Resumo: O artigo aborda o abuso do direito no direito do consumidor e no direito civil e as cláusulas abusivas (no aspecto doutrinário e jurisprudencial), apontando as principais práticas abusivas e as normas protetivas presentes no CDC.
Palavras-chave: Abuso do direito. Cláusulas Abusivas. Práticas Abusivas. CDC. Código Civil Brasileiro
Résumé: L'article traite de l'abus de droit en droit de la consommation et le droit civil et les clauses abusives (dans l'aspect doctrinal et jurisprudentiel), en soulignant les principales pratiques abusives et les normes de protection présents dans le CDC.
Mots-clés: abus de droit. Les clauses abusives. Pratiques abusives. CDC. Code civil brésilien
É muito importante para o Direito Privado Contemporâneo a figura do abuso de direito cujo conceito consta no Código Civil Brasileiro (art. 187 C.C.) como também no CDC o que confirma a interação dialógica entra as diferentes fontes de direito.
O art. 187 do CC revitalizou a responsabilidade civil, trazendo nova modalidade de ilícito que enseja o dever de indenizar. Trata-se de ilícito equiparado conforme também prevê o art. 927 do C.C.
É importante salientar que o exercício regular de um direito não constitui ato ilícito, ou conforme, o brocardo romano que menciona “quem usa seu direito a ninguém lesa” (qui iure suo utitur, neminem laedit)[1]. Gaio também ensinou que nenhum dolo parece fazer quem usa seu próprio direito.
O instituto do abuso do direito é construção doutrinária e jurisprudencial do século XX, embora em sua origem seja comumente identificada nos atos emulativos do direito medieval, sendo também encontrados sérios vestígios no direito romano.
A história registra que somente em 1912, com o caso Clement Bayard, julgado pela Corte de Amiens, a teoria do abuso de direito tornou-se amplamente conhecida.
Consta que o proprietário de um terreno vizinho a um campo de pouso de dirigíveis construiu, sem qualquer justificativa, enormes torres no vértice das quais instalou lanças de ferro, colocando em perigo as aeronaves que ali aterrissavam. A decisão considerou abusiva a conduta, responsabilizando o proprietário.
Exatamente no Direito das Coisas foi a primeira seara onde se cogitou impor limites ao exercício de direitos, além daqueles estabelecidos na própria lei, criando entre o permitido e o proibido, uma nova categoria de atos jurídicos.
A formulação de conceito jurídico autônomo fez surgir diversas teorias, as quais procuram ora justificar e ora negar o ato abusivo, identificá-lo ou distingui-lo do ilícito.
As teorias negativistas buscaram demonstrar sua inexistência, seja como consequência naturale lógica da própria negação do conceito de direito subjetivo (Duguit), seja por situá-lo fora do campo jurídico, definindo apenas como conceito metafísico (Rotondi), como por entender também que os direitos subjetivos não admitem limitação que não seja imposta pelo ordenamento jurídico (Planiol).
A crítica à concepção desta derradeira teoria é expressa na máxima de Marcel Planiol que aponta que segundo a qual "o direito cessa onde começa o abuso" o que conduziu as primeiras correntes doutrinárias afirmativas a uma interpretação no sentido da absorção do ato abusivo pelo ato ilícito.
Alguns afirmativistas entenderam que o abuso de direito apenas como princípio geral de interpretação das normas jurídicas, ou seja, como instrumento a permitir a adaptação do direito positivo à realidade social, tal teoria contribuiu para a formulação do conceito, introduzindo espírito limitador calcado em valores.
René Savatier aludiu que a caracterização do abuso de direito deve-se ao porte do dano que é o dano anormal, a circunstância que evidenciaria se o exercício do direito excedeu ou não a medida fixada pelos costumes.
É causação do dano excessivo, que caracterizaria o abuso de direito, tendo em vista que o limite fosse fixado equitativamente e casuisticamente.
A corrente doutrinária liderada por Ripert retomou a linha de pensamento traçada por Planiol, sustentando que o abuso do direito não faz parte das qualificações jurídicas, mas é resultado da subordinação da lei positiva aos princípios morais, à regra moral. (In: La régle morale dans les obligations civiles, Paris: Librairie Génperale de Droit et de Jurisprudence, 1925, p.6).
O ato abusivo é aquele que não apenas causa dano a outrem, mas se torna reprovável por infringir deveres morais de justiça, equidade e humanidade, os quais existem acima do plano da legalidade. É a teoria que mais se aproximou das concepções de Direito Natural, e teve o crédito de introduzir a noção de moralidade no exercício dos direitos.
Ao longo da evolução, procuraram os doutrinadores a construir de forma científica o conceito de abuso do direito no cerne do direito subjetivo[2], procurando identificá-lo como resultado de uma contradição, com um dos elementos valorativos do próprio direito. Onde se destacou Josserand que concebeu o abuso como violação ao espírito do direito e ao seu fim social.
O ato abusivo consistiria na atuação antissocial. Há ainda outras teorias como as causalistas que identificam o abuso na confrontação da conduta do titular com os interesses que legitimam o reconhecimento e a tutela legislativa dos direitos. É a concepção causal dos direitos, segundo a qual se configura como abusivo aquele ato desviado da vontade do legislador.
Finalmente, a doutrina evoluiu para a concepção do ato abusivo como aquele onde o sujeito excede os limites ao exercício do direito, sendo estes fixados por seu fundamento axiológico, ou seja, surge no interior do próprio direito, e se desvia do fim social ou econômico de um certo direito subjetivo.
Portanto, a caracterização do ato abusivo depende do estabelecimento de limites ao exercício do direito subjetivo, além dos quais o titular ingressa na antijuridicidade, sujeitando-se às sanções correspondentes.
A teoria aplica-se igualmente, as outras prerrogativas individuais, como as liberdades, faculdades, funções ou poderes, visto que todas elas possuem igualmente um fundamento axiológico.
Clóvis Bevilácqua alegava que a doutrina em sua época não havia cristalizado de forma definitiva a noção de abuso de direito. Ressalto que alguns doutrinadores que o abuso do direito está no exercício, com a intenção de prejudicar alguém (Bufnoir, Charmont e Sourdat). Já outros entendem que este se caracteriza pela ausência de motivos legítimos (Gény, Josserand).
Capitant associou a negligência ou imprudência à intenção de prejudicar, Saleilles acreditava que o abuso do direito está no seu uso anormal, Bardesco ponderou que as diversas formas propostas eram insuficientes, mas se completam e devem ser aceitas até que, o mais firme o estado jurídico por estas representado para que se possa traduzir por um critério único.
Kohler considerou que o abuso de direito é ofensa à personalidade. O Código Civil alemão em seu art. 226[3] admitiu a noção de que se dá abuso do direito, quando seu exercício tem por fim exclusivo causar dano a outrem. Foi a doutrina alemã a condenar a chicana. O Código Civil Suíço em seu art. 2º não exige a intenção de prejudicar exclusiva ou não. Caracteriza o abuso de direito pela má fé no seu exercício.
O Código Civil de 1916 em seu art. 160, I referia-se ao exercício irregular do direito seguindo a doutrina Saleilles. O exercício anormal do direito é abusivo. A consciência pública reprova o exercício do direito do indivíduo quando seja contrário ao destino econômico e social de direito, em geral.
O Código Civil vigente soube reconhecer a discussão doutrinária, e ainda a necessidade de fazer expressa, na lei, a presença do instituto de abuso de direito, e como ato ilícito.
Confirmou Caio Mário da Silva Pereira que o abuso de direito se configura o desvirtuamento do conceito de justo, na fruição de seu direito a um grau de causar malefício a outro indivíduo, que ora encontra fundamento na regra da relatividade dos direitos (Josserand); ora assenta-se na dosagem do conteúdo do exercício regular de seus direitos, age sem direito; ora baseia-se na configuração do animus nocendi[4], e estabelece que seja de ser reprimir o exercício do direito, quando se inspira na intenção de causa mal a outrem (Ripert).
É evidente que o abuso de direito existe o direito e a atuação excessiva, que rompe os limites do direito alheio. O verbo abusar (abutor, eris, usus, sum, i) primitivamente era usado no sentido de usar com bastante intensidade, como no conceito de propriedade no direito romano que implicava, o ius utendi, fruendi et abutendi (direito de usar, fruir e abusar) que significava usar com o exercício de proprietário (potestas).
Com a evolução, o verbo modificou seu sentido e passou a significar uso indevido, excessivo. Lembre-se de que Marco Tullio Cícero usou o referido verbo de forma irônica em uma passagem das Catilinárias[5]: Quosque tandem Catilina abutere patientia nostra? (até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência).
O conceito de direito de propriedade fora afetado também pela evolução linguística e doutrinária do abuso tanto que teve sua expressão ius abutendi substituída por ius disponendi (direito de dispor) e que constava nos arts. 524 do Código Civil de 1916 e atualmente consta no art. 1.228 do Código Civil de 2002.
Alvino Lima apontou a teoria do abuso de direito opõe-se à existência de direitos absolutos, condensa na máxima neminem laedit qui suo iure utitur e se tivesse sido implantada em nosso Direito, à época, teria criado a culpa no uso dos direitos.
Ressalte-se que a antiga da Lei de Falências (Decreto 7.661, de 21/06/1945) em seu art. 20, no caput previa o requerimento da falência por dolo, configurando-se, nesse caso, dolo se não for decretada a quebra, sujeitando o autor do pedido a pagamento indenizatório.
Já a Lei 11.1101/2005 prevê a figura do abuso de direito em razão da recuperação Somente após o deferimento do pedido e o processamento da recuperação, é que o plano de recuperação judicial poderá ser apresentado pelo devedor aos credores para que estes votem aprovando, rejeitando ou modificando o mesmo.
É na concessão de uma recuperação judicial para um devedor, que os credores podem agir de modo abusivo[6] ao exercer o seu direito de voto, pois visam apenas o próprio interesse financeiro, sem pensar nos efeitos que a falência da empresa devedora pode acarretar na sociedade como um todo.
Já em sede processual o abuso do direito corresponde à litigância de má-fé[7], o que implica em dolo, ato ilícito, que é gênero. E prevê no art. 17 do CPC.
E, ainda no CDC, ou seja, a Lei 8.078 de 11 de setembro de 1990, em que os direitos básicos deste estão elencados no art. 6º entre os quais a modificação de cláusulas contratuais em que as proteções sejam desproporcionais ou sua revisão, por fatos supervenientes, que tornem as prestações insuportáveis excessivamente onerosas (inciso V).
O CDC em capítulo da proteção contratual há a regulação das cláusulas abusivas e, adiante, tratou nos contratos de adesão[8], demonstração patente de evitar nas contratações o abuso de direito.
Nesse caso o abuso cria situações favoráveis a si, a um dos contratantes acaba por invadir o direito do outro contrante, acaba por invadir o direito do outro contratante, o consumidor.
A imposição de condições abusivas, expressas através de cláusulas contratuais, excessivamente onerosas para o aderente e são vantajosas para o estipulante, constituem-se num abuso de direito ou ferem o princípio da boa-fé objetiva, caracterizando as denominadas cláusulas contratuais abusivas. Estas são resultantes de um exercício abusivo de direito, com vantagem indevida para um dos contratantes.
Neste sentido, as cláusulas abusivas não apenas ferem as normas positivadas como também atingem os princípios gerais de moralidade e de interesse público.
O controle das cláusulas abusivas nos diversos países que possuem legislação sobre a matéria é feito através de três sistemas: sistema das listas enumerativas, sistema da cláusula geral e sistema misto.
O sistema de listas tipifica as situações de abusividade mais ocorrentes no universo jurídico, oferecendo uma enumeração dos casos mais graves.
O sistema de cláusula geral adota certos valores que, uma vez ultrapassados exigem revisão. A legislação brasileira, procurando beneficiar-se da vantagem do controle prévio e abstrato do sistema de listas e do controle concreto do sistema de cláusulas gerais adotou um sistema misto.
O art. 51 do CDC enumera na maior parte de seus incisos as hipóteses constantes da lista de cláusulas proibidas. Além destas, o Ministério da Justiça através da Secretaria de Direito Econômico[9], publicou uma série de portarias acrescendo outras cláusulas abusivas ao rol do art. 51.
Por uma questão de legalidade, estas portarias possuem eficácia limitada ao âmbito administrativo, mas servem de parâmetro para o judiciário, podendo ser utilizadas em conjunto com as cláusulas gerais.
A exposição que segue das cláusulas abusivas integra as hipóteses das portarias e tem uma separação temática. São exemplos de cláusulas de Abuso do Poder Econômico
Multa Excessiva:
• Estipulação de carência para cancelamento nos contratos de cartão de crédito (item 4 da Portaria 3/99);
• Estabelecimento de carência em caso de impontualidade das prestações e mensalidades (item 1, da Portaria 4/98);
• Estipulação de multa moratória superior a 2% em contratos educacionais e similares (item 11 da Portaria 3/99);
• Cobrança cumulativa de comissão de permanência e de correção monetária; (item 7 da Portaria 4/98);
Perda das Prestações Pagas:
• Perda das prestações pagas como multa por inadimplemento em caso de financiamentos. (art. 51, II, do CDC)
• Recebimento de valor inferior ao valor contratado na apólice de seguro. (item 13 da Portaria 3/99)
• Perda total ou desproporcionada das prestações pagas pelo consumidor em razão da desistência ou inadimplemento, ressalvada a cobrança judicial de perdas e danos comprovadamente sofridos. (item 5 da Portaria 4/98)
• Devolução das prestações pagas, sem correção monetária. (item 13 da Portaria 4/98)
Reajuste Unilateral
• Reajuste de preços excessivo; (art. 51, X, do CDC)
• Aumento unilateral em planos de saúde por mudança de faixa etária. (item 1 da Portaria 3/99)
• Escolha unilateral por parte do fornecedor quanto aos índices de reajuste a serem utilizados (item 11 da Portaria 4/98)
Pagamento Antecipado
• Imposição do pagamento antecipado referente a períodos superiores a 30 dias em contratos de prestação de serviços educacionais e similares. (item 5 da Portaria 3/99)
• Exigência de parcelas vincendas, no caso de restituição do bem em contratos de leasing. (item 14 da Portaria 3/99)
• Imposição do pagamento de percentual a título de taxa de administração futura em consórcio. (item 10 da Portaria 3/99);
• Exigência do pagamento do valor residual antecipadamente sem previsão de devolução desse montante, corrigido monetariamente, se não exercida a opção de compra do bem nos contratos de leasing. (item 15 da Portaria 3/99);
Reconhecimento de Dívida
• Estipulação da fatura de cartões de crédito e de conta-corrente como dívida líquida certa e exigível. (item 8 da Portaria 3/99)
• Capitalização de juros
• Capitalização mensal dos juros. (item 9 da Portaria 3/99)
São exemplos de cláusulas de vantagem excessiva:
• Assinatura de títulos de crédito em branco (item 12 da Portaria 3/99)
• Emissão de títulos de crédito em branco ou livremente circuláveis por meio de endosso ou representação de toda e qualquer obrigação assumida pelo consumidor (item 12 da Portaria 4/98);
• Cobrança de outros serviços sem autorização prévia do consumidor em faturas de serviço essencial. (item 3 da Portaria 3/98);
• Venda casada em contrato de prestação de serviços educacionais. (item 6 da Portaria 3/98)
• Impedimento ao consumidor de benefício do evento constante do termo de garantia contratual que lhe seja mais favorável. (item 4 da Portaria 4/98);
• Estabelecimento de sanções por descumprimento somente em desfavor do consumidor. (item 6 da Portaria 4/98)
• Opção unilateral do fornecedor de concluir ou não o contrato, não estabelecendo igual opção para o consumidor. (art. 51, IX, do CDC)
• Autorização de cancelamento unilateral do contrato pelo fornecedor, não estabelecendo igual opção para o consumidor (art. 51, IX, do CDC);
• Ressarcimento de custos de cobrança da obrigação do consumidor, não estabelecendo o mesmo para o fornecedor (art. 51, XVII);
• Modificação unilateral do contrato após sua celebração por parte do fornecedor (art. 51, XIII, do CDC);
• Não restabelecimento dos direito integrais do consumidor, após a purgação da mora. (item 3 da Portaria 4/98)
• Interrupção de serviço essencial sem aviso prévio em caso de impontualidade. (item 2 da Portaria 4/98)
• Cobrança de honorários sem ajuizamento da ação correspondente. (item 9 da Portaria 4/98)
• Limitação de riscos e minimização de garantias para eventuais danos do produto. (art. 51, I, do CDC)
• Afastamento contratual do CDC nos contratos de transporte aéreo (item 10 da Portaria 4/98);
• Autorização do envio do nome do consumidor, e/ou seus garantes, a bancos de dados e cadastros de consumidores, sem comprovada notificação prévia; (item 1 da Portaria 5/02).
São exemplos de cláusulas de exoneração de responsabilidade:
• Limitação de riscos e minimização de garantias para eventuais danos do produto. (art. 51, I, do CDC)
• Restrição além dos limites do dever de indenizar do contratante, por eventuais violações das obrigações contratuais. (art. 51, I, do CDC)
• Verificação unilateral pelo fornecedor da qualidade de produto ou serviço, bem como da conformidade com o pedido. (art. 51, I, do CDC)
• Limitação ou restrição procedimentos médicos e internações hospitalares em contratos de planos de saúde. (item 2 da Portaria 3/99);
• Imposição de limite de tempo de internação hospitalar (item 14 da Portaria 4/98)
• Transferência da responsabilidade a terceiros (art. 51, III, do CDC)
• Renúncia do direito de indenização por benfeitorias necessárias (art. 51, XVI, do CDC).
São exemplos de cláusulas de disparidade no acesso à justiça:
• Eleição de foro diferente daquele onde reside o consumidor. (item 8 da Portaria 4/98)
• Inversão do ônus da prova em prejuízo do consumidor. (item 51, VI, do CDC)
• Utilização compulsória de arbitragem. (item 1, VII, do CDC);
• preposto para concluir ou realizar negócio pelo consumidor (item 51, VIII do CDC);
• Apresentação de extrato bancário como título executivo extrajudicial. (item 7 da Portaria 3/99).
• Imposição de representante para concluir ou realizar negócio jurídico pelo consumidor (art. 51, VII do CDC).
Diante a identificação da cláusula abusiva[10] por enquadrar-se em uma das hipóteses contempladas do art. 51 do CDC, o juiz deverá proceder as etapas seguintes:
a) Declarar a cláusula de nula de pleno direito, não obstante conservar o contrato. Desde que a cláusula estabeleça obrigações consideradas iníquas, abusivas ou que coloque o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, completamente incompatíveis com a boa-fé ou a equidade.
b) Integrar o contrato, se necessário for, conforme prevê o art. 6º, V do CDC. A modificação de cláusulas contratuais que proponham desproporcionais prestações, ou a sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas.
c) Preservar o contrato, sempre que possível, conforme expressamente prevê o segundo parágrafo do art. 51 do CDC. A nulidade da cláusula abusiva não invalida o contrato como um todo, porém quando de sua ausência, apesar de esforço da integração, decorrer excessivo ônus a qualquer dos contratantes.
O princípio da boa-fé objetiva[11] constante no art. 422 do C.C. também mostra também a preocupação do legislador na preservação do bom comportamento dos contratantes em suas negociações.
Há a necessidade de conter o sujeito da relação jurídica nos limites morais do exercício de seus direitos. O poder pode ser exercido somente para os fins, em razão dos quais fora atribuído; todo ato que não seja justificado com referência a essa finalidade, e que se desvie da finalidade, é considerado abuso de direito.
A própria violação do dever de boa-fé[12] na execução do contrato pode configurar-se como abuso de direito. Mesmo em juízo pode haver a prática de abuso de direito quando, por exemplo, se realiza a pura da mora reiteradamente, quando o devedor não se encontra em dificuldade de pagar, obrigando o credor a intentar, mensalmente ações de cobrança, bem como a utilização de diversos recursos protelatórios sem qualquer fundamento.
Além da consequente imputação para reparação dos prejuízos suportados, o abuso de direito também acarreta a nulidade dos atos e negócios correspondentes.
Aliás, é este espírito no art. 51 do CDC que consagra o rol de cláusulas nulas por abusividade. A propósito, lembre-se que nos termos do art. 166, inciso II do Código Civil, é nulo o negócio jurídico quando houver a ilicitude de seu objeto.
Investigando as raízes históricas, sinalizou Lotufo que o abuso de direito decorre da aemulatio do direito romano, ou seja, do exercício de um direito[13], sem utilidade própria, com a intenção de prejudicar outrem. Cuja aplicação ampliada atingiu as relações de vizinhança.
San Tiago Dantas[14] demonstrou que o abuso de direito encontra origens no direito romano principalmente no conceito de aequitas e no ius honorarium. Porém, Dantas esclareceu que foi no direito medieval que o instituto encontrou sua principal origem com o surgimento do ato emulativo, decorrente de inúmeros conflitos que marcaram aquele período da história.
Foi na vida medieval que era o ambiente de emulação por excelência. Onde as brigas de vizinhos, de barões, de corporações quando diante a atrofia do Estado, a emulação ocorria, ou seja, o exercício de um direito com o fim de prejudicar outrem.
A teoria do abuso de direito em sua vigente forma conforme apontou Josserand, veio da tessitura jurisprudencial na França[15] na segunda metade do século XIX.
O abuso de direito previsto no Código Civil de 2002 seguiu um modelo aberto, pois relacionado aos três conceitos legais indeterminados que correspondem a três cláusulas gerais que devem ser preenchidas pelo aplicador do direito caso a caso.
Tais conceitos são: a função social[16] e econômica do instituto correspectivo, a boa-fé objetiva e os bons costumes. Ocorrendo um exercício irregular do direito com desrespeito aos três parâmetros citados, configura-se o abuso de direito ou ato emulativo civil.
Há uma estreita relação entre o abuso de direito e o princípio da socialidade, e culminando por imantar a responsabilidade social, conforme consta no art. 5º[17] da LICC atualmente chamada de Lei de Introdução às normas do Direito brasileiro, conforme a Lei 12.376, de 2010 disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del4657.htm.
Também interage com o princípio da eticidade vez que o desrespeito a boa-fé objetiva configura o ilícito na relação negocial. É particularmente precisa a definição de abuso de direito dada por Rubens Limongi França, no sentido de que o abuso de direito constitui uma categoria de conteúdo próprio, entre o ato lícito e o ato ilícito, ou seja, o abuso de direito é lícito por seu conteúdo e ilícito por suas consequências.
A ilicitude do ato, no abuso de direito, está na forma de sua execução. E gera responsabilidade civil objetiva do abusador independente do elemento culpa. Nesse sentido, o Enunciado 37 do CJF[18].
E tal conclusão não é diferente no âmbito consumerista, eis que o CDC adota um modelo aberto e objetivado. Há abuso de direito na seara consumerista na publicidade abusiva, consagrada no art. 37, segundo parágrafo da Lei 8.078/1990.
O art. 39 do CDC tipifica rol exemplificativo, ou seja, aberto de situações consideradas como ensejadoras do abuso de direito consumerista. Deve-se enfim, entender que constitui prática abusiva qualquer conduta ou ato em contradição com o próprio espírito da lei consumerista.
A prática destoa dos padrões mercadológicos, dos usos e costumes e da razoável e boa conduta perante o consumidor. Servem de parâmetro o fim social e econômico, a boa-fé objetiva e os bons costumes, em diálogo das fontes.
Deve-se compreender o art. 39 do CDC juntamente com o art. 51 do mesmo diploma legal. Através do art. 37 do CDC que o legislador proibiu de forma expressa e exemplificativa as condutas abusivas e expôs, mais adiante, os arts. 67 e 68 sobre as infrações penais relativas ao art. 37.
A publicidade enganosa é a capaz de induzir o consumidor ao erro. Pode ser comissiva quando, por exemplo, quando afirma algo que na verdade, e não corresponde à verdade. Por exemplo, quando o veículo é o mais econômico de categoria quando exista outro mais econômico.
Poderá ser omissiva quando deixa de informar algo fundamental do produto e serviço. Por informação[19] essencial entende-se que é aquela capaz de influir no consumidor no ato da compra.
Rizzato Nunes nos traz elucidativo exemplo: não é omissão deixar de informar que o automóvel tem direção; que os pneus são de borracha da cor negra e que para pará-lo, é preciso pisar no breque, pois são dados que apesar de inerentes ao produto e essenciais para sua utilização, são por demais conhecidos pelo mercado e pelo consumidor fazendo parte de sua experiência regular, não afetando a publicidade só porque não foram apresentados.
Mas, não informar que um apartamento vendido com preço diferenciado bem abaixo do mercado, em região nobre e novo pois não tem vaga de garagem. Pois o pressuposto é que os apartamentos novos tinham vaga de garagem. Então essa informação deve ser veiculado.
Recentemente, foram propostas ações civis públicas contra os fabricantes de televisores de plasma, tendo como fundamento suposta veiculação de publicidade enganosa por omissão no tocante à qualidade da imagem das TVs.
Não teria sido divulgada a informação de que a referida imagem é prejudicada quando o sinal é analógico. E, em se tratando de sinal de TV por assinatura, há a formação de tarjas negras grandes nas letras da tela manchando o plasma e causando o efeito burn-in[20], caso permaneça por período contínuo na tela (aproximadamente duas horas) o mesmo acontecendo com a logomarca do canal que permanece estática na tela.
Buscou-se a condenação dos fabricantes à adequação das publicidades das TVs de plasmas, a receber de volta todos os aparelhos e, ainda, à restituição imediata dos valores pagos.
Todos aqueles que tiveram algum proveito com a publicidade enganosa respondem, solidariamente, perante o consumidor. Basta a mera potencialidade de dano para caracterizar a publicidade enganosa.
Outra modalidade de publicidade enganosa é a chamada “publicidade chamariz” que consiste em atrair o consumidor de maneira enganosa a adquirir algum produto ou serviço. Acontece, por exemplo, quando um fornecedor anuncia determinado produto a preço altamente competitivo, mas no momento em que o consumidor vai à loja adquiri-lo é informado que havia esgotado o estoque.
Desta forma, outros produtos similares são oferecidos, mas com preços não tão competitivos. Ou quando o fornecedor anuncia uma liquidação e no momento em que consumidor vai ao estabelecimento, percebe que a liquidação se refere somente a uma estante ou algumas peças da coleção passada, passando, então, o vendedor oferece outros artigos e produtos fora da liquidação.
A publicidade abusiva fere a vulnerabilidade do consumidor, podendo ser até mesmo verdadeira, mas que, pelos seus elementos ou circunstâncias, ofendem os valores básicos de toda a sociedade. É muito comum verificarmos publicidade enganosa envolvendo crianças[21]. Como exemplo, temos a famosa Xuper Star que posteriormente fora tirada do ar, em que aparecia um garoto destruindo um tênis para ensinar às crianças como ganhar um novo tênis novo, daquela marca que estava sendo veiculada.
Nesse caso, a sugestão pela destruição do tênis ora dada por uma famosa apresentadora de programa infantil. Outra propaganda que foi considerada abusiva veiculada uma criança com uma tesourinha na mão dizendo: “ei tenho, você não tem”.
O anunciante é objetivamente responsável pelos danos que seu anúncio vier a causar, sendo irrelevante averiguar a intenção (má-fé ou boa-fé). Em contrapartida, a agência de publicidade só será responsável quando tiver agido com culpa ou dolo.
O CDC, no art. 60, de forma a desfazer o malefício da publicidade enganosa ou abusiva e para melhor proteger os direitos consumidores, estipulou a imposição de contrapropaganda que será divulgada pelo responsável da mesma forma, frequência e dimensão e, preferencialmente, no mesmo veículo, local, espaço e horário.
A contrapropaganda visa tanto reparar a verdade da publicidade enganosa como também desqualificar a mensagem abusiva, reparando, ao final, o direito à informação do consumidor que foi violado.
Por fim, cumpre destacar o princípio da lealdade publicitária que está inserido no art. 4º, VI do CDC como princípio próprio da política nacional das relações de consumo.
Os róis do art. 39 e 51 do CDC são meramente exemplificativos ou numerus apertus, que aponta uma lista de situações que tipificam o abuso de direito consumerista. Relevante valor tem a norma esculpida no art. 42, parágrafo único do mesmo diploma legal que tem grande repercussão nas práticas na ótica consumerista.
O texto legal estipula que sendo o consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
Uma leitura desatenta e apressada da norma pode conduzir a uma confusão de que a mera cobrança indevida já seja motivo para o pagamento em dobro do que esteja sendo cobrado. Todavia, como se nota, o dispositivo refere-se a repetição, o que, naturalmente exige o pagamento indevido.
Expõe a boa doutrina, portanto que é necessário o preenchimento de dois requisitos para subsunção da norma: a) cobrança indevida; b) pagamento pelo consumidor do valor indevidamente cobrado. A referida cobrança tanto pode ser judicial como extrajudicial.
A repetição em dobro representa punição contra o fornecedor ou prestador, independente da prova e prejuízo para a sua aplicação. Por sua natureza, não se afasta o direito de o consumidor vir a pleitear outros prejuízos trazidos pelo pagamento do indevido, caso de danos materiais e morais, premissa retirada do princípio como reparação integral dos danos e morais, premissa retira do princípio da reparação integral dos danos (art.6º, V do CDC).
A exemplificação da aplicação do art. 42 do CDC envolve a cobrança e pagamento indevida de tarifa de água e esgoto, quando os serviços não seja efetivamente prestado. A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, sendo inexistente a rede de esgoto sanitário, fica caracterizada a cobrança abusiva, sendo devida a repetição de indébito em dobro ao consumidor.
Afasta-se o direito à repetição do indébito em dobro se houver erro escusável, ou seja, justificável por parte do fornecedor ou prestador que faz a cobrança e recebe o pagamento. A expressão gera em grande parte o debate jurisprudencial a respeito dos limites de incidência da norma.
A polêmica centra-se sobre a necessidade de prova ou não da má-fé ou da culpa por parte do credor que faz a cobrança. O entendimento prevalente no STJ é que tal elemento seja necessário. Mas tal exigência pode se transformar numa prova diabólica[22] o que afasta do modelo aplicado em geral pelo CDC, que é a responsabilidade objetiva, calcada apenas no nexo de causalidade, e não no modelo subjetivo de responsabilidade.
Cláudia Lima Marques afirma que “No sistema do CDC todo engano na cobrança de consumo, é em princípio injustificável, mesmo o baseado em cláusulas abusivas inseridas no contrato de adesão, ex vi o disposto no parágrafo único do CDC. Cabe ao fornecedor a prova que se engano na cobrança no caso concreto, foi justificado”.
Mesmo nas relações civis puras, a exigência de que o erro seja justificável ou escusável está fora de ordem da contemporaneidade. A propósito, é nesse sentido que elucida o Enunciado 12 do CJF[23] que prescreve que na sistemática do art. 138, é irrelevante ser ou não escusável ou não, porque o dispositivo adota o princípio da confiança.
Lembre-se que o art. 138 do CC trata do erro como vício do negócio jurídico, estabelecendo que “são anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio”.
Por fim, é necessário confrontar o art. 42, parágrafo único, do CDC, com o disposto nos arts 939, 940 e 941 do C.C. de 2002, na linha dialogal e interdisciplinar.
Flávio Tartuce doutrinador renomado e consagrado entende que os arts. 939 e 940 possuem incidência para as relações de consumo quando o consumidor é demandado judicialmente sem justo motivo. Já, com relação o parágrafo único do art. 42 do CDC trata apenas da cobrança extrajudicial e posterior ao pagamento do indébito. A diferença é que a responsabilidade demandante deve ser tida como objetiva, como, aliás, o deve ser pelo C.C.
Em verdade, busca-se mais uma complementaridade entre os dois preceitos legislativos. E, assim, os arts. 939 e 940 do CC incidem nas relações de consumo, porém gerando a responsabilidade objetiva do abusador (ou seja, inerentemente de culpa, especialmente quando rompida a boa-fé objetiva).
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.