Por que o novo coronavírus preocupa tanto? Discussões de saúde pública e privada

Paulo André Stein Messetti, do Stein Messetti Advocacia em direito da saúde,é advogado formado na USP, especialista em direito médico e da saúde, mestre em bioética e doutorando em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do Centro Universitário Saúde ABC

O Wuhan 2019 talvez tenha sido o personagem principal do Carnaval de 2020. E impediu o país de começar o ano, mesmo depois da bacchanalia, o que já é inédito. Este novo coronavírus (cujo nome oficial é Sars-Cov-2, causador da doença Covid-19) assusta muita gente, mas algumas pessoas preferem compará-lo a uma simples gripe, acreditando que sua taxa de letalidade seja inferior ou equivalente à da gripe H1N1 (suína) ou à da H3N3 (comum) e que, portanto, não deve haver grandes repercussões na economia e no setor da saúde da maioria dos países do mundo com os estragos com que vem se apresentando. Quem estaria certo?

Até o presente, o novo coronavírus (Sars-Cov-2) tem índice de letalidade próximo aos 3%, segundo informações da Organização Mundial da Saúde. Mas se questiona que a letalidade correta seria aquela relativa ao universo dos que pegaram a doença, e não ao dos índices oficiais, que estaria aquém do número real de casos. Mas, se não podemos trabalhar com dados oficiais, com quais trabalharíamos? Gripes cíclicas anuais giram em torno de 0,1% de letalidade, o que é bem inferior ao poder de matar infectados do Sars-Cov-2.

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Quanto à sua capacidade de contaminação e transmissão entre humanos, o Sars-Cov-2 tem poder de transmissão de uma pessoa para outras duas (ou 1:2). Em termos de comparação, o vírus do sarampo tem poder de transmissão de 1:18. O sarampo é mais preocupante, em termos de transmissão, mas a Covid-19 também não deixa de ser relevante neste aspecto, e talvez tenha um potencial de contaminação ainda maior. Por sua velocidade de transmissão e presença em mais de dois continentes, temos inegavelmente uma pandemia, embora até isso tenha demorado a ser reconhecido oficialmente, nada obstante o apelo dos cientistas. A transmissão de pessoa a pessoa do Sars-Cov-2 é agravada pelo fato de que o vírus se transmite por fômite — ou seja, o patógeno pode ter vida extracorpórea por dias no asfalto e mesmo em superfícies metálicas e plásticas. E a falta de insumos de proteção para o uso geral dos necessitados, tais como máscaras, álcool em gel, luvas, demonstra que os esforços coletivos e industriais que ainda são viáveis devem se voltar para o combate à pandemia.

É uma emergência de saúde pública. Cientistas de Harvard divulgaram preocupação com o potencial de que 70% da população mundial possa ser contaminada com o novo coronavírus. Se todos se contaminarem, em poucos dias o colapso de todos os sistemas de saúde é inevitável. Por isso, o único e melhor remédio é a quarentena e o isolamento social. São impositivos. Isso deve ser feito por pelo menos 30 dias, prorrogáveis por mais 30.

A idéia não é conter o contágio, mas desacelerá-lo. Muitas pessoas serão contaminadas, muitos morrerão, infelizmente, mas temos que fazer de tudo para que mortes evitáveis não aconteçam, como ocorre ainda hoje na Itália, em que doentes graves deixam de ser atendidos por falta de recursos e, por isso, morrem. Se os contágios ocorrerem de modo mais dividido ao longo dos próximos meses, não haverá falta de leitos, nem falta de UTIs, nem falta de ventiladores. A quarentena e o isolamento social salvarão as vidas daqueles que podem ser curados. Nova York hoje corre contra a possibilidade de não haver ventiladores em UTIs nos próximos dias. Se isso não se trata de emergência de saúde pública, no centro do capitalismo, o que seria necessário para parar o desenfreado tilintar da humanidade?

Enquanto irresponsáveis chamam a Covid-19 de gripezinha, e aventam “isolar apenas os grupos de risco”, cientistas de todo o mundo demonstram que é necessário isolamento social total, com medidas de quarentena, além da testagem massiva de pessoas com os sintomas da doença.

Para fazer uma comparação didática: no caso do sarampo, sustenta-se que já há uma grande parte da população imunizada, mas a verdade alarmante é que o vírus do sarampo que transitou no Brasil e no mundo recentemente não é o mesmo subtipo do vírus constante de sua vacina de anos atrás. Ele sofre mutações. Ou seja, não há imunidade absoluta e permanente da população. Isso em termos de virologia, é a ordem do dia, é algo natural e esperado; mas para a turma do “deixa disso”, é algo completamente desconhecido.

O caso da Covid-19 segue a mesma dinâmica, mas é peculiar em alguns aspectos. As mutações do vírus Sars-Cov-2 são muito recentes e talvez seja impossível desenvolver uma vacina no tempo necessário. Se a vacina for desenvolvida, levará provavelmente alguns anos para se comprovar eficaz — e mais tempo ainda para que seja fabricada e distribuída em escala mundial. Um fato é que ainda não foi criada nenhuma vacina para esta família de vírus para uso em seres humanos. Este é um forte argumento a favor da quarentena. Por outro lado, há esforços científicos gigantescos nesse intento. Ocorre que as mutações virais podem fazer da Covid-19 uma nova ameaça a cada ano.

O que preocupa, em especial, é a capacidade de mutação dos coronavírus, e já está comprovado que isso ocorre no caso do Sars-Cov-2, que já apresenta mutações em vários lugares do globo. Praticamente, na família viral (CoV) surge um tipo novo de vírus mortal a cada década, com importante repercussão na saúde pública: desde 2002, a Sars já fez cerca de 800 vítimas; desde 2012, a Mers também já fez cerca de 800 vítimas. Em termos absolutos, a Covid-19 já matou muito mais pessoas do que os vírus responsáveis pelas crises anteriores.

Além disso, questiona-se se o Sars-Cov-2 pode se tornar ainda mais contagiante e mortal ao longo do desenvolvimento da pandemia, e nos próximos anos e surtos, que já são cotados como bem prováveis.

Já se fala em uma possibilidade de sazonalidade da Covid-19. Outros vírus respiratórios, que também são coronavírus, mas são menos importantes, já são responsáveis por cerca de 10% de infecções respiratórias anuais, sazonais. A estes se somaria o Sars-Cov-2 e suas futuras mutações, ano a ano. Precisamos focar em tentar criar vacinas para imunizar a população, e na testagem de medicamentos para tratar os doentes, em um primeiro momento — ainda que, em tese, sejam eficazes apenas para as primeiras cepas do vírus circulante. Tudo isso deve ser feito visando à diminuição da capacidade de alastramento da doença. Mas mesmo isso leva tempo e exige recursos e empenho dos governos, o que não tem sido visto em muitos lugares, infelizmente. Logo, o alastramento será ainda maior e a Covid-19 fará mais vítimas no curto e médio prazos. E mais, a maioria das vítimas deve se concentrar nas camadas mais vulneráveis da população, mas uma coisa deve ficar bem clara: os ricos também não serão poupados. O vírus, neste aspecto, é democrático… Assim, as nações do mundo devem adotar e manter medidas efetivas de controle e proteção, visando ao tratamento de contaminados e à diminuição da transmissibilidade da doença.

Lado a lado com a busca biológica e médica pelo enfrentamento da pandemia, é necessária uma postura solidária e de fomento da cidadania que passa por uma discussão de implemento imediato de uma renda básica de emergência para toda a população, que está de quarentena e coma renda diminuta ou inexistente. Quantos trabalhadores informais estão sem o que comer? E o que dizer sobre o pagamento das suas contas do mês? Os lucros dos grandes conglomerados econômicos e financeiros precisam ser tributados com emergência, de modo a viabilizar um caminho para a redução das desigualdades. Também a previsão constitucional da criação de Imposto Sobre Grandes Fortunas precisa ser implementada. Essa discussão ainda é muito incipiente no país, embora a crise de saúde pública ande de mãos dadas com a crise econômica em iminência e exija medidas urgentes.

Infectados

Parte das pessoas infectadas é considerada assintomática, mas, mesmo assim, são potenciais transmissores do vírus. Há estudo relacionando assintomáticos e o contágio de grande parte dos doentes. Pelo menos 20% de todos os casos são graves, com acometimento pulmonar e necessidade de internação hospitalar. Embora se considere que a letalidade da Covid-19 seja de cerca de 3%, nada garante que essa taxa não irá aumentar. E não há dúvidas de que a vida de cada ser humano é relevante. Há um mito utilitarista de que apenas a maioria deve ser protegida. No caso da Covid-19, essa maioria poderia ser interpretada como aqueles que não sofrerão as consequências graves da doença (pelo menos 97% dos contaminados sobrevivem). Assim, alguns diriam que a proteção desta maioria justificaria o fim dos isolamentos sociais, já que dependem de trabalhar para manter a economia funcionando. Mas essa não é a opinião dos médicos e especialistas. Se esta ideia obtusa de proteção social prevalecer, ficando em isolamento apenas os grupos de risco, torça para que você não seja parte dos 3%de doentes que falece…

 

Saída ética

Há um exercício filosófico, conhecido como “Dilema do Bonde”, em que se questiona se seria justo desviar uma locomotiva desgovernada, prestes a atropelar cinco pessoas que estão nos trilhos à frente, de modo que, com essa manobra, a locomotiva atropele apenas uma pessoa que está sobre os trilhos ao lado.

Não há uma resposta certa para o dilema; trata-se de uma especulação sobre os fundamentos da ética. Mas é relevante notar que a maioria daqueles que enfrentam o dilema entende que matar uma pessoa seria menos ruim do que matar cinco pessoas.

Mas o que justificaria atentar contra a vida de uma pessoa (que continuaria viva se o trem não fosse desviado) para poupar a vida de outras cinco pessoas? Possivelmente, a justificativa é o desejo humano de provocar menos danos ao maior número de pessoas. Concluímos, no entanto, que não se justifica sacrificar uma vida sequer para salvar a vida de outros. Os regimes totalitários, por exemplo, justificam o sacrifício de uns por muitos, o que não é aceitável. O que fazer, então?

Pensando na política de redução de danos, devemos controlar ao máximo a expansão dessa doença. Os leitos dos hospitais são uns dos insumos mais caros da saúde — pública ou privada , em todo o mundo. E são insumos escassos diante da pandemia, por isso devem ser protegidos com quarentenas e isolamento social total por um período ainda em teste. Trata-se de uma medida dura para combater algo igualmente difícil, talvez piore certamente cruel.

Neste caso, não se pode considerar que a pandemia seria irrelevante para a saúde pública, deixando-se de implantar as medidas de quarentena e isolamento sob a alegação de que “a economia não pode parar”. A realidade socioeconômica já está sendo afetada pela pandemia, isto é inevitável e não importa que a doença tenha, supostamente, uma baixa taxa de mortalidade, considerada a população mundial. Afinal, em políticas públicas de saúde, deve-se minimizar os danos para o maior número de pessoas possível, sempre respeitando a autodeterminação e o bem-estar de todos, não somente de alguns ou somente da maioria. Todas as vidas importam. Portanto, tratar a pandemia como algo sem importância não está de acordo com o papel do Estado e da sociedade civil em uma crise desta natureza.

Sistemas de saúde

De seu lado, sistemas de saúde públicos e privados devem se preocupar e tomar medidas conjuntas, proativas, e devem assumir responsabilidades com o avanço da doença para minimizar os impactos negativos da crise em sua prestação de serviços, notadamente nos setores ambulatorial e hospitalar, para bem efetivar tratamentos como um todo. Cabe pontuar que o equilíbrio contratual das relações do setor de saúde sairá comprometido, e as exigências sanitárias incrementadas pela crise já devem impactar nos preços dos insumos e serviços de saúde, o que em parte já é sentido por todos.

Paulo André Stein Messetti, do Stein Messetti Advocacia em direito da saúde,é advogado formado na USP, especialista em direito médico e da saúde, mestre em bioética e doutorando em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do Centro Universitário Saúde ABC.

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