Poliamorismo nos tribunais

Resumo: A finalidade deste artigo é deslindar sobre a seguinte questão: possibilidade ou não das uniões simultâneas, paralelas – Poliamorismo -, no ordenamento pátrio, bem como evidenciar as decisões que estão sendo tomadas por nossos tribunais.  O questionamento revela progressiva divergência na doutrina e jurisprudência nacional, sendo perceptíveis os mais diversos posicionamentos acerca do tema. Uns dos grandes obstáculos são as pré-concepções de ordem cultural, o que por quase sempre, deixa de se analisar outros aspectos técnicos e evolutivos da sociedade. Serão analisados os novos contornos do Direito de Família, mormente no que tange o principio da afetividade, bem como, a questão da monogamia enquanto princípio ou não, perpassando por um breve estudo do concubinato e da união, em busca de esclarecer aspectos das uniões paralelas.

Palavras-chave: Família; Princípio da Afetividade; Monogamia; Fidelidade Concubinato; União Estável; Uniões Paralelas.

Sumário:  Introdução. 1. Novas perspectivas do Direito de(das) Famílias. 1.1. O princípio da Afetividade. 1.2. O suposto Principio da Monogamia. 1.2.1. Infidelidade. 2. Concubinato versus União Estável. 2.1 A união estável putativa e a possibilidade excepcional de simultaneidade de núcleos familiares. 3. O Poliamorismo. 3.1. Primeira Corrente doutrinária: Negativa de Direitos à Concubina. 3.2. Segunda corrente doutrinária: Monetarização do Afeto e Tratamento em Sede Obrigacional 3.3. Terceira Tese: Efeitos Familiares às Relações Concubinárias 4. O Poliamorismo nos tribunais – STJ e STF.  5. Novos entendimentos sobre as Uniões Paralelas – Precedentes favoráveis. 6.Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O conceito que se tem de família nos dias atuais, difere em demasia à do século XIX. Pelos parâmetros estabelecidos no Código Civil de 196, família era somente a constituída pelo casamento.

Devido às mudanças antropológicas, sociais e com as proximidades dos povos, deixou-se de ter uma análise estática, biológica, estanque do que é família; descortinando os pensamentos para estas mudanças sociais.  Portanto, com os devidos avanços passou-se a valorizar mais a questão da solidariedade familiar e aos compromissos éticos dos vínculos de afeto. Desta forma, com o transcorrer dos anos, outras espécies de família foram sendo reconhecidos pelo legislador, objetivando no atendimento do afeto, solidariedade, confiança, respeito, lealdade e amor.

Destarte, a Carta Magma de 1988, traz em seu bojo, o reconhecimento da família como a base da sociedade, assegurando-lhe total proteção. Refere-se de forma clara ao casamento, união estável e as unidades constituídas por um dos pais com seus filhos (Família Monoparental).

Ao deslizar pelas normas infraconstitucionais, percebe-se a valorização normativa pelo casamento, um grau discriminatório na união estável, e o total esquecimento pelas famílias monoparentais, dentre outras.

No regulamento jurídico pátrio, ainda é pungente o “princípio” da monogamia, haja vista que a bigamia continua ser crime em nosso sistema jurídico, bem como o dever de fidelidade continua por ser um dos pilares do casamento. Este quando descumprido, pode vir a gerar diversas punições. Contudo, alguns doutrinadores e juízes, tende por descaracterizar a monogamia como princípio e, afirma ser um mero elemento estruturante da sociedade ocidental de origem judaico-cristã. O que, de alguma forma, valorizaria a questão dos laços formados pelo afeto.  

Até pouco tempo, não se reconhecia qualquer união extrapatrimonial, intituladas de sociedades de fato, no ordenamento jurídico pátrio. Somente as famílias constituídas pelo casamento tinham este privilégio. Deste modo, tinha-se a busca incessante pela manutenção dos laços matrimoniais pelo Estado, já que, com a conservação do casamento, a família tornava-se indissolúvel.

Nesse sentido, quando existia qualquer relacionamento extraconjugal, que, em sua maioria era cometido pelo o sexo masculino, por diversas explicações socioculturais, não gerava ao “homem” quaisquer ônus ou encargos. Desta forma, as concubinas, mulheres frutos destes relacionamentos – Uniões paralelas -, eram totalmente esquecidas pelo ordenamento nacional, não sendo resguardado qualquer direito alimentar ou sucessório.

Diante da ausência de proteção pelo Estado nos casos das uniões paralelas, também chamadas de Uniões Simultâneas, Poliamorismo, muitos doutrinadores afirmam que tal atitude do Estado acaba por estimular cada vez mais a manutenção destas uniões. Certamente, porque aquele que assume a responsabilidade destes vínculos, não adquire qualquer encargo, o que poderia haver, numa mínima escala, o enriquecimento sem causa, além de um total desrespeito ao principio da dignidade da pessoa humana.

A doutrina, bem como jurisprudência majoritária, de forma bastante repressiva/punitiva, respaldada no ordenamento jurídico vigente, afirma que se a “mulher” sabia de tal situação, nada lhe é garantido. Mas caso ele confesse que nada conhecia que não sabia da relação extraconjugal do companheiro, torna-se uma sociedade com fins lucrativos – sociedade de fato-, ocorrendo uma mera participação nos lucros. O que para alguns doutrinadores, bem como algumas raras posições jurisprudenciais, não seria verdade, pois os companheiros não se uniram para constituir sociedades, mas sim, por afeto, com o ideal de família. Ou que pelo menos, entendem-se como união estável putativa, e aplica de forma analógica o casamento estável putativo e todas as suas conseqüências.

Observará em tópicos abaixo que os doutrinadores que acolhem as teses da possibilidade das uniões simultâneas e seus respectivos efeitos, afirmam que deve-se olhar a realidade dos fatos, pois ambas as “famílias” carecem de ter um respaldo jurídico. Por medo de se por no calabouço todos os direitos referente à família e sucessões!

Neste presente artigo, serão analisadas algumas decisões dos tribunais superiores – STJ e STF -, referentes os direitos e aceitação das Famílias Paralelas, bem como serão expostas algumas decisões as quais destoa dos entendimentos destes tribunais.

De tal modo, este trabalho tem por foco apresentar os novos parâmetros do conceito de família, respaldada hoje no afeto, perfazendo uma análise das doutrinas e jurisprudências sobre a possibilidade ou não da aceitação das uniões paralelas e suas devidas repercussões no direito das famílias e sucessões.

1. NOVAS PERSPECTIVAS DO DIREITO DE(DAS) FAMÍLIAS

Os novos modelos familiares vêm alterando entendimentos que antes se pensavam ser pacificados.

A Carta Magna de 1988 trouxe, juntamente com o artigo 226, que trata da família, o reconhecimento da união estável entre homem e mulher, bem como a possibilidade de converter-se em casamento. O que na época foi uma grande vitória considerando a grande quantidade de casais que viviam nesta situação.

Porém, com o passar dos anos, novos modelos familiares foram surgindo e a legislação não consegue acompanhar o ritmo apresentado pela sociedade. Surgiram temas como paralelismo afetivo ou Poliamorismo, casamento entre pessoas do mesmo sexo, dentre outros.

O Legislativo se arrasta em relação aos movimentos familiares.  Ou não se interessa.  Vê-se a bancada conservadora, que, a fim de tentar modular o comportamento humano, acaba por deixar de legislar para não reconhecer o que consideram “aberrações comportamentais”.

A bancada evangélica, por exemplo, não aceita o casamento homoafetivo por considerar uma doença, preocupando-se em desenvolver o Decreto Legislativo 234 de 2011, nomeado como da “cura Gay”, forçando o Judiciário a legislar, reconhecendo este novo modelo familiar.

As relações familiares acontecem independentemente de reconhecimento ou não por Lei. Os novos modelos familiares, apesar da resistência de grupos conservadores, trazem consequências para o mundo Jurídico que, se não positivadas e regulamentadas, causam confusão nas mais diversas áreas do direito como previdenciário, além da esfera cível, levando a verdadeiros embates nos Tribunais.

No que se refere ao Poliamorismo ou paralelismo afetivo, são relações familiares entre pessoas unidas pelo Princípio da afetividade e pela não monogamia.

1.1 Princípio da Afetividade

Trata-se de um princípio do direito de família que aproxima as famílias, independente de ligações sanguíneas. A afetividade passa a ter mais importância que laços de sangue, sendo aquele vínculo predominante em várias situações, ficando em desvantagem apenas quando venha a ferir o Princípio da dignidade da pessoa humana ou o Princípio do melhor interesse da criança.

A família contemporânea não se justifica sem que o afeto exista, pois este é elemento formador e estruturador da entidade familiar. Sendo assim, tudo o que for vinculado a esta, terá proteção do Estado.  O afeto é o resultado de todas as mudanças e evoluções ocorridas nos últimos anos nas famílias brasileiras, tem como base muitos dos valores consagrados pela Constituição Federal de 1988.

O Princípio da afetividade tem sido utilizado para proteger novos modelos familiares, como o discutido neste trabalho, sob o fundamento de que mais importante é afetividade que une os seres, não apenas o que a Lei conceitua como correto ou aceitável. Segundo Lôbo:

“A convivência familiar é a relação afetiva diuturna e duradoura entretecida pelas pessoas que compõe o grupo familiar, em virtude de laços de parentesco ou não, no ambiente comum. Supõe o espaço físico, a casa, o lar, a moradia, mas não necessariamente, pois as atuais condições de vida e o mundo do trabalho provocam separações dos membros da família no espaço de todos. É o ninho no qual as pessoas se sentem recíproca e solidariamente acolhidas e protegidas, especialmente as crianças”.

Atualmente, a função social da família tem sido representada pelo afeto, para determinar uma família, basta haver, além disto, laços de responsabilidade, liberdade, comunhão de vida e colaboração. Não importa se a união é entre homem e mulher ou pessoas do mesmo gênero, se é monoparental ou Poliamorismo, o que importa realmente é a parentalidade socioafetiva. Os interesses patrimoniais ficaram em segundo plano.

No Código Civil Brasileiro, identificam-se os seguintes artigos que têm como base a socioafetividade na filiação: o art. 1.593, em que se verifica um apelo à igualdade, seja qual for a origem da paternidade, será reconhecida e digna. O art. 1.596, que reafirma e reproduz o art. 227, § 6º da Constituição Federal, deixa de lado qualquer tipo de preconceito que possa existir para com os filhos socioafetivos.

Pelo art. 1.597, inciso V, a mulher casada poderá ter autorização do marido para fazer inseminação artificial na constância do casamento. Este filho será exclusivamente socioafetivo por parte do pai e jamais poderá ser contraditado por investigação de paternidade. Já no art. 1.605, as possibilidades nesse caso são amplas, e as presunções são verificadas em cada caso. Por fim, o art. 1.614, que demonstra que o filho tem a liberdade de rejeitar a filiação. No primeiro caso, se o filho maior não reconhecer a paternidade mesmo esta sendo biológica, não será admitida. E, no segundo caso, o filho menor pode impugnar a paternidade até quatro anos após completar 18 anos.

Este entendimento vem se repetindo nos Tribunais, conforme julgado abaixo:

MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica. Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família. Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes – A formação da família moderna não-consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido. (TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO, 2012).

1.2 O Princípio da Monogamia

O princípio da Monogamia está presente em todos os Países cuja civilização cristã domina. Não se trata apenas de uma regra moral, como também de um dogma imposto pelo próprio ordenamento jurídico. A sua não observação resulta na violação de normas tanto de natureza civil, quanto penal.

O Código Civil de 2002 determina, em seu artigo 1.521, VI, a existência de vínculo matrimonial anterior como impedimento para casar, ou seja, prevê que as pessoas unidas por vínculo matrimonial encontram-se impedidas de celebrar outro casamento. Ao se referir à união estável, o legislador, no artigo 1.723, § 1° do mesmo diploma legal, adota a mesma regra, ao estabelecer que “a união estável não se constituirá se ocorrerem os impedimentos do art. 1521; não se aplicando a incidência do inciso VI no caso da pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente”, portanto não ferindo o Princípio da monogamia. Este cuidado por parte do legislador visa impedir ocorrência de concubinatos ou casos de duplo casamento.

No âmbito do direito penal, o artigo 240, que tratava o adultério como crime, foi revogado em 2005, pela Lei 11.106. Porém, o artigo 235, que trata sobre bigamia, mantém o texto, tipificando como crime contrair núpcias quem já for casado.

O princípio da Monogamia está intimamente ligado ao dever de fidelidade, previsto no artigo 1.566 do Código Civil: “São deveres de ambos os cônjuges: I- fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência; IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos.”

Igualmente previsto para a união estável, o dever de lealdade, no Código Civil de 2002, em seu artigo 1.724- As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.

A traição torna-se justa causa de separação, previsto no Código Civil, art. 1.573, I, sendo possível, caso aconteça, o cônjuge infiel perder o nome de casado, conforme artigo 1578 do mesmo código, bem como, conforme artigo 1704, ainda do CC, perder o direito a receber alimentos.

Os Tribunais ainda mantêm decisão conservadora sobre a necessidade de haver o dever de fidelidade ou lealdade, associado ao Princípio da monogamia, como podemos observar nos julgados abaixo:

“Direito civil. Família. Paralelismo de uniões afetivas. Recurso especial. Ações de reconhecimento de uniões estáveis concomitantes. Casamento válido dissolvido. Peculiaridades. – Sob a tônica dos arts. 1.723 e 1.724 do CC/02, para a configuração da união estável como entidade familiar, devem estar presentes, na relação afetiva, os seguintes requisitos: (i) dualidade de sexos; (ii) publicidade; (iii)  continuidade;(iv) durabilidade; (v)  objetivo de constituição de família; (vi) ausência de impedimentos para o casamento, ressalvadas as hipóteses de separação de fato ou judicial; (vii) observância dos deveres de lealdade, respeito e assistência, bem como de guarda, sustento e educação dos filhos. – A análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presente em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros. – A despeito do reconhecimento – na dicção do acórdão recorrido – da união estável” entre o falecido e sua ex-mulher, em concomitância com união estável preexistente, por ele mantida com a recorrente, certo é que já havia se operado – entre os ex-cônjuges – a dissolução do casamento válido pelo divórcio, nos termos do art. 1.571, § 1º, do CC/02, rompendo-se, em definitivo, os laços matrimoniais outrora existentes entre ambos. A continuidade da relação, sob a roupagem de união estável, não se enquadra nos moldes da norma civil vigente – art. 1.724 do CC/02 –, porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros. – O dever de lealdade “implica franqueza, consideração, sinceridade, informação e, sem dúvida, fidelidade. Numa relação afetiva entre homem e mulher, necessariamente monogâmica, constitutiva de família, além de um dever jurídico, a fidelidade é requisito natural” (Veloso, Zeno apud Ponzoni, Laura de Toledo. Famílias simultâneas: união estável e concubinato. Disponível em http://www.ibdfam.org.br/?artigos isso porque o art. 1.727 do CC/02 regulou, em sua esfera de abrangência, as relações afetivas não eventuais em que se fazem presentes impedimentos para casar, de forma que só podem constituir concubinato os relacionamentos paralelos a casamento ou união estável pré e coexistente. Recurso especial provido.” (STJ, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 18/05/2010, T3 – TERCEIRA TURMA) (grifos nossos)

"Um pai que, durante mais de 20 anos, foi enganado sobre a verdadeira paternidade biológica dos dois filhos nascidos durante seu casamento receberá da ex-mulher R$ 200 mil a título de indenização por danos morais, em razão da omissão referida. O caso de omissão de paternidade envolvendo o casal, residente no Rio de Janeiro e separado há mais de 17 anos, chegou ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em recursos especiais interpostos por ambas as partes. O ex-marido requereu, em síntese, a majoração do valor da indenização com a inclusão da prática do adultério, indenização por dano material pelos prejuízos patrimoniais sofridos e pediu também que o ex-amante e atual marido da sua ex-mulher responda solidariamente pelos danos morais. A ex-mulher queria reduzir o valor da indenização arbitrado em primeiro grau e mantido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Por 3 a 2, a Terceira Turma do STJ, acompanhando o voto da relatora, ministra Nancy Andrighi, rejeitou todos os pedidos formulados pelas partes e manteve o valor da indenização fixado pela Justiça fluminense. Segundo a relatora, o desconhecimento do fato de não ser o pai biológico dos filhos gerados durante o casamento atinge a dignidade e a honra subjetiva do cônjuge, justificando a reparação pelos danos morais suportados”.

Em seu voto, a ministra Nancy Andrighi destacou que a pretendida indenização por dano moral em decorrência da infidelidade conjugal foi afastada pelo Tribunal de origem ao reconhecer a ocorrência do perdão tácito, uma vez que, segundo os autos, o ex-marido na época da separação inclusive se propôs a pagar alimentos à ex-mulher. Para a ministra, “a ex-mulher transgrediu o dever da lealdade e da sinceridade ao omitir do cônjuge, deliberadamente, a verdadeira paternidade biológica dos filhos gerados na constância do casamento, mantendo-o na ignorância”.

Sobre o pedido de reconhecimento da solidariedade, a ministra sustentou que não há como atribuir responsabilidade solidária ao então amante e atual marido, pois não existem nos autos elementos que demonstrem colaboração culposa ou conduta ilícita que a justifique. Para Nancy Andrighi, até seria possível vislumbrar descumprimento de um dever moral de sinceridade e honestidade, considerando ser fato incontroverso nos autos a amizade entre o ex-marido e o então amante. ‘Entretanto, a violação de um dever moral não justificaria o reconhecimento da solidariedade prevista no artigo 1.518 do CC/16’, ressaltou a ministra”. (REsp 742.137/RJ, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 21/08/2007, DJ 29/10/2007, p. 218)

2. CONCUBINATO VERSUS UNIÃO ESTÁVEL

Diante das novas possibilidades de arranjos familiares surgem diversos conflitos quanto à delimitação e a definição da natureza jurídica de cada situação fática apresentada. No tema, ora abordado, se faz necessário diferenciar institutos como o Concubinato e a União Estável, que apesar de serem institutos distintos, podem denominar uma única situação fática, a exemplo da chamada união estável putativa.

O Código Civil, no art. 1.727, define claramente o que é concubinato ao dispor que “as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato”. Para GOMES, concubinato é uma relação afetiva, duradoura e pública entre homem e mulher, na qual uma das partes está casada, assim, existindo famílias simultâneas. Assim, é concubinato a união continua entre parceiros impedidos de casar.

Vale ressaltar que os impedimentos de que trata o art. 1.727 encontram-se arrolados no art. 1.521 do Código Civil, conforme transcrição abaixo.

“Art. 1.521. Não podem casar:

I – os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil;

II – os afins em linha reta;

III – o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante;

IV – os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive;

V – o adotado com o filho do adotante;

VI – as pessoas casadas;

VII – o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte”.

A diferença que o art. 1.727 entre união estável e concubinato é exatamente a existência de impedimento. Ou seja, se a união é continua e pública, não existindo impedimentos encontra-se reconhecimento e proteção jurídica e a denominação de união estável. Se houver um dos impedimentos acima, a união, em regra, será caracterizada como concubinato e estará fora da proteção do Direito de família.

Assim, é união estável se não há impedimento matrimonial. Se houver impedimento, mesmo havendo o caráter de ser estável, notória, contínua e pública a união será considerada concubinato.

A partir dos impedimentos supracitados, a doutrina brasileira traz três espécies de concubinato: o concubinato incestuoso, o concubinato adulterino e o concubinato sancionador.

A primeira modalidade é trazida nos incisos I a V do art. 1.521 do CC, onde as relações se formam com pessoas com vínculos sanguíneos ou de afinidade com caráter familiar. A segunda modalidade vem com a disposição do inciso VI onde as pessoas envolvidas já são casadas. A última modalidade, prevista no insciso VII, acontece quando o cônjuge sobrevivente encontra-se impedido de contrair matrimonio com o autor condenado pelo homicídio do seu consorte.

A doutrina também classifica o concubinato em impuro e puro. O concubinato impuro é quando existem os impedimentos do art. 1.521do CC. Já o concubinato puro é quando uma das partes não tem ciência da existência de impedimentos por parte de seu parceiro, este tipo de concubinato também é denominado união estável putativa.

2.1 A UNIÃO ESTÁVEL PUTATIVA E A POSSIBILIDADE EXCEPCIONAL DE SIMULTANEIDADE DE NÚCLEOS FAMILIARES

Conforme visto, haverá união estável putativa quando uma das partes da relação não conhece o estado matrimonial da outra parte, ou seja, uma parte não sabe que a outra parte encontra-se impedida nos termos do art. 1.521 do Código Civil.

Assim, a característica predominante da união estável putativa é a existência de boa-fé subjetiva da parte que desconhece a existência de impedimento matrimonial do parceiro. Conforme apontam Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald, este desconhecimento dos impedimentos do art. 1.521 do CC é um erro desculpável que não pode retirar os efeitos do Direito de Família das uniões extramatrimoniais.

Vale ressaltar que há entendimentos contemporâneos que consideram que a boa fé não precisa ser apenas subjetiva, podendo ser também objetiva.  Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald explicam a aceitação desta tese baseando-se na possibilidade de que seja conhecida a união onde uma das partes, apesar de saber que a outra sofre de um dos impedimentos do art. 1.521 do CC, acredita ou é levada a crer, por inúmeros motivos, que tais impedimentos não existem, conforme exemplo explicitado pelos supracitados civilistas:

“A hipótese do companheiro que, embora casado e convivendo com a esposa, faz a companheira acreditar que não existe convivência marital, efetiva, que o casal dorme em quartos separados e que tudo ainda não se resolveu por conta dos filhos, pó exemplo. Neste caso, embora ciente de que o companheiro ainda é casado e convive com a esposa, a companheira está de boa-fé (objetiva), por conta da confiança que nela foi despertada, merecendo proteção do sistema jurídico e, por conseguinte, tendo direito aos efeitos familiares da relação”. (CHAVES. ROSENVALD, p. 654)

Diante disto, a doutrina majoritária entende que existindo boa-fé, basta que haja a presença dos requisitos comuns a qualquer união estável para que seja reconhecida os efeitos da união entre pessoas impedidas de casar.

Este entendimento doutrinário, que vem sendo seguindo por diversos julgados na Justiça brasileira, traz veementemente a possibilidade de reconhecer amplamente a existência jurídica de uniões paralelas, negando efeito ao principio da monogamia.

3. O POLIAMORISMO

O Poliamorismo, então, é a possibilidade de uma pessoa, concomitantemente, possuir dois ou mais relacionamentos sérios e duradouros. Além disso, é necessário que exista um sentimento de família em cada uma das relações, extirpando a ideia de concubinato e monogamia.

Os poliamoristas defendem que o amor é essencial à natureza humana, e como recurso infinito que é, deve ser vivido em toda sua plenitude. Assim como é possível amar todos os filhos da mesma maneira, não há empecilho (senão o social) para amar dois ou mais companheiros e conviver harmonicamente com eles em ambiente familiar.

Em agosto de 2012 foi veiculada a noticia[1] de que, em cartório do Município de Tupã, no Estado de São Paulo, foi lavrada escritura pública de União Poliafetiva entre um homem e duas mulheres. Consoante declara a Tabeliã Cláudia Nascimento Domingues, a oficialização da união garantiu os direitos de família dos envolvidos, que moram juntos – em união estável – e possuem regras próprias para a estruturação familiar.

Diante da existência concreta de famílias simultâneas, como já era de se esperar, surgiram inúmeras discussões em derredor do tema – próprias do processo de adequação do Direito à dinâmica social. Neste ponto, impende destacar três correntes doutrinárias.

3.1. Primeira Corrente doutrinária: Negativa de Direitos à Concubina.

A primeira corrente doutrinária, capitaneada por Maria Helena Diniz e Álvaro Vilaça de Azevedo, defende que a sociedade brasileira está inserida em um sistema monogâmico e, portanto, não há espaço para uniões familiares paralelas.

Deste modo, qualquer união que seja subsequente à primeira é considerada concubinato, independente do sentimento familiar existente, do consentimento entre os envolvidos e do tempo da relação. 

Tal linha mais conservadora já foi adotada, até mesmo, por um dos órgãos mais vanguardistas do país, conforme ementa do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, datada de 2005:

“União Estável – Matrimônio Hígido – Concubinato – Relacionamento simultâneo. Embora a relação amorosa, é vasta a prova de que o varão não se desvinculou do lar matrimonial, permanecendo na companhia da esposa e familiares. Sendo o sistema monogâmico e não caracterizada a união putativa, o relacionamento lateral não gera qualquer tipo de direito.” (TJRS, AP 70010075695)[2]

3.2. Segunda corrente doutrinária: Monetarização do Afeto e Tratamento em Sede Obrigacional

Este segundo posicionamento, aqui retratado, já foi adotado por diversos Tribunais do país. Consiste em não reconhecer as uniões paralelas como entidades familiares, atribuindo excepcionalmente um caráter patrimonial e monetário ao afeto.

Aplica-se a teoria da sociedade de fato: o(a) concubino(a), que vive em união paralela, possui direitos apenas na seara patrimonial, excluindo, como na corrente doutrinária anterior, os outros direitos pertinentes ao companheiro (ex. herança) – daí que se extrai o termo “Monetarização do Afeto”.

Há julgados, inclusive, que concedem à concubina indenização por serviços domésticos prestados, o que é alvo de fortes críticas de Maria Berenice Dias e Paulo Luiz Netto Lôbo. Como exemplo, o REsp n. 14.476, de 1991: “São indenizáveis os serviços prestados pela concubina durante o período de vida em comum com seu amásio”.

Outrossim, para melhor ilustrar o tema, imperioso destacar as ementas proferidas no julgamento do REsp 303.604-SP e do AREsp 15255-RJ, in verbis:

“CONCUBINATO – RELAÇÃO EXTRACONJUGAL MANTIDA POR LONGOS ANOS – VIDA EM COMUM CONFIGURADA AINDA QUE NÃO EXCLUSIVAMENTE – INDENIZAÇÃO POR SERVIÇOS DOMÉSTICOS. PACÍFICA É A ORIENTAÇÃO DAS TURMAS DAS 2 SECÇÃO DO STJ NO SENTIDO DE INDENIZAR OS SERVIÇOS DOMÉSTICOS PRESTADOS PELA CONCUBINA AO COMPANHEIRO DURANTE O PERÍODO DE RELAÇÃO, DIREITO QUE NÃO É ESVAZIADO PELA DUPLA VIDA EM COMUM, COM A ESPOSA E A COMPANHEIRA, POR PERÍODO SUPERIOR A TRINTA ANOS. PENSÃO DEVIDA DURANTE O PERÍODO DE CONCUBINATO ATÉ O ÓBITO DO CONCUBINO”. (STJ, 4 T, RESP 303.604/SP. REL. MIN. ALDIR PASSARINHO JÚNIOR. DPJ 23.06.2003)[3]

“UNIÃO ESTÁVEL. DISPUTA ENTRE DUAS COMPANHEIRAS. SITUACAO PUTATIVA. PROVA ORAL. RECONHECIMENTO. Reconhecimento de união estável. Conviventes, uma desde 1978 e outra desde 1960 que mantiveram relações concomitantes, notórias e ininterruptas com o de cujus, até o seu falecimento. Prova oral que confirma o reconhecimento do companheirismo concomitante com ambas perante parcelas distinas da sociedade pela qual transitava o falecido, tendo elas vivido em affectio maritalis com o de cujus, cada qual a sua forma. Pessoas de boa índole e bem intencionadas que firmemente acreditavam na inexistência de uma relação amorosa intensa do obituado com a outra, havendo êxito deste em ludibria-las por longos anos, e de se reconhecer a existência de união estável putativa com a apelante e com a apelada. Aplicação,por analogia do art. 221 do CC de 1916. Desprovimento do recurso.” (TJRJ. Agravo:15225/2005. Órgão julgador: 2º Câmara Civil. Data do julgamento: 10/08/2005)[4]

Outros julgados neste sentido: REsp 47.103-SP de 1995; REsp 229.069-SP de 2005; REsp 257115-RJ de 2004.

Por fim, encerrando o estudo acerca da teoria da Monetarização do Afeto, relevante ressaltar os dizeres de Rolf Madaleno:

“Desconhecendo a deslealdade do parceiro casado, instaura-se uma nítida situação de união estável putativa, devendo ser reconhecidos os direitos do companheiro inocente, o qual ignorava o estado civil de seu companheiro, e tampouco a coexistência fática e jurídica do precedente matrimônio, fazendo jus, salvo contrato escrito, à meação dos bens amealhados onerosamente na constância da união estável putativa em nome do parceiro infiel, sem prejuízo de outras reivindicações judiciais, como, uma pensão alimentícia, se provar a dependência financeira do companheiro casado e, se porventura o seu parceiro vier a falecer na constância da união estável putativa, poderá se habilitar à herança do de cujus, em relação aos bens comuns, se concorrer com filhos próprios ou a toda a herança, se concorrer com outros parentes.”[5]

3.3. Terceira Tese: Efeitos Familiares às Relações Concubinárias

Os adeptos desta terceira corrente doutrinária entendem que os relacionamentos simultâneos constituem uniões estáveis – e não concubinato – em observância à valorização afeto, que deve nortear todo o Direito de Família.

Maria Berenice Dias, maior defensora da tese, reconhece a importância de preservar os laços afetivos e, por conseguinte, os laços familiares, como forma de enaltecer o princípio da dignidade da pessoa humana.

Destarte, como as relações paralelas são consideradas uniões estáveis, todos os companheiros terão os mesmos direitos, incluindo os sucessórios e os previdenciários.

O Tribunal de Justiça de Pernambuco adotou esta teoria em acórdão assim ementado:

“DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO DÚPLICE. RECONHECIMENTO COMO ENTIDADE FAMILIAR. O fato de o falecido ter convivido, simultaneamente, com duas companheiras, não afasta o reconhecimento de união estável, desde que restou provada a vida em comum contínua, duradoura e afetiva, próprias de uma entidade familiar, inclusive sobrevindo prole. DECISÃO: “por unanimidade foi dado provimento ao apelo de acordo com o voto da turma”. Data do julgamento: 22 de julho de 2009”. (Apelação Cível nº 0174249-6, 2ª Câmara Cível do TJPE, Rel. Adalberto de Oliveira Melo. j. 22. 07. 2009, DOE 04. 09. 2009)[6]

Em outra senda, o Projeto de Lei n. 699/2011 pretende alterar art. 1727 para dar a seguinte redação:

“Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar e que não estejam separados de fato, constituem concubinato, aplicando-se a este, mediante comprovação da existência da sociedade de fato, as regras do contrato de sociedade.

Art. 1.727-A. As disposições contidas nos artigos anteriores (1.723 a 1.727) aplicam-se, no que couber, às uniões fáticas, de pessoas capazes, que vivam em economia comum, de forma pública e notória, desde que não contrariem as normas de ordem pública e os bons costumes.”

Por fim, em se tratando de questões previdenciárias, o STJ já decidiu pelo fracionamento de valores oriundos de seguro de vida, conforme se constata dos arestos abaixo transcritos:

“Inobstante a regra protetora da família, consubstanciada nos arts. 1474, 1.177 e 248, IV, da lei substantiva civil, impedindo a concubina de ser instituída como beneficiária de seguro de vida, porque casado o de cujus, a particular situação dos autos, que demonstra espécie de “bigamia” , em que o extinto mantinha-se ligado à família legítima e concubinária, tendo prole concomitante com ambas, demanda solução isonômica, atendendo-se a melhor aplicação do direito. Recurso conhecido e provido em parte, para determinar o fracionamento, por igual, da indenização securitária.” (STJ, 4 T, REsp 742685/RJ, Rel. Min, José Arnaldo da Fonseca, J. 04.08.2005)[7]

“Pensão previdenciária – Partilha da pensão entre viúva e concubina – Coexistência de vínculo conjugal e a não separação de fato da esposa – Concubinato impuro de longa duração – “Circunstâncias especiais reconhecidas em juízo” – Possibilidade de geração de direitos e obrigações, máxime no plano de assistência social – Recurso especial não conhecido.” (STJ, REsp 100888/BA, Rel. Min. Aldir Passarinho Júnior, J. 04.08.2005)[8]

4. O POLIAMORISMO NOS TRIBUNAIS – STJ E STF

Uma vez esclarecido o objeto do presente trabalho, é importante e fundamental que se traga o entendimento de nossos tribunais superiores acerca do tema.Para tanto, serão elencados a seguir alguns julgados específicos que demonstram claramente o atual entendimento dos Ministros de nossas Cortes máximas:

4.1.Entendimento do STF

O STF, em 2008, analisou um caso de um sujeito que era casado e tinha um relacionamento paralelo. As mulheres requeriam pensão previdenciária do falecido.O homem era casado de fato e de direito e com a esposa tinha 11 filhos e também mantinha relação duradoura de 37 anos com outra mulher da qual nasceram 9 filhos.

Tal situação foi submetida à apreciação dos Ministro que, ao final, assim decidiram com Relatoria de Marco Aurélio:

“Min. Marco Aurélio: “O que se percebe é que houve envolvimento forte (…) projetado no tempo – 37 anos – dele surgindo prole numerosa – 9 filhos – mas que não surte efeitos jurídicos ante a ilegitimidade, ante o fato e o companheiro ter mantido casamento, com quem contraíra núpcias e tivera 11 filhos. Abandone-se a tentação de implementar o que poderia ser tido como uma justiça salomônica, porquanto a segurança jurídica pressupõe respeito às balizas legais, à obediência irrestrita às balizas constitucionais. No caso, vislumbrou-se união estável, quando na verdade, verificado simples concubinato, conforme pedagogicamente previsto no art. 1.727 do CC”

Não foi reconhecido o seu direito, por ser impossível a afirmação das famílias paralelas.

Perceba que o STF aplica friamente a lei civil ao não reconhecer a segunda família do individuo, negando-lhe o direito propriamente dito. O principal fundamento, no entanto, é a segurança jurídica sendo encarado o relacionamento paralelo como concubinato, termo que há algum tempo já não é utilizado pelos julgadores de primeiro grau.

Entretanto, neste mesmo julgamento, o Ministro Ayres Brito, em brilhante explanação, discordou do Relator nos seguintes termos:

Min. Ayres Brito divergiu: “Estou a dizer: não há concubinos para a Lei Mais Alta do nosso país, porém casais em situação de companheirismo. Até porque o concubinato implicaria discriminar os eventuais filhos do casal, que passariam a ser rotulados de ‘filhos concubinários’. Designação pejorativa, essa, incontornavelmente agressora do enunciado constitucional (…) Com efeito, à luz do Direito Constitucional brasileiro o que importa é a formação em si de um novo e duradouro núcleo doméstico. A concreta disposição do casal para construir um lar com um subjetivo ânimo de permanência que o tempo objetivamente confirma. Isto é família, pouco importando se um dos parceiros mantinha concomitamente relação sentimental a-dois”

Min. Ayres Brito prossegue: “(…) ao Direito não é dado sentir ciúmes pela parte supostamente traída, sabido que esse órgão chamado coração ‘é terra que ninguém nunca pisou’. Ele, coração humano, a se integrar num contexto empírico da mais entranhada privacidade, perante a qual o ordenamento jurídico somente pode atuar como instância protetiva. (…) No caso dos presente autos (…) mantinha a parte recorrida com o de cujus (…) relação amorosa de que resultou filiação e que fez da companheira uma dependente econômica do seu então parceiro.”

No presente caso, os demais Ministros Menezes Direito, Carmén Lúcia e Ricardo Lewandowski acompanharam o relator Maro Aurélio.

4.1.1.Crítica ao entendimento do Supremo.

Em que pese estarmos diante de uma decisão bem fundamentada da Relatoria do Ministro Marco Aurélio devidamente acompanhado pelos demais, à exceção do Ministro Ayres Brito, não podemos deixar de criticar este posicionamento.

Não se pode mais negar, no momento social que vivemos, a inexistência da família paralela. Foi esclarecido anteriormente que este tipo de poliamorismo é mais comum do que se imagina e merece tutela jurisdicional.

Não estamos falando aqui de simples namorico ou eventual infidelidade. Muito pelo contrário, estamos tratando de um relacionamento estável, com notório interesse na constituição de família e com tempo de permanência considerável.

Por que negar a esta segunda família este direito? O Ministro Ayres Brito é brilhante ao aduzir que “Estou a dizer: não há concubinos para a Lei Mais Alta do nosso país, porém casais em situação de companheirismo.”.

Este tipo de posicionamento nos leva a indagar sobre qual seria o verdadeiro intuito da justiça senão praticá-la? É justo que uma parte que viveu longos anos com outra, constituiu família, manifestou interesse em assim ser vista na sociedade, ser afastada de seu direito simplesmente por que o ordenamento assim se manifesta?

O simples estudo da história do direito, e aqui indico como simples no sentido estrito da palavra, indica que o DIREITO, enquanto ciência social deve ser adequado à realidade cultural da época na qual está vigente. As leis são criadas, aplicadas e podem ser revogadas. E tudo isso tem uma explicação: o mundo muda e o direito precisa mudar para não se tornar injusto e antissocial.

Ainda sobre o STF importante colacionar mais uma jurisprudência:

“COMPANHEIRA E CONCUBINA – DISTINÇÃO. Sendo o Direito uma verdadeira ciência, impossível é confundir institutos, expressões e vocábulos, sob pena de prevalecer a babel. UNIÃO ESTÁVEL – PROTEÇÃO DO ESTADO. A proteção do Estado à união estável alcança apenas as situações legítimas e nestas não está incluído o concubinato. PENSÃO – SERVIDOR PÚBLICO – MULHER – CONCUBINA – DIREITO. A titularidade da pensão decorrente do falecimento de servidor público pressupõe vínculo agasalhado pelo ordenamento jurídico, mostrando-se impróprio o implemento de divisão a beneficiar, em detrimento da família, a concubina”. (RE 397762, Relator(a):  Min. MARCO AURÉLIO, Primeira Turma, julgado em 03/06/2008)

“Flávio Tartuce diz que nesse caso a esposa sabia do relacionamento paralelo e consentiu. Incidiria a vedação do comportamento contraditório (venire contra factum propium non potest).”

O STF em outro julgamento, do RE 590779/ES, manteve a mesma posição:

O chamando poliamorismo é uma nova filosofia de amar. O direito precisa se adequar a esta nova demanda social e não simplesmente negar o fato da sua existência. Não cabe ao legislado fechar os olhos para novos anseios sociais, pelo contrário, tem a obrigação de sentir essas mudanças e, na maior brevidade possível criar mecanismos para reconhecimento e tutela jurisdicional.

Quando olhamos para nossa história (própria do Brasil) percebemos que diversas tutelas que hoje são reconhecidas pelo judiciário e por nossa legislação tiveram uma gênese conturbada, controversa e, diria até, contraditória. Aqui podemos citar a possibilidade de clonagem humana, aspectos jurídicos do embrião excedentário, união estável entre pessoas do mesmo sexo, adoção unilateral.. em fim, uma série de motivações sociais que exigiram do legislador ou do magistrado uma atenção maior.

Todas essas causas surgiram em determinado momento da história onde o direito estava em uma situação muito confortável. Quer dizer, até a década de 70 praticamente não houve alteração de grande parte da legislação.

Pode-se dizer que a partir desta década de 70, diversos aspectos ganharam notoriedade no direito mundial, como o surgimento da Bioética, como ciência multidisciplinar ou transdisciplinar, movimentos sociais nos estados unidos clamando por igualdade (negros, hippies, feministas e homossexuais), novas gerações nascendo em momentos de tensão pós guerra e com anseios já modernos.

O que se busca dizer é que todos esses anseios sociais, aos poucos, foram ganhando o amparo do judiciário na medida que hoje já é possível o reconhecimento de união estável e até casamento entre pessoas do mesmo sexo, ou adoção unilateral em famílias monoparentais. Já é possível a cirurgia de adequação sexual para transexuais, bem como alteração de seus nomes no registro civil, alterando, em conjunto, seu gênero.

Sendo assim, não se duvida que daqui há algum tempo, com a rotatividade ministral e com a posse de novos ministros que se preocupem com essas questões haverá, sim, o reconhecimento das relações paralelas modificando esse entendimento que, ao nosso sentir, tem bases principiológicas tradicionais.

Entretanto, precisamos lembrar que tanto a ética como a moral possuem bases principiológicas tradicionais, porém cabe ao legislador e, em sua omissão, ao magistrado utilizando-se da hermenêutica, derivar esses princípios para que os mesmos se adequem a nova realidade social. 

Desta forma, registra-se a crítica ao posicionamento do STF ao não reconhecer a união paralela, posto que aos indivíduos que se encontram nesta situação está sendo negado o próprio direito da forma mais injusta possível.

4.2.Do posicionamento do STJ

Não muito diferente tem se manifestado o STJ, uma vez que não vem reconhecendo essas unidades familiares paralelas, senão vejamos alguns julgados:

PENSÃO POR MORTE. CONCUBINA. A concubina mantinha com o de cujus, homem casado, um relacionamento que gerou filhos e uma convivência pública. Porém, a jurisprudência deste Superior Tribunal afirma que a existência de impedimento de um dos companheiros para se casar, como, por exemplo, a hipótese de a pessoa ser casada, mas não separada de fato ou judicialmente, obsta a constituição de união estável. Assim, na espécie, não tem a agravante direito à pensão previdenciária. A Turma, por maioria, negou provimento ao agravo. Precedentes citados do STF: MS 21.449-SP, DJ 17/11/1995; do STJ: REsp 532.549-RS, DJ 20/6/2005, e REsp 684.407-RS, DJ 22/6/2005. AgRg no REsp 1.016.574-SC, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 3/3/2009.

A existência de impedimento legal para o matrimônio, por parte de um dos pretensos companheiros, obsta a constituição da união estável, inclusive para fins previdenciários. Agravo regimental provido. Recurso especial a que se dá provimento. (AgRg nos EDcl no REsp 1.059.029/RS, Rel. Ministro ADILSON VIEIRA MACABU” (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/RJ), QUINTA TURMA, julgado em 15/02/2011, DJe 28/02/2011)

“STJ: Inviável a concessão de indenização à concubina, que mantivera relacionamento com homem casado, uma vez que tal providência eleva o concubinato a nível de proteção mais sofisticado que o existente no casamento e na união estável, tendo em vista que nessas uniões não se há falar em indenização por serviços domésticos prestados, porque, verdadeiramente, de serviços domésticos não se cogita, senão de uma contribuição mútua para o bom funcionamento do lar, cujos benefícios ambos experimentam ainda na constância da união. 3. Na verdade, conceder a indigitada indenização consubstanciaria um atalho para se atingir os bens da família legítima, providência rechaçada por doutrina e jurisprudência. (REsp 988.090/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 02/02/2010, DJe 22/02/2010)

STJ: "União estável. Reconhecimento de duas uniões concomitantes. Equiparação ao casamento putativo. Lei nº 9.728/96. 1. Mantendo o autor da herança união estável com uma mulher, o posterior relacionamento com outra, sem que se haja desvinculado da primeira, com quem continuou a viver como se fossem marido e mulher, não há como configurar união estável concomitante, incabível a equiparação ao casamento putativo. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 789.293/RJ, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, TERCEIRA TURMA, julgado em 16.02.2006, DJ 20.03.2006 p. 271)"

STJ: Direito civil. Família. Recurso especial. Ação de reconhecimento de união estável. Casamento e concubinato simultâneos. Improcedência do pedido.

– A união estável pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, pelo menos, que esteja o companheiro(a) separado de fato, enquanto que a figura do concubinato repousa sobre pessoas impedidas de casar.

– Se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, impõe-se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família, prerrogativa desta à partilha dos bens deixados pelo concubino.

– Não há, portanto, como ser conferido status de união estável a relação concubinária concomitante a casamento válido.

Recurso especial provido.

(REsp 931155/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/08/2007, DJ 20/08/2007, p. 281)

STJ: “Família. Uniões estáveis simultâneas. Pensão. In casu, o de cujus foi casado com a recorrida e, ao separar-se consensualmente dela, iniciou um relacionamento afetivo com a recorrente, o qual durou de 1994 até o óbito dele em 2003. Sucede que, com a decretação do divórcio em 1999, a recorrida e o falecido voltaram a se relacionar, e esse novo relacionamento também durou até sua morte. Diante disso, as duas buscaram, mediante ação judicial, o reconhecimento de união estável, consequentemente, o direito à pensão do falecido. O juiz de primeiro grau, entendendo haver elementos inconfundíveis caracterizadores de união estável existente entre o de cujus e as demandantes, julgou ambos os pedidos procedentes, reconhecendo as uniões estáveis simultâneas e, por conseguinte, determinou o pagamento da pensão em favor de ambas, na proporção de 50% para cada uma. “Na apelação interposta pela ora recorrente, a sentença foi mantida. Assim, a questão está em saber, sob a perspectiva do Direito de Família, se há viabilidade jurídica a amparar o reconhecimento de uniões estáveis simultâneas. Nesta instância especial, ao apreciar o REsp, inicialmente se observou que a análise dos requisitos ínsitos à união estável deve centrar-se na conjunção de fatores presentes em cada hipótese, como a affectio societatis familiar, a participação de esforços, a posse do estado de casado, a continuidade da união, a fidelidade, entre outros. Desse modo, entendeu-se que, no caso, a despeito do reconhecimento, na dicção do acórdão recorrido, da união estável entre o falecido e sua ex-mulher em concomitância com união estável preexistente por ele mantida com a recorrente, é certo que o casamento válido entre os ex-cônjuges já fora dissolvido pelo divórcio nos termos do art. 1.571, § 1.º, do CC/2002, rompendo-se, definitivamente, os laços matrimoniais outrora existentes. “Destarte, a continuidade da relação sob a roupagem de união estável não se enquadra nos moldes da norma civil vigente (art. 1.724 do CC/2002), porquanto esse relacionamento encontra obstáculo intransponível no dever de lealdade a ser observado entre os companheiros. Ressaltou-se que uma sociedade que apresenta como elemento estrutural a monogamia não pode atenuar o dever de fidelidade, que integra o conceito de lealdade, para o fim de inserir, no âmbito do Direito de Família, relações afetivas paralelas e, por consequência, desleais, sem descurar do fato de que o núcleo familiar contemporâneo tem como escopo a realização de seus integrantes, vale dizer, a busca da felicidade. Assinalou-se que, na espécie, a relação mantida entre o falecido e a recorrida (ex-esposa), despida dos requisitos caracterizadores da união estável, poderá ser reconhecida como sociedade de fato, caso deduzido pedido em processo diverso, para que o Poder Judiciário não deite em solo infértil relacionamentos que efetivamente existem no cenário dinâmico e fluido dessa nossa atual sociedade volátil.

Assentou-se, também, que ignorar os desdobramentos familiares em suas infinitas incursões, em que núcleos afetivos justapõem-se, em relações paralelas, concomitantes e simultâneas, seria o mesmo que deixar de julgar com base na ausência de lei específica. Dessa forma, na hipótese de eventual interesse na partilha de bens deixados pelo falecido, deverá a recorrida fazer prova, em processo diverso, repita-se, de eventual esforço comum. Com essas considerações, entre outras, a Turma deu provimento ao recurso, para declarar o reconhecimento da união estável mantida entre o falecido e a recorrente e determinar, por conseguinte, o pagamento da pensão por morte em favor unicamente dela, companheira do falecido” (STJ, REsp 1.157.273-RN, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 18.05.2010).

A mesma crítica feita ao posicionamento do STF também se aplica ao posicionamento do STJ quanto à possibilidade de reconhecimento de relacionamentos paralelos.

5. NOVOS ENTENDIMENTOS SOBRE AS UNIÕES PARALELAS – PRECEDENTES FAVORÁVEIS

Conforme verificado em linhas acima, o STJ e STF, não reconhecem as famílias paralelas, tratando as mulheres, frutos destas uniões, como se concubinas fossem. Excluindo qualquer direito.

Contudo, como diz Pablo Stolze, as uniões paralelas suscitam um constante duelo pela possibilidade de seu reconhecimento, tal que, traz a tona a realidade já existente a amante/concubina, ressaltando que a mesma sai do limbo jurídico a que estava confinada[9].

Assim, alguns tribunais, voltado aos olhos para o novo, já estão adotando a terceira tese – efeitos familiares as relações concubinárias. Veja alguns posicionamentos sobre o tema:

"Em decisão da 4ª Turma, do ano de 2003, o ministro Aldir Passarinho Júnior, relator de um recurso (REsp 303.604), destacou que é pacífica a orientação das Turmas da 2ª Seção do STJ no sentido de indenizar os serviços domésticos prestados pela concubina ao companheiro durante o período da relação, direito que não é esvaziado pela circunstância de o morto ser casado. No caso em análise, foi identificada a existência de dupla vida em comum, com a mulher legítima e a concubina, por 36 anos. O relacionamento constituiria uma sociedade de fato. O Tribunal de Justiça de São Paulo considerou incabível indenização à concubina. Mas para o ministro relator, é coerente o pagamento de pensão, que foi estabelecida em meio salário mínimo mensal, no período de duração do relacionamento".[10]

Na 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça reconheceu que um cidadão viveu duas uniões afetivas: com a sua esposa e com uma companheira. Assim, decidiram repartir 50% do patrimônio imóvel, adquirido no período do concubinato, entre as duas. A outra metade ficará, dentro da normalidade, com os filhos. A decisão é inédita na Justiça gaúcha e resultou da análise das especificidades do caso. (…) Para o Desembargador Portanova, ‘a experiência tem demonstrado que os casos de concubinato apresentam uma série infindável de peculiaridades possíveis’. Avaliou que se pode estar diante da situação em que o trio de concubino esteja perfeitamente de acordo com a vida a três. No caso, houve uma relação ‘não eventual’ contínua e pública, que durou 28 anos, inclusive com prole, observou. ‘Tal era o elo entre a companheira e o falecido que a esposa e o filho do casamento sequer negam os fatos – pelo contrário, confirmam; é quase um concubinato consentido’. O Desembargador José Ataides Siqueira Trindade acompanhou as conclusões do relator, ressaltando a singularidade do caso concreto: ‘Não resta a menor dúvida que é um caso que foge completamente daqueles parâmetros de normalidade e apresenta particularidades específicas, que deve merecer do julgador tratamento especial’ [11]

A união estável putativa não é assunto pacificado pela jurisprudência, porém, bem menos rejeitada que as uniões paralelas. Todavia, a doutrina majoritária possui um posicionamento mais brando, que reconhece as uniões paralelas somente na área do direito obrigacional para não gerar um enriquecimento ilícito do cônjuge infiel, mas admite as uniões estáveis putativas desde que a segunda companheira esteja movida pela boa-fé.  Nesse sentido, a jurisprudência brasileira firma o seguinte entendimento:

UNIÃO ESTÁVEL. SITUAÇÃO PUTATIVA. AFFECTIO MARITALIS. NOTORIEDADE E PUBLICIDADE. DO RELACIONAMENTO. BOA-FÉ DA COMPANHEIRA. PROVA DOCUMENTAL E TESTEMUNHAL. JUNTADA DE DOCUMENTOS COM A APELAÇÃO. DESCABIMENTO. 1. Descabe juntar com a apelação documentos que não sejam novos ou relativos a fatos supervenientes. Inteligência do art. 397 do cpc. 2. Tendo o relacionamento perdurado até o falecimento do varão e se assemelhado a um casamento de fato, com coabitação, clara comunhão de vida e interesses, resta induvidosa o affectio maritalis. 3. Comprovada a notoriedade e a publicidade do relacionamento amoroso havido entre a autora e o de cujus, é cabível o reconhecimento da união estável putativa, quando fica demonstrado que a autora não sabia do relacionamento paralelo do varão com a mãe da ré. Recurso provido. (apelação cível n 70025094707, 7 câmara cível do tj/rs. Relator: des. Sérgio fernando de vasconcellos chaves, julgado em 22/10/2008) ação de alimentos. Face à induvidosa situação de dependência financeira, mostra-se adequada a fixação de alimentos em favor da concubina, mesmo quando seu companheiro encontra-se casado. Configuração de situação análoga à união estável, que merece proteção estatal, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana. O direito não há de proteger aquele que se vale de situação à margem da lei, a qual deu causa, em detrimento da parte adversa. Recurso provido em parte, por maioria, vencido o revisor. (tjrs, 8 c. Cív., ai 70010698074, rel. Des. Catarina rita krieger martins, j. 07.04.2005).[12]

Nesta mesma linha de decisão, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, asseverou que:

“Namorar homem casado pode render indenização devida pelo período do relacionamento. Durante 12 anos, a concubina dividiu o parceiro com a sua mulher ‘oficial’. Separado da mulher, o parceiro passou a ter com a ex-concubina uma relação estável. Na separação, cinco anos depois, ela entrou com pedido de indenização. Foi atendida por ter provado que no período do concubinato ajudou o homem a ampliar seu patrimônio. A 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul fixou indenização de R$ 10 mil. Para o desembargador José Carlos Teixeira Giorgis, relator da matéria, deve haver a possibilidade do concubino ganhar indenização pela vida em comum. Não se trata de monetarizar a relação afetiva, mas cumprir o dever de solidariedade, evitando o enriquecimento indevido de um sobre o outro, à custa da entrega de um dos parceiros’, justificou.  O casal viveu junto de 1975 a 1987, enquanto o parceiro foi casado com outra pessoa. Depois, mantiveram união estável de 1987 a 1992.  Com o fim da união, ela ajuizou ação pedindo indenização pelo período em que ele manteve outro casamento. A mulher alegou que trabalhou durante os doze anos para auxiliar o parceiro no aumento de seu patrimônio e, por isso, reivindicou a indenização por serviços prestados.  O desembargador José Carlos Teixeira Giorgis entendeu que a mulher deveria ser indenizada por ter investido dinheiro na relação. Participaram do julgamento os desembargadores Luis Felipe Brasil Santos e Maria Berenice Dias".[13]

 Em outra decisão semelhante, o Des. Rui Portanova, usou a palavra “TRIAÇÃO”, haja vista a duplicidade das uniões. Veja:

APELAÇÃO CÍVEL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO E OUTRA UNIÃO ESTÁVEL. UNIÃO DÚPLICE. POSSIBILIDADE. PARTILHA DE BENS. MEAÇÃO. “TRIAÇÃO”. ALIMENTOS. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união estável entre a autora e o réu em período concomitante ao seu casamento e, posteriormente, concomitante a uma segunda união estável que se iniciou após o término do casamento. Caso em que se reconhece a união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o réu. Meação que se transmuda em “triação”, pela duplicidade de uniões. O mesmo se verificando em relação aos bens adquiridos na constância da segunda união estável. Eventual período em que o réu tiver se relacionado somente com a apelante, o patrimônio adquirido nesse período será partilhado à metade. Assentado o vínculo familiar e comprovado nos autos que durante a união o varão sustentava a apelante, resta demonstrado os pressupostos da obrigação alimentar, quais sejam, as necessidades de quem postula o pensionamento e as possibilidades de quem o supre. Caso em que se determina o pagamento de alimentos em favor da ex-companheira. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. (TJRS – Apelação Cível nº 70022775605 – Santa Vitória do Palmar – 8ª Câmara Cível – Rel. Des. Rui Portanova – DJ. 19.08.2008). 

 “Apelação. União estável concomitante ao casamento. Possibilidade. Divisão de bem. ‘Triação’. Viável o reconhecimento de união estável paralela ao casamento. Precedentes jurisprudenciais. Caso em que a prova dos autos é robusta em demonstrar que a apelante manteve união estável com o falecido, mesmo antes dele se separar de fato da esposa. Necessidade de dividir o único bem adquirido no período em que o casamento foi concomitante à união estável em três partes. ‘Triação’. Precedentes jurisprudenciais. Deram provimento, por maioria” (TJRS, Acórdão 70024804015, Guaíba, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 13.08.2009, DJERS 04.09.2009, p. 49).

Notadamente, na maioria dos casos além da concomitância familiar há apoio material do companheiro em comum as duas famílias, ou seja, a segunda companheira também depende financeiramente do parceiro, mais uma característica da configuração de uma entidade familiar e não mero envolvimento eventual.

O vínculo nas uniões concomitantes é tão profundo, tão linear é a sua constância, e às vezes tão longo, que o tido como amante passa a colaborar, tanto direta quanto indiretamente, na formação do patrimônio do companheiro casado.[14] Uma vez tendo sido reconhecida a união paralela como união estável, esta passa a ter todos os direitos que a legislação oferece as companheiras, perdendo a característica de concubina. A partilha dos bens torna-se uma mera conseqüência disso, não importando o tipo de contribuição feita pela companheira, se direta ou indireta. 

Nesta esteira, vale fazer referência aos seguintes julgados:

“Apelação cível. União estável. Relacionamento Paralelo ao casamento. Se mesmo não estando separado de fato da esposa, vivia o falecido em união estável com a autora/companheira, entidade familiar perfeitamente caracterizada nos autos, deve ser reconhecida a sua existência, paralela ao casamento, com a consequente partilha de bens. Precedentes. Apelação parcialmente provida, por maioria” (TJRS, Acórdão 70021968433, Canoas, 8.ª Câmara Cível, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, j. 06.12.2007, DOERS 07.01.2008, p. 35).

Apelação. União dúplice. União estável. Possibilidade. A prova dos autos é robusta e firme a demonstrar a existência de união entre a autora e o de cujus em período concomitante ao casamento de ‘papel’. Reconhecimento de união dúplice. Precedentes jurisprudenciais. Os bens adquiridos na constância da união dúplice são partilhados entre a esposa, a companheira e o de cujus. Meação que se transmuda em ‘triação’, pela duplicidade de uniões. Deram provimento, por maioria, vencido o des. Relator” (TJRS, Apelação Cível 70019387455, 8.ª Câmara Cível, Rel. Rui Portanova, j. 24.05.2007).

Colhemos a lição de Giselda Hironaka valendo citar os seus dizeres que descrevem sua enfática preocupação em evitar o demasiado apego a “letra fria da lei”: 

“Que o direito não permaneça alheio à realidade humana, à realidade das situações existentes, às mudanças sociais importantes que, sem dúvida, têm se multiplicado na história das famílias, exatamente como ela é. “Cerrar os olhos talvez seja mais um dos inúmeros momentos de hipocrisia que o Legislativo e o Judiciário têm repetido deixar acontecer, numa era em que já não mais se coaduna com as histórias guardadas a sete chaves”.[15]

6.CONCLUSÃO

Diante do que fora exposto, percebe-se que o Direito de Família vem passando por diversas modificações, e que, cada vez mais reconhece distintas espécies de uniões familiares que até pouco tempo não eram admitidas em nosso ordenamento.

Assim, vimos que a Constituição de 1988, acompanhando as transformações sociais e, principalmente, a valorização do afeto, da solidariedade, da dignidade humana no nosso ordenamento jurídico, veio por trazer novas estruturas e formas de famílias, como por exemplo, as Famílias Paralelas.

Nesse passo, a jurisprudência e a doutrina, ao observar todas estas transformações, tenta adaptar-se para concretizar justiças e desfazer de preconceitos, haja vista que a sociedade reclama por soluções novas. 

No caso das Uniões Paralelas, ao se aplicar de forma direta as normas legais, sem analisar os fatos que levaram a formação destas uniões, tende por gerar injustiças, já que, na maioria das situações, envolve afeto, dedicação por anos, solidariedade e etc..

Diversas teses são aplicadas para tentar solucionar a questão das Famílias Paralelas, conforme já esclarecida no decorrer deste artigo.

Fora demonstrado a tese que defende que a sociedade brasileira está inserida em um sistema monogâmico e, portanto, não há espaço para uniões familiares paralelas, considerando qualquer união subseqüente a primeira de concubinato; a que reconhece as uniões paralelas como entidades familiares, atribuindo excepcionalmente um caráter patrimonial e monetário ao afeto, o que somente faz gerar direitos na seara patrimonial; a que entende que os relacionamentos simultâneos constituem uniões estáveis – e não concubinato – em observância à valorização afeto.

Nesse passo, ao se analisar tais teses, fora identificado que o STJ e o STF entendem que não seria possível atribuir qualquer caráter familiar a tais uniões paralelas, haja vista que qualquer ideia ao contrario iria de encontro ao “principio da monogamia”, e consequentemente abalaria os pilares da segurança jurídica.

Contudo, conforme demonstrado surge cada vez mais forte, opiniões doutrinárias e em jurisprudências, que destoam com os ditos do STJ e STF, as quais reconhecem a importância de preservar os laços afetivos e, por conseguinte, os laços familiares, como forma de enaltecer o princípio da dignidade da pessoa humana. Desta maneira se reconhece que as relações paralelas são consideradas como uniões estáveis. Assim, todos os companheiros teriam os mesmos direitos, incluindo os sucessórios e os previdenciários.

Porém, sabe-se que as transformações no pensar, acontecem de forma parcimoniosa, mas é necessário não fecharmos os olhos as novas possibilidades que a sociedade nos impõe. Não podemos analisar a legalidade de forma isolada, sem avaliarmos os acontecimentos da realidade, em uma contemporaneidade extremamente dinâmica e que urge pela valorização da dignidade da pessoa humana. Por isso, já pode ser visto em alguns tribunais decisões de reconhecimento enquanto entidade familiar estas uniões paralelas.

Por fim, respeitando as opiniões doutrinarias e dos nossos tribunais superiores, corroboramos com a ideia do reconhecimento das uniões simultâneas como entidade familiar, bem como todas as suas conseqüências nos direitos das famílias e sucessões. Respeitando assim, o afeto, a solidariedade, e principalmente, a dignidade da pessoa humana.

 

Referências
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Notas:
[1] Disponível em: < http://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2012/08/uniao-estavel-entre-tres-pessoas-e-oficializada-em-cartorio-de-tupa-sp.html>

[2] Disponível em < www.tjrs.jus.br >

[3] Disponível em: < www.stj.jus.br >

[4] Disponível em: < www.tjrj.jus.br >

[5] MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. Rio de Janeiro: 2008, p. 819.

[6] Disponível em: < www.tjpe.jus.br >

[7] Disponível em: < www.stj.jus.br >

[8] Disponível em: < www.stj.jus.br >

[9] STOLZE, Pablo. Direitos da(o) amante. Na teoria e na prática (dos tribunais)Jus Navigandi, Teresina, ano 13n. 184116 jul. 2008. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/11500>. Acesso em: 26 mar. 2014.

[10] http://www.conjur.com.br/static/text/60967,1, acessado em 23 de março de 2014.

[11] STOLZE, Pablo, Material de Apoio de Direito de Família, Apostila 01, 2013.2, http://www.passeidireto.com/arquivo/2407582/20132lfgfamilia_01, acessado em 20.03.2014.

[13] 27 http://www.conjur.com.br/static/text/40960,1, acessado em 20 de março de 2014. 

[14] Melo, Giovana Pelagio. Uniões Concomitantes. Disponível em: <http://www3.pucrs.br/pucrs/files/uni/poa/direito/graduacao/tcc/tcc2/trabalhos2010_2/giovana_melo.pdf>. Acesso em: 26 de março de 2014.

[15] Hironaka, Giselda Maria Fernandes Novaes. Famílias Paralelas. Disponível em:< www.revistas.usp.br/rfdusp/article/download/67983/pdf_8‎>. Acesso em: 26 de março de 2014.


Informações Sobre o Autor

Thácio Fortunato Moreira

Advogado. Sócio Coordenador do Escritório Queiroz Cavalcanti Advocacia. Pós graduando em Direito Civil na Unifacs. Aluno Especial em Direito Civil no mestrado da UFBA


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