Consoante as doutrinas de Ronald Dworkin e Robert Alexy, as normas jurídicas dividem-se em duas categorias básicas, a saber: princípios (normas-princípio) e regras (normas-regras).
As regras, conforme amplamente ensinado, possuem alto grau de concretude, isto é, prestam-se a regular situações concretas, determinando condutas e cominando sanções. Seu modo de aplicação obedece à máxima do tudo ou nada, significando que, ou uma regra é aplicada ou não o é. Havendo conflito entre duas regras, uma delas afastará totalmente a incidência da outra, e assim regulará determinada situação. Em síntese, uma regra excluirá a outra, por somente uma delas poder ser validamente aplicada ao caso concreto.
Os princípios, por sua vez são normas dotadas de alto grau de abstração e alta carga valorativa, regendo todo o sistema jurídico. A dinâmica de aplicação dos princípios é diferente da observada nas regras, pois havendo conflito entre princípios, um não excluirá o outro; apenas afastará sua incidência a fim de regular determinado caso concreto. Isso importa em dizer que um princípio apenas preponderará sobre o outro, sem, contudo, anulá-lo.
O Código de Defesa do Consumidor, rompendo as tradicionais codificações em que preponderava o uso do sistema de regras, isto é, aquele sistema em que o legislador tentava prever todas as situações possíveis de ocorrer em uma sociedade, regulando-as em regras específicas, adotou um sistema de cláusulas abertas, em que preponderam os princípios. Daí se dizer que o CDC é uma lei principiológica.
Vejamos a partir desse momento quais são os princípios que informam a proteção e defesa do consumidor.
1. Princípio da precaução
Esse princípio encontra-se implícito no Código de Defesa do Consumidor, e tem por objetivo resguardar o consumidor de riscos desconhecidos relativos a produtos e serviços colocados no mercado de consumo. Não deve ser confundido com a prevenção, que é forma de resguardo de riscos conhecidos. Um bom exemplo da aplicação do princípio da prevenção pode ser notado na regulação do fornecimento de alimentos transgênicos, uma vez que a ciência ainda desconhece todos os efeitos dos gêneros alimentícios geneticamente modificados sobre a saúde humana.
2. Princípio da dimensão coletiva
Esse princípio prestigia a proteção da coletividade, mesmo que em detrimento de outrem, significando que o interesse coletivo deve prevalecer sobre o interesse individual. A dimensão coletiva das questões envolvendo direitos do consumidor pode ser facilmente percebida pelo sistema de defesa coletiva do consumidor, através de regras específicas estampadas no Título III do CDC, considerado verdadeiro “Código” das ações coletivas. O princípio em comento é também o norteador do art. 4º do CDC e das figuras nele arroladas.
3. Princípio da boa-fé
Significa que, nas relações de consumo, as partes devem proceder com probidade, lealdade, solidariedade e cooperação na consecução do objeto do negócio jurídico, de forma a manter a equidade nesse tipo de relação. Tal princípio encontra-se explícito no art. 4º, III, do CDC, in verbis:
Art. 4º – A Política Nacional de Relações de Consumo tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, a respeito a sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de sua qualidade de vida, bem como a transferência e harmonia das relações de consumo, atendidos os seguintes princípios:
III – harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilização da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica (art. 170 da Constituição Federal), sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores (grifei).
3.1. Boa-fé objetiva
Da simples leitura do dispositivo legal transcrito, nota-se que a preocupação primária do legislador foi a de harmonizar os interesses de consumidores e fornecedores, porquanto a harmonia e o equilíbrio são fatores indispensáveis para que haja a tão esperada justiça.
Não há como negar que o Código Brasileiro de Defesa do Consumidor mostra-se altamente protecionista, se comparado a outros diplomas legislativos, como, por exemplo, a legislação francesa, a qual, como dito, naquele país possui a denominação de Código do Consumo (Code de la Consommation), pois tutela não somente os interesses dos consumidores, mas também os interesses dos fornecedores. Ou seja, na França não se tutelam sujeitos específicos (consumidor e fornecedor), mas sim o consumo (atividade).
Da mesma forma, pode se notar que o legislador brasileiro não se preocupou tão somente com os interesses dos consumidores, mas sim de todos os fatores que propiciam o desenvolvimento do mercado de consumo. Tal conclusão é, no mínimo, lógica, uma vez que, para que haja desenvolvimento econômico e tecnológico, é preciso que haja quem consuma, ou seja, quem diga se os produtos e serviços colocados no mercado estão atendendo à demanda de forma satisfatória. A crítica do consumidor aos produtos e serviços acaba por obrigar as empresas a investirem em novas técnicas de produção, técnicas de marketing, merchandising etc.
Todavia, a estática da lei codificada nem sempre permite que a justiça seja sentida. E é essa mentalidade que o Código de Defesa do Consumidor procurou incorporar, pois a experiência pós-Revolução Industrial mostra que as transformações sociais se tornaram tão grandes e sequenciais que o Estado, em seu labor jurídico, acaba por quedar-se diante das mesmas, pois as demais ciências, que não a jurídica, pelo menos em sua devastadora maioria são despidas das formalidades que envolvem a ciência jurídica.
Por isso é que a boa-fé objetiva veio, na lei consumerista brasileira, como cláusula geral, regra padrão de conduta, um princípio ao qual se pode socorrer na falta da lei, porquanto é ele maior que a norma, é um princípio, um mandamento nuclear, cujo respectivo desrespeito colocará todo um sistema em xeque, posto que lhe é o norteador.
É no campo dos contratos que se torna ainda mais evidente a aplicação desse princípio, pois a cláusula geral de boa-fé foi adotada implicitamente pelo Código do Consumidor, devendo reputar-se inserida e existente em todas as relações jurídicas de consumo, mesmo que não inserida de forma expressa nos contratos de consumo. Nesse sentido, vale aqui citar o art. 51, inciso IV do diploma legal acima referido, que diz in verbis:
“Art. 51 – São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que:
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam imcompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade.”
Segundo os autores do anteprojeto do código, a verificação da presença de boa-fé na conclusão do negócio jurídico cabe ao magistrado, no intuito de constatar se determinada cláusula contratual é ou não válida perante o dispositivo supra transcrito.
No que se refere à eqüidade, esta constitui regra de julgamento apenas nos casos prescritos em lei, consoante prescrição do art. 127 do Código de Processo Civil. Sendo assim, nesses casos o juiz não julgará com base na eqüidade, mas tão somente observará o que está de acordo com a eqüidade e a boa-fé.
Traço interessante encontrado no Código de Defesa do Consumidor brasileiro, intimamente ligado ao princípio aqui estudado, diz respeito ao direito à informação previsto no artigo 6º, III do diploma legal acima citado. Nesse sentido, ensina Tereza Negreiros que “o mais típico dever acessório derivado do princípio da boa-fé é o dever de informar”. Na verdade isso se verifica porque em uma relação de consumo não só a obrigação principal é objeto de tutela, mas sim o interesse global, ou seja, ao adquirir um produto ou serviço o consumidor tem o direito de acesso a todas as informações acerca do que está adquirindo.
4. Princípio da proteção
Implícito no art. 6º do CDC, o princípio da proteção consagra a proteção básica aos bens jurídicos mais relevantes, a saber:
4.1. Incolumidade física (inciso I)
Refere-se ao direito à vida, à saúde e segurança do consumidor em relação aos riscos oferecidos por produtos e serviços considerados perigosos ou nocivos;
4.2. Incolumidade psíquica (inciso II)
Diz respeito à liberdade de escolha e igualdade nas contratações;
4.3. Incolumidade econômica (incisos III e IV)
Relaciona-se aos riscos de lesão econômica afetos a preço, características dos produtos e serviços, práticas abusivas etc.
5. Princípio da confiança
Enfatiza a legítima expectativa dos consumidores, pois ninguém contrata acreditando que será lesado, ou seja, o consumidor contrata acreditando que o negócio será bem sucedido, e que o parceiro contratual agirá com lealdade no decorrer da execução do contrato. Deve ser amplamente observado nos contratos de consumo.
6. Princípio da transparência
O princípio da transparência deve ser observado no momento da formação do vínculo contratual, de forma a informar o consumidor sobre os riscos do negócio, para que o consumidor aja conscientemente.
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Vitor Vilela Guglinski