerada abusiva.
Preciso esperar a ANS resolver a reclamação para ir à Justiça?
Não. Você pode buscar diretamente o Judiciário, especialmente em casos urgentes.
O plano pode alegar que o procedimento é estético para não cobrir?
Só se de fato for estética. Cirurgias com finalidade terapêutica, mesmo que tenham efeito estético, devem ser cobertas.
A liminar é segura? O plano é obrigado a cumprir?
Sim. A liminar tem força legal e o descumprimento pode gerar multa ou até bloqueio judicial de valores.
É possível pedir dano moral?
Sim, especialmente quando a negativa causa sofrimento, atraso no tratamento ou risco à vida.
Preciso de advogado para entrar com ação?
Para ações acima de 20 salários mínimos ou com complexidade, sim. No Juizado Especial, até esse valor, não é obrigatório, mas recomendável.
A cirurgia precisa estar no rol da ANS?
Preferencialmente sim, mas o STJ admite exceções, desde que o tratamento tenha base científica, prescrição médica e ausência de alternativa no rol.
E se o plano for coletivo empresarial? Muda alguma coisa?
Não em relação ao direito à cirurgia. As regras sobre cobertura continuam válidas, ainda que a regulamentação do contrato seja diferente.
Conclusão
A negativa de cirurgia por parte do plano de saúde é uma situação recorrente, mas que pode e deve ser combatida. O consumidor não está desamparado. Existem caminhos administrativos e judiciais para garantir o acesso ao procedimento necessário, com respaldo em leis como o Código de Defesa do Consumidor, a Lei dos Planos de Saúde e as normas da ANS.
A recomendação é agir rapidamente, reunir toda a documentação necessária e, se possível, contar com orientação jurídica especializada. Em muitos casos, a Justiça concede liminares obrigando o plano a custear o procedimento, inclusive com reconhecimento de danos morais.
Garantir o direito à saúde é uma prioridade legal e constitucional. E o cidadão deve estar ciente de que recusar uma cirurgia essencial pode, sim, ser punido judicialmente.