Por Fernando Bianchi, Advogado especialista em Direito Médico e da Saúde, Sócio da Miglioli e Bianchi Advogados e ex membro das Comissões de Direito Médico e de Planos de Saúde – OAB/SP
E Giuliano Pretini Bellinatti, sócio do Miglioli e Bianchi Advogados
Mesmo pressionado por entidades de classe médicas, o Conselho Federal de Medicina e os Conselhos Regionais a ele vinculados vêm impedindo a utilização da telemedicina.
Sob o fundamento de que a prática da telemedicina configuraria desrespeito ao artigo 37 do Código de Ética Médica – “prescrever tratamento e outros procedimentos sem exame direto do paciente” –, os Conselhos Médicos, de forma contumaz, apenam profissionais e empresas que prestam essa modalidade de serviço, ainda que a prática tenha respaldo na Resolução nº 1643/2002, editada há quase duas décadas pelo próprio CFM.
Esse posicionamento conservador e arcaico de que a boa prática médica deve, necessariamente, ser presencial, talvez se justificaria quando os únicos meios de comunicação entre as pessoas eram restritos ao telégrafo, telefone ou fax.
Há muito tempo, contudo, os avanços tecnológicos possibilitam a prestação de serviços médicos de qualidade à distância.
Tanto isso é verdade que a telemedicina não é novidade no resto do mundo, a evidenciar a experimentação e a aprovação desse modo de prestação de serviços de saúde à população.
A telemedicina é um recurso fundamental para situações de epidemia, dada sua capacidade de diminuir a circulação de pessoas em aparelhos de saúde, reduzir o risco de contaminação de pessoas e a propagação da doença, penetrar em lugares de difícil acesso ou com estrutura deficitária e liberar leitos e vagas de atendimento hospitalar em favor de pacientes infectados.
A telemedicina é, ainda, um recurso fundamental para garantir o atendimento a pacientes portadores de patologias e comorbidades de base, preexistente à epidemia, que, embora não infectados, não podem comparecer pessoalmente a consultas médicas em vista das orientações de redução de convício social.
Trata-se, pois, de uma necessidade efetiva, tanto para infectados como para não infectados.
Não por outro motivo, o Governo Federal autorizou a utilização de telemedicina nos aparelhos públicos de saúde.
No âmbito privado, motivados, em sua maioria, pela situação de emergência em saúde internacional decorrente da pandemia do coronavírus, vários profissionais e empresas médicas apresentaram consultas formais aos Conselhos de Medicina clamando urgência na autorização expressa da prática da telemedicina – ainda que não precisassem fazê-lo, já que a prática é objeto de regulamentação pela Resolução CFM nº 1643/2002. Infelizmente, não obtiveram nenhuma resposta imediata.
Passadas semanas desde a instituição da pandemia, o CFM, pressionado publicamente, divulgou, em 19.03.20, o Ofício nº 1756/2020 – COJUR, por meio do qual autorizou a prática de três serviços médicos à distância durante o combate à pandemia.
A divulgação desse ofício vem sendo equivocadamente interpretada como a nova liberação da telemedicina no país, mas tal movimento do CFM não teve esse alcance.
Isso porque os procedimentos expressamente autorizados no referido ofício foram os seguintes
-Teleorientação: orientação à distância e encaminhamento de pacientes em isolamento. A medida não libera a realização de consultas e nem mesmo abre a possibilidade de que pacientes não infectados pelo COVID 19 recebam atendimento por recurso de telemedicina.
– Telemonitoramento: orientação e supervisão médica para monitoramento ou vigência, à distância, de parâmetros de saúde e/ou doença. A medida não guarda relação com a realização de consultas ou o efetivo tratamento, limitando-se ao acompanhamento de pacientes por profissionais de saúde.
– Teleinterconsulta: exclusivamente para troca de informações e opiniões entre médicos, para auxílio diagnóstico ou terapêutico. A medida é totalmente divorciada do atendimento médico ao paciente, restringindo-se ao compartilhamento de opiniões e discussões técnicas entre médicos sobre análise diagnóstica e definição de tratamento.
Como se vê, o CFM continua se omitindo, relegando a um segundo plano o interesse público. E, ao que parece, não mostra tanto engajamento e apoio às políticas públicas de saúde estabelecidas em prol da população brasileira.
A telemedicina é infinitamente mais ampla que os procedimentos constantes do ofício divulgado pelo CFM e sua aplicação não deve ter como foco exclusivo pacientes infectados ou mesmo situações de pandemia.
Por isso, em que pese a vigência da Resolução CFM nº 1643/2002, era e continua sendo imprescindível que os profissionais de saúde possam praticar a telemedicina sem restrições, livres do risco de serem apenados pelos Conselhos Médicos.
A postura do CFM, que se mantém mesmo após a divulgação do supracitado ofício, representa violação aos seguintes direitos:
– direito de todos à vida e à saúde (arts. 196 e 199, CF);
– direitos sociais dos pacientes a terem acesso à assistência médica (art. 6º, CF);
– direito dos profissionais e empresas médicas a prestarem irrestritamente serviços de saúde de alta relevância publica (art. 197, CF);
– direito de as empresas médicas cumprirem sua função social, viabilizando o atendimento a pacientes que não devem ou não podem se deslocar até suas dependências (art. 170, CF);
– direito dos profissionais de saúde e empresas médicas prestarem atendimento seguro e com dignidade tanto para pacientes infectados pelo COVID-19, quanto para não infectados, porém acometidos de outras comorbidades cujos tratamentos demandam acompanhamento contínuo de outras especialidades medicas (princípio da dignidade humana);
Diante da negligência e omissão do CFM e independente de sua aquiescência, o Governo Federal, com fundamento no art. 3º da Lei 13.979/20, editou a Portaria nº 467, de 20.3.20, publicada no DOU em 23.3.20, do Ministério da Saúde, que autorizou a prática da Telemedicina tanto no âmbito público como privado.
A sobreposição do Governo Federal e Ministério da Saúde sobre matéria do CFM, repita-se, demonstra a sobreposição do interesse público sobre o privado, bem como que àquela autarquia federal não vem atuando bem e da forma esperada tanto pela classe médica como pela população em geral.
Independente, é fato que tal autorização estará vigente enquanto perdurar o estado de urgência de saúde instituído pelo Governo Federal em razão da pandemia.
Por tal razão, profissionais e empresas médicas que almejem praticar a telemedicina devem socorrer-se ao Poder Judiciário para preservar o direito de praticarem a telemedicina de forma integral mesmo após o término da pandemia, pois trata-se de um direito.