Resumo: O texto aborda o conceito de legalidade mormente no âmbito do processo administrativo punitivo. Defende-se a legalidade da previsão de infrações em atos infralegais desde que embasados em lei.
A legalidade é princípio constitucional basilar aplicável à administração pública, previsto expressamente nos artigos 5º, inciso II, e 37 da Carta Magna. Nos dizeres da doutrina:
“O princípio da legalidade, no Brasil, significa que a Administração nada pode fazer senão o que a lei determina. Ao contrário dos particulares, os quais podem fazer tudo o que a lei não proíbe, a Administração só pode fazer o que a lei antecipadamente autorize. Donde, administrar é prover aos interesses públicos assim caracterizados em lei, fazendo-o na conformidade dos meios e formas nela estabelecidos ou particularizados segundo suas disposições.” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 19ª ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 93)
Quanto à “lei” a que se refere o princípio, transcreva-se ensinamento de Marçal Justen Filho:
“O vocábulo lei é utilizado constitucionalmente para indicar diversas espécies de atos estatais, tal como se vê no elenco contido no art. 59 da CF/88. Rigorosamente, a expressão lei indica um gênero que abrange a Constituição (e suas emendas), as leis complementares, as leis ordinárias, as leis delegadas, as medidas provisórias, os decretos legislativos e, mesmo, as resoluções. (…) Mais precisamente, o princípio da legalidade significa a necessidade de uma manifestação de vontade dos órgãos constituídos pela Constituição, representativos da soberania popular.” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 6ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 192)
Como visto, tal princípio é norteador de todos os atos administrativos, sobretudo em se tratando de processo administrativo punitivo. Nesse diapasão, vários órgãos da Administração trazem o detalhamento de sanções (como especificação de gradação e valores) em atos normativos internos, o que gera questionamentos por parte dos administrados quanto a suposta afronta ao princípio da legalidade.
Ora, defende-se aqui que tais atos normativos não ferem o princípio da legalidade, desde que sirvam para detalhar sanções já previstas em lei. Nesse sentido, cite-se por exemplo a Lei n.º 7.565, de 19 de dezembro de 1996 (Código Brasileiro da Aeronáutica) e a Resolução ANAC n.º 25, de 25 de abril de 2008; a Lei n.º 9.847, de 26 de outubro de 1999 (que dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas ao abastecimento nacional de combustíveis), e a Resolução ANP n.º 15, de 18 de maio de 2005, ou a Portaria PDNC n.º 26, de 13 de novembro de 1992.
Ora, por próprio dever de ofício inerente ao poder de polícia conferido à Administração Pública, verificada a ocorrência do ilícito administrativo, a autuação do responsável é medida que se impõe. Ora, tais atos normativos internos não estabelecem por si próprios as penalidades, servindo para pautar a conduta da Administração Pública, coibindo arbitrariedades na aplicação da lei. Caracterizam-se como diplomas de caráter técnico destinados a integrar e detalhar normas genéricas de hierarquia superior, a exemplo dos decretos ou leis em sentido estrito, que são instrumentos adequados para impor condutas e determinar penas para os que faltarem aos seus preceitos.
Outro não é o entendimento do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, como transcrito abaixo:
“ADMINISTRATIVO – SANÇÃO PECUNIÁRIA – LEI 4.595/64. 1. Somente a lei pode estabelecer conduta típica ensejadora de sanção. 2. Admite-se que o tipo infracionário esteja em diplomas infralegais (portarias, resoluções, circulares etc), mas se impõe que a lei faça a indicação. 3. Recurso especial improvido.” (STJ, REsp 324181, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 08/04/2003)
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO ANULATÓRIA DE AUTO DE INFRAÇÃO. AFERIÇÃO EM BOMBAS DE COMBUSTÍVEIS. VIOLAÇÃO DO ART. 535
DO CPC. NÃO-OCORRÊNCIA. ART. 8º DA LEI 9.933/99. PENALIDADES. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO ISOLADA OU CUMULATIVA. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE ESTRITA. PLENA OBSERVÂNCIA.(…) 4. Os atos da Administração Pública devem sempre pautar-se por determinados princípios, entre os quais está o da legalidade. Por esse princípio, todo e qualquer ato dos agentes administrativos deve estar em total conformidade com a lei e dentro dos limites por ela traçados. 5. A aplicação de sanções administrativas, decorrente do exercício do poder de polícia, somente se torna legítima quando o ato praticado pelo administrado estiver previamente definido pela lei como infração administrativa. 6. "Somente a lei pode estabelecer conduta típica ensejadora de sanção. Admite-se que o tipo infracionário esteja em diplomas infralegais (portarias, resoluções, circulares etc), mas se impõe que a lei faça a indicação" (REsp 324.181/RS, 2ª Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, DJ de 12.5.2003). 7. Hipótese em que a autoridade administrativa, na fixação do valor da multa, observou os limites definidos no art. 9º da Lei 9.933/99. Não cabe ao Poder Judiciário adentrar o mérito do ato administrativo. 8. "Nos atos discricionários, desde que a lei confira à administração pública a escolha e valoração dos motivos e objeto, não cabe ao Judiciário rever os critérios adotados pelo administrador em procedimentos que lhe são privativos, cabendo-lhe apenas dizer se aquele agiu com observância da lei, dentro da sua competência" (RMS 13.487/SC, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJ de 17.9.2007). 9. Recurso especial desprovido. (STJ, REsp 1127103, 1ª Turma, Rel. Min. Luiz Fux, j. 23/11/2010)
Portanto, caracterizada é descabida a alegação de ilegalidade na aplicação de penalidades por parte da administração, quando o ato infralegal embasar-se em lei; ao contrário, a atuação regulamentar exercida dentro dos limites para os quais foi especificamente criada, reforça o princípio da legalidade administrativa, não pode ser confundido com o da reserva legal, como ocorre no âmbito tributário e penal.
Informações Sobre o Autor
Marco Aurélio Mellucci e Figueiredo
Procurador Federal. Graduado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – Universidade de São Paulo USP. Mestre em Direito Público pela Universidad Complutense de Madrid