Procedimentos de jurisdição voluntária como atividade notarial

Resumo: Este trabalho possui a forma de artigo científico para abordar “o procedimento de jurisdição voluntária como atividade notarial”, com o intuito de demonstrar a importância dos Cartórios Extrajudiciais na desburocratização e desjudicialização das relações privadas, vale dizer, na inclusão de atribuições de jurisdição voluntária, não contenciosa, antes exclusivas do Poder Judiciário, aos titulares dos Cartórios Extrajudiciais, como alternativa de contribuição para com o desafogamento das atividades judiciais, ao mesmo tempo em que não deixa de garantir a realização dos direitos, ao contrário, permite uma prestação do direito com mais justiça. No desenvolvimento do tema, o conteúdo é apresentado em três capítulos: o primeiro define jurisdição, jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária, o segundo trata da atividade notarial e o terceiro analisa a importância dos Cartórios Extrajudiciais no desafogamento do Poder Judiciário. Para tanto, utiliza-se, como técnica, a pesquisa bibliográfica e documental, abrangendo doutrina, legislação e jurisprudências apresentadas como exemplos ilustrativos. A essência do trabalho é esclarecer a importância do Notário na realidade jurídica brasileira, especificamente no processo de desjudicialização das relações privadas, visando o desafogamento do Poder Judiciário.

Palavras-chave: Poder Judiciário. Jurisdição Voluntária. Atividade Notarial. Cartórios. Desjudicialização.

Abstract: This work has the form of a scientific paper to address "the procedure of voluntary jurisdiction the notarial activity", in order to demonstrate the importance of Judicial Offices in bureaucracy and desjudicialização private relations, that is to say, the inclusion of voluntary jurisdiction assignments, not litigation, before the judiciary, exclusive to holders of Judicial Offices, as an alternative to contribution to the legal activities debottlenecking at the same time in which ensure the realization of rights , on the contrary,

Keywords: judiciary. Voluntary Jurisdiction. Notarial Activity. Registries. Desjudicialização.

Sumário: Introdução. 1. Poder judiciário e sua função jurisdicional. 2. Jurisdição contenciosa e jurisdição voluntária. 3. A atividade notarial e de registro. 4. A importância dos cartórios no desafogamento do poder judiciário. 4.1. Hipóteses existentes. 4.2 Desjudicialização pelos cartórios e sua eficácia. 5. Considerações finais. Referência.

Introdução

Este estudo trata da transferência dos procedimentos de jurisdição voluntária para a atividade notarial, tendo como justificativa a celeridade, a desburocratização, a diminuição dos custos, a garantia da segurança jurídica e o desafogamento do Poder Judiciário.

A pretensão é apresentar a ideia da jurisdição voluntária como procedimento autônomo, atividade independente do Poder Judiciário, que pode ser realizada pelos Cartórios Extrajudiciais. O principal entrave, contudo, é menos jurídico e mais cultural, na medida em que ainda persiste, no ideário comum, o entendimento secular de que apenas o Poder Judiciário consegue produzir justiça. As pessoas permanecem arredias às novidades nesse sentido. Porém, a prática responsável, com a prestação de bons serviços, é possível conquistar o cidadão a optar por realizar seus direitos disponíveis ou que não envolvam litígios por meio dos notários e registradores.

Para nortear a pesquisa levanta-se o seguinte questionamento: é possível transferir aos Cartórios Extrajudiciais os procedimentos de jurisdição voluntária que são de competência exclusiva do Poder Judiciário?

Como hipótese testável defende-se que é possível tirar da competência exclusiva dos juízes togados alguns procedimentos, principalmente quando tratarem de assuntos consensuais, destacando a importância dos Cartórios Extrajudiciais em substituição ao Poder Judiciário devido à eficiência funcional e estrutural da atividade notarial e de registro e à atuação jurídica imparcial, no processo de desjudicialização de relações sociais, demonstrando sua viabilidade, tendo como pano de fundo o atual movimento da desjudicialização dos procedimentos de jurisdição voluntária ou graciosa.

Quanto à metodologia, trata-se de uma pesquisa bibliográfica e documental, englobando doutrina, legislação e algumas decisões dos tribunais apresentadas como exemplos para ilustrar a interpretação jurisprudencial, quando necessário.

Visando atender ao proposto, o desenvolvimento do conteúdo, norteado pelo método dedutivo de abordagem qualitativa, está distribuído em três partes: a primeira trata de definir jurisdição e distinguir a jurisdição contenciosa da jurisdição voluntária; a segunda parte versa sobre a atividade notarial, trazendo definições e natureza jurídica; e a terceira analisa os procedimentos de jurisdição voluntária como atividade notarial já existentes para, em seguida, destacar a importância da ampliação dessa prática para que os Cartórios Extrajudiciais realizem a maior parte possível dos procedimentos consensuais e, com isso, contribua com o desafogamento do Poder Judiciário, sem se descuidar da realização da justiça com segurança jurídica.

1. Poder judiciário e sua função jurisdicional

O vocábulo “jurisdição” vem de jurisdictio que, em tradução livre, significa “dizer o direito”. É função do Estado que dela tem o monopólio. A jurisdição ou o chamado “poder jurisdicional”, é uma das expressões básicas da soberania nacional, cujo ápice se traduz pelo Poder Constituinte Originário. Trata-se do “poder, atividade ou função do Estado de declarar o direito aplicável ao eventual conflito de interesses”[1]. O Estado desempenha essa função jurisdicional por meio do processo, vez que a ação opera apenas com o intuito de provocação da jurisdição. “O escopo jurídico da jurisdição é a atuação das normas de direito substancial”[2].

Dirimir conflitos por meio do processo judicial, com todas as garantias próprias da atividade processual, é o núcleo essencial do poder jurisdicional. Contudo, outorgar tutela judicial fora do processo, com respeito às fundamentais garantias do procedimento em assuntos relacionados aos incapacitados, desvalidos, ausentes, interesses gerais, públicos ou sociais, restrição de direitos fundamentais ou em conflitos não especialmente relevantes, mediante a aplicação do direito objetivo, entre outros, forma parte do conteúdo de faculdades atribuídas ao Poder Judiciário, interpretado em sentido amplo.

De fato, existem funções próprias do poder jurisdicional, e outras que em garantia de direitos, parece razoável sejam atribuídas ou mantidas na órbita da competência jurisdicional. Porém, também existem atribuições que podem ser transferidas a instituições fora do Poder Judiciário, como no caso os Cartórios Extrajudiciais.

A nova regulamentação processual dos últimos tempos vem sendo estimulada principalmente pela Lei de Reforma do Poder Judiciário (Lei de Reforma do Poder Judiciário) e reafirmada pelo Novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015) publicado em 17 de março de 2015 e que entra e vigor “após decorrido um ano da data de sua publicação oficial” (artigo 1.045).

Devido a isso, passa a  Justiça a ser redesenhada por princípios como a economia processual, a concentração, a imediaticidade, a oralidade e o papel ativo do juiz, tem provocado uma aproximação à concepção de maior agilidade, brevidade e menor formalismo, caracterizadora do procedimento de jurisdição voluntária, o qual, por sua vez, sai reforçado no novo movimento da desjudicialização, pela exigência de maior cumprimento das garantias processuais próprias do contencioso, especialmente no que se refere aos princípios de audiência às partes interessadas e sua participação ativa no comparecimento, na formulação de alegações, na prática de diligências e em atividade probatória, assim como a disposição legal de que nem toda oposição torna contencioso o procedimento, mas apenas aquela que é considerada razoável pelo órgão jurisdicional, esteja prevista com este efeito no procedimento específico, sem prejuízo da faculdade por parte de quem manifesta interesse contrário para promover o juízo declarativo que corresponda.

Para compreender essa mudança de entendimento que autoriza a transferência de alguns procedimentos do Poder Judiciário para organismos autônomos como os Cartórios Extrajudiciais, é preciso diferenciar jurisdição contenciosa da jurisdição voluntária, destacando, de antemão, que tal diferenciação, mais que de matéria, alude à forma de proceder: na jurisdição contenciosa a causa é mais controversa, com identificação das partes; e na jurisdição voluntária não existem contraditório, não se reconhece a existência de partes e sim de meros interessados.

2. Jurisdição contenciosa e voluntária

O processo de desjudicialização gira no entorno da prestação jurisdicional não contenciosa. De acordo com Reis Friede[3], o Código de Processo Civil em vigor (de 1973) admite expressamente a existência dual de jurisdição: a jurisdição contenciosa em contraposição à jurisdição voluntária, muito embora “do ponto de vista científico do direito existir apenas uma única forma de jurisdição: a pleonástica jurisdição contenciosa, ou simplesmente jurisdição”.

Também para Humberto Theodoro Júnior[4], “há duas modalidades de procedimentos especiais: os de jurisdição contenciosa e os de jurisdição voluntária”. Explica que “os procedimentos de jurisdição contenciosa se referem à solução de litígios e os últimos apenas à administração judicial de interesses privados não litigiosos”.

A jurisdição contenciosa ou simplesmente “jurisdição”, ocorre quando a ação é posta perante o órgão do Estado, a fim de que, observado o procedimento que a regula seja instruída e regulada. Caracteriza-se pelos seguintes elementos: finalidade de realizar o direito; inércia, ou seja, o juiz em regra deve aguardar a provocação da parte; presença de lide, isto é, a presença de conflito de interesse; produção de coisa julgada, que significa a definitividade da solução dada. Concretiza-se através de diversas modalidades que nada mais são do que a classificação das ações.

Nos processos de jurisdição voluntária, também chamada de “graciosa” não existe lide e, em vez de partes, são tidos como interessados.

A jurisdição voluntária ocorre quando as pessoas envolvidas em uma relação que desejam modificar ou disciplinar, promovem acordo a respeito, submetendo-o ao Estado para que seja homologado. Sua interferência dá-se nos casos onde as partes tem o arbítrio de consenso, mas que o Estado se reserva o direito de exigir que só produza efeito jurídico depois de sua aprovação mediante sentença homologatória, e que envolvem problemas de ordem pública.

Como o Estado vem encontrando dificuldades para cumprir sua função jurisdicional e entregar aos jurisdicionados uma tutela jurídica de qualidade, passou-se a pensar em diversas formas de desafogamento do Poder Judiciário, e uma delas vem sendo a transferência de procedimentos de jurisdição voluntária às Serventias Extrajudiciais.

Esse processo da desjudicialização significa desonerar o Poder Judiciário de algumas atividades que se afastam de suas funções principais, como a jurisdição voluntária ou jurisdição administrativa, que são, essencialmente, as ações que não solucionam conflitos de interesses por não existir litígio entre as partes. Normalmente os interessados querem apenas que seja declarado certo direito[5].

3. Atividade notarial e de registro

Os Notários e Registradores são oficiais públicos instituídos para receber os atos aos quais as partes devam ou queiram dar o caráter de autenticidade inerente aos atos da autoridade pública e dar-lhes data certa, conservá-los em depósito e expedir cópias dos mesmos. Desse modo, uma boa forma de estudar a definição de direito notarial e de registro e dos próprios notários e registradores seria estudando as definições legais, as quais por certo abundam na doutrina.

Na ordem jurídica brasileira contemporânea, “os serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa, destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”[6], sendo requisitos legais ao exercício da função: ter formação como bacharel em direito ou ter mais de dez anos de prestação de serviços cartorários, e ser aprovado em concurso público[7].

Em termos gerais, os Notários e Registradores são agentes delegados do Poder Público (composto pelo Poder Executivo, pelo Poder Legislativo e pelo Poder Judiciário) sendo que “é ao Poder Executivo que cabe a incumbência de delegar os serviços notariais e registrais”[8]. No Brasil atualmente existem as figuras do Notário (ou Tabelião) e do Registrador (Oficial de Registro), que “são profissionais do direito, dotados de fé pública, a quem é delegado o exercício da atividade notarial e de registro” (artigo 3º, da Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994).

O ramo do direito que rege esses serviços é denominado de “direito notarial e de registro”, compreendido como o conjunto de disposições legislativas e regulamentárias, doutrinas e decisões jurisprudenciais que regem a função notarial e de registro como instrumento público e o notário e o registrador como sujeitos dotados de fé pública que garantem a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia dos atos jurídicos.

Geralmente o Direito Notarial e de Registro é considerado como espécie de direito público, posto que o notário e o registrador exercem função pública por delegação do Estado. É um direito adjetivo ou formal (leis que definem a forma pela qual os diretos devem valer) porque é formalista, destinado a garantir os procedimentos solenes para observar o direito, mas que não subsiste sem a existência das normas de direito substantivo ou material (leis que disciplinam as relações sócio-jurídicas).

Portanto, o Direito Notarial e de Registro pode ser definido como o conjunto de normas que regulam tais atividades. É o conjunto de princípios e regras que disciplinam a função notarial e de registro, que se resume e sintetiza na produção de instrumentos públicos. É o conjunto de normas destinadas à regulamentação da forma instrumental e da estrutura e organização da atividade notarial, bem como da disciplina da função notarial e de registro.

Conforme o artigo 1º, da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, são considerados serviços notariais e de registros os “de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos”. Destarte, as funções das serventias extrajudiciais são: dar publicidade, autenticidade, segurança e eficácia aos documentos.

As atribuições das Serventias Extrajudiciais decorrem da necessidade de investir uma pessoa de fé pública, para que os atos praticados por ela ou com a sanção dela se revistam de tais características, que passem a ter aptidão plena para a produção de efeitos jurídicos, provando efetivamente a existência do direito a que se refiram[9].

O Notário faz a ligação entre a lei e a declaração do direito, a qual, sob o preceito de que os pactos são obrigatórios, cria a normatividade própria do contrato por instrumento público, determinando os fins visados pelos contratantes. Embora tradicionalmente vinculado a fórmulas redacionais, o que acentua seu aspecto formal, o serviço notarial provê de legalidade a vontade manifestada, permitindo que esta, conforme expressa, produza efeitos jurídicos[10].

Sobre a natureza jurídica da função notarial, não existe consenso se os notários são servidores públicos ou profissionais do direito que exercem atividade pública em caráter privado. O tema permanece tormentoso. De um lado existe o entendimento de que o Notário não exerce funções privadas, porém públicas, com destaque que a função não é exercida em seus próprios nomes, mas no do Estado através da delegação que lhes é conferida na forma da lei, o que os insere na categoria de servidores públicos. De outro está a também atual tese de que o Notário não exerce cargo público, embora seja um agente público[11].

Existem decisões do mesmo Supremo Tribunal Federal no sentido de que os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público:

“Ementa: serviços notariais e de registro: regime jurídico: exercício em caráter privado, por delegação do poder público: lei estadual que estende aos delegatários (tabeliães e registradores) o regime do quadro único de servidores do Poder Judiciário local: plausibilidade da arguição de sua inconstitucionalidade, por contrariedade ao artigo 236 e parágrafos e, no que diz com a aposentadoria, ao artigo 40 e parágrafos, da Constituição Federal de 1988: medida cautelar deferida”[12].

Apesar das discussões sobre a natureza jurídica da atividade notarial, a Constituição Federal de 1988 é clara quando diz que a natureza jurídica desses serviços é pública e que o seu exercício é privado. Nesse sentido Walter Ceneviva[13] afirma que “a atividade registrária, embora exercida em caráter privado, tem característicos típicos de serviço público”. Como consequência, os serventuários das atividades notariais e de registros são agentes públicos que atuam como colaboradores do Poder Público.

4. Importância dos cartórios no desafogamento do poder judiciário

A Justiça Brasileira está cada dia mais lenta. Os processos se acumulam, e as soluções tardam a chegar. Porém os conflitos tendem a aumentar com o aumento da população.

Diante de tais constatações, o Poder Legislativo tem feito algumas leis na tentativa de desafogar o Poder Judiciário. Podemos citar as leis que tratam da mediação e arbitragem(Lei nº9.307/96) e a Lei nº 11.441 de 4 de janeiro de 2007 que alterou o Código de Processo Civil e passou a permitir a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual foi um marco nessa luta.

Nessa busca de soluções de conflitos na esfera extrajudicial surge como grande colaborador os Cartórios. A Atividade Notarial dotada de fé pública tem instrumentos capazes e eficientes de atuar nos casos de Jurisdição Voluntária, onde não há em tese conflito de interesses, mas apenas necessidade de tutelar direitos. Não se fala em partes na Jurisdição Voluntária, mas de interessados.

4.1. Hipóteses existentes

No estágio atual do Direito, já se admite a possibilidade de desjudicialização de certos procedimentos voluntários, vale dizer, sua substituição por procedimentos administrativos. A desjudicialização funciona, destarte, como “mecanismo que faculta às partes comporem seus litígios fora da esfera de jurisdição estatal”.

Conforme César Augusto dos Santos[14], o termo “desjudicialização” sofre certa flexibilidade conforme o ramo do direito que faz parte. Por exemplo, no caso do direito penal, a desjudicialização é denominada de “despenalização” ou “descriminalização”, cujo exemplo mais elucidativo é a Lei nº 9.099 de 26 de setembro de 1995, que disciplina os casos de infrações e crimes de menor potencial ofensivo, nos quais a conduta delitiva é suprimida, em parte, da esfera penal.

Em se tratando de processo civil, tendo como fundamento a necessidade crescente de se conseguir dar mais agilidade e efetividade ao sistema jurídico processual, foi editada a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, conhecida como “Lei da Arbitragem” como medida legal de desjudicialização, e que, para tanto, além de outras providências determina que os contraentes podem consentir livremente na escolha de um árbitro para emitir sua decisão por meio de laudo, que terá, na prática, o mesmo valor e força que uma sentença judicial.

Alexandre Freitas Câmara[15], depois de informar que a arbitragem é um instrumento “paraestatal” de solução de conflitos, inserido na processualística brasileira em decorrência das conquistas contemporâneas do direito processual, que chama de “terceira onda renovatória”, a define como forma de “heterocomposição de conflitos”, ou seja, um meio de composição do litígio em que a desavença é solucionada por um terceiro estranho ao conflito.

Outro exemplo de desjudicialização é o artigo 890, do Código de Processo Civil de 1973, que disciplina a figura jurídica do depósito extrajudicial até a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015).

Também a Lei nº 11.429, de 26 de dezembro de 2006 trata dos depósitos judiciais de tributos, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, e permite que a parte possa realizar imediatamente o depósito dos valores que considerar devidos, sem antes ter que recorrer ao depósito judicial nas ações de consignação em pagamento (vide o já citado parágrafo 2º, do artigo 890, do Código de Processo Civil).

Pode-se citar, ainda, como exemplo de desjudicialização a Lei nº 11.101, de 09 de junho de 2005, intitulada “Lei de Recuperação de Empresas”, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. Trata-se de uma medida normativa que contribui significativamente com o processo de desjudicialização, eis que substituiu o instituto da concordata por um instrumento mais flexível que permite e viabiliza a recuperação da empresa devedora que se encontra em dificuldades, mas que apresente condições de superar a temporária situação de crise econômico-financeira, por meio de um processo de negociação direta entre os envolvidos, criando desse modo a recuperação extrajudicial de empresa, submetendo a matéria à apreciação do juiz apenas para a homologação do acordo.

Ainda pode-se citar como amostra da desnecessidade de intervenção judicial no campo dos registros imobiliários[16] a possibilidade de retificação no âmbito administrativo para os casos em que haja consenso entre as partes, desincumbindo o Poder Judiciário de diversas atividades nas quais não existe controvérsia para ser resolvida, trazida à Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973 (Lei dos Registros Públicos) que dispõe sobre os registros públicos, pela Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004.

Uma das principais inovações introduzidas pela Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004 à Lei dos Registros Públicos é a possibilidade de retificação de registros de imóveis apenas na esfera administrativa quanto existe consenso entre as partes. Desse modo o Estado-Juiz fica desincumbindo desse tipo de atividade, o que significa afastar do Poder Judiciário um grande número de ações onde não se verifica nenhuma controvérsia a ser resolvida.

Outro exemplo de desjudicialização é o que acontece no procedimento para habilitação de casamento. A Lei nº 10.931, de 02 de agosto de 2004, alterou a redação do artigo 1.526 do Código Civil de 2002, para afastar a exigência da prévia homologação do magistrado nas habilitações para o registro civil do casamento. Mantém-se a obrigatoriedade somente para impugnações.

Também a Lei nº 11.441, de 04 de janeiro de 2007 pode ser mencionada como concretização da tendência à desjudicialização, porque disciplina a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa, vale dizer, em cartório extrajudicial, sem a intervenção do Poder Judiciário.

A Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007 (Lei de Regularização Fundiária de Terras da União de Interesse Social) que disciplina a regularização fundiária para zonas especiais de interesse social e o registro de imóveis, altera o Decreto-lei nº 9.760, de 05 de setembro de 1946, que dispõe sobre os bens imóveis da União, para estabelecer novas diretrizes para regularização da propriedade imobiliária, cujo procedimento de regularização fundiária passa a ser de competência do Oficial de Registro de Imóveis. Se houver impugnação, o Registrador Imobiliário dará ciência à União, que tentará um acordo, e apenas se esse acordo não for possível é que a questão será remetida à Justiça Federal, que é o juízo competente para o caso[17].

Ainda a Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009 (com as modificações da Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011), que desjudicializa a usucapião urbana prevista no artigo 183, da Constituição Federal de 1988. Esta norma introduziu na ordem jurídica brasileira, uma nova forma de usucapir denominada de “usucapião administrativa”, “usucapião cartorária” ou “usucapião extrajudicial” porque é realizada fora da jurisdição do Poder Judiciário. Daí a denominação “extrajudicial” cujo conceito pretende ser ampliado para desjudicializar o procedimento de aquisição da propriedade por usucapião, independentemente de sua modalidade.

Mais recentemente, o novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015) que entrará em vigor em março de 2016, a usucapião extrajudicial, que até a Lei nº 11.977, de 07 de julho de 2009 se dava apenas no âmbito da regularização fundiária urbana e com procedimento complexo, foi ampliada para abarcar outras espécies de usucapião, além de ter recebido um procedimento mais simples e rápido[18].

Estas inovações, dentre outras nesse sentido trazidas à ordem jurídica brasileira, visam aliviar o Poder Judiciário por meio da delegação de algumas de suas funções meramente administrativas, desjudicializando procedimentos tipicamente administrativos[19].

4.2. Desjudicialização pelos cartórios e sua eficácia

Parece não haver divergências quanto à aspiração das Serventias Extrajudiciais em reivindicar os atos que carecem de litígio, na medida em que possuem estrutura montada e suficiente para os instrumentalizar comodamente em seu âmbito de ação, aliviando, desse modo, a tarefa dos Tribunais e solucionando problemas com contratos e outras relações jurídicas não contenciosas de maneira rápida e operativa.

De fato, problemas e situações envolvendo relações privadas, onde não existe controvérsia contribuem com a desjudicialização por meio da tutela dos direitos dos cidadãos pela segurança efetiva brindada pelos profissionais que laboram nas Serventias Extrajudiciais.

No direito os sistemas vão se esgotando, consequentemente, novas formas e modelos surgem constantemente na organização das relações sociais, e o conjunto de normas jurídicas também se transforma para acompanhar as novas exigências emanadas da sociedade, onde profundamente se produzem mudanças cuja internalização, o sistema jurídico se encarrega de canalizar através de instituições que interpretam o sentido coletivo.

Para tanto, defende-se cada vez mais investimentos nas Serventias Extrajudiciais para que esses serviços sejam prestados sempre com muita segurança[20].

A desjudicialização de procedimentos civis voluntários representa uma possibilidade real ao enfrentamento das dificuldades encontradas pelo Poder Judiciário, à prática da tutela jurisdicional. A transferência dessas atribuições aos Notários e Registradores, titulares oficiais das Serventias Extrajudiciais, é uma opção viável, saudável e segura para propiciar a devida e esperada efetivação dos direitos.

5. Considerações finais

Os Cartórios Extrajudiciais são instituições necessárias e imprescindíveis à realidade social contemporânea, já que sua função cumpre com os anseios das pessoas que pretendem autenticar determinados atos jurídicos ou fazer constar fatos jurídicos. Desta maneira o Notário, dotado com as atribuições que lhe confere o Estado, pode exercer sua função notarial em benefício das pessoas que o solicitarem para que possa atuar conforme a lei.

No desenho da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, o Notário funciona como a ligação entre a lei e a declaração do direito, a qual, sob o preceito de que os pactos são obrigatórios, cria a normatividade própria do contrato por instrumento público, determinando os fins visados pelos contratantes.

A função notarial colabora com a sociedade, auxiliando a população a adquirir e resguardar seus mais relevantes direitos, funcionando como importante instrumento de pacificação na resolução dos conflitos sociais, contribuindo sobremaneira à desobstrução do Poder Judiciário, em razão da sobrecarga de processos instaurados no intento de restabelecer a ordem jurídica.

Por isso, transferir as atribuições de cunho administrativo da esfera do Poder Judiciário para as serventias extrajudiciais significa, na prática, restringir a intervenção estatal em demandas relacionadas com direitos disponíveis das pessoas, pois retira da competência exclusiva do Poder Judiciário muitos procedimentos de jurisdição principalmente de natureza voluntária. Além de tornar mais ágeis, eficazes e menos dispendiosos tais procedimentos, também libera a máquina judiciária para as questões que permanecem de sua exclusiva competência.

Ao final do estudo, com o desenvolvimento do texto e a construção de conhecimento decorrente, extrai-se que:

a) cabe ao Poder Judiciário a função jurisdicional, vale dizer, de resolver conflitos entre cidadãos, entidades e Estado, de apreciar lesão ou ameaça a direito e de garantir os direitos individuais, coletivos e sociais. Para tanto, é detentor de autonomia tanto administrativa quanto financeira;

b) nas últimas décadas se vem constatando que o Poder Judiciário não está mais conseguindo atender satisfatoriamente – e esse termo se relaciona diretamente com o tempo de análise e julgamento de uma ação judicial -, as lides que lhe são apresentadas. O número de processos judiciais tem aumentado – efeito colateral benéfico da conscientização social dos direitos -, e apesar dos esforços de todos os envolvidos, os jurisdicionados não estão conseguindo respostas rápidas às suas questões, o que vem provocando descontentamento generalizado;

c) dentre as diversas propostas que foram surgindo para resolver o impasse no sentido da otimização do exercício das atividades judiciais, insurge com força e intensidade o fenômeno conhecido por “desjudicialização”, que na prática se traduz na possibilidade de compartilhamento da função jurisdicional do Poder Judiciário por organismos extrajudiciais;

d) desjudicializar é uma faculdade que se confere às partes para compor suas vontades fora do âmbito estatal do Poder Judiciário, desde que se trate de pessoas juridicamente capazes e que o objeto em causa seja direito disponível; e

e) conclui-se que o Cartório Extrajudicial tem estrutura para ser utilizado por toda a população para aliviar o Poder Judiciário, atuando o Notário e o Registrador como agentes colaboradores e pacificadores nas relações sociais.

Referências
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CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada: Lei nº 8.935 de 1994. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006.
CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido R.; GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
FRIEDE, Reis. Comentários ao código de processo civil. 2. ed., vol. I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.
PAIVA, João Pedro Lamana. Novo Código de Processo Civil introduz a usucapião extrajudicial no país. Porto Alegre – RS, março de 2015. Disponível em: <http://irib.org.br/arquivos/biblioteca/Verso_correta_Artigo_Lamana_Paiva_Usucapiao_2.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2015.
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STF, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2.891 MC / RJ. Tribunal Pleno. Relator Sepúlveda Pertence. Julgado em: 04 e junho de 2003. Publicado no DJ de 27 de junho de 2003, p. 00029. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 19 abr. 2015.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 13. ed., vol. I. Rio de janeiro: Forense, 1994.
 
Notas:
[1] FRIEDE, Reis. Comentários ao código de processo civil. 2. ed., vol. I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. p. 06.

[2] CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; DINAMARCO, Cândido R.; GRINOVER, Ada Pelegrini. Teoria geral do processo. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993. p. 114-115.

[3] FRIEDE, Reis. Op. cit., p. 17.

[4] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 13. ed., vol. I. Rio de janeiro: Forense, 1994. p. 331.

[5] Procedimentos especiais de jurisdição voluntária: alienações judiciais, separação consensual, testamentos e codicilo, herança jacente, bens dos ausentes, coisas vagas, curatela dos interditos, tutela, organização e fiscalização das fundações, especialização da hipoteca legal (artigos 1.103 a 1.220, do Código de Processo Civil).

[6] “Artigo 1º: serviços notariais e de registro são os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos” (Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994 – Lei dos Cartórios).

[7] “Artigo 14: a delegação para o exercício da atividade notarial e de registro depende dos seguintes requisitos: I – habilitação em concurso público de provas e títulos; II – nacionalidade brasileira; III – capacidade civil; IV – quitação com as obrigações eleitorais e militares; V – diploma de bacharel em direito; VI – verificação de conduta condigna para o exercício da profissão” (Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994).

[8] Artigo 236, caput, da Constituição Federal de 1988 e Lei nº 8.935 de 18 de novembro de 1994.

[9] CENEVIVA, Walter. Lei dos notários e registradores comentada: Lei nº 8.935 de 1994. 5. ed., rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 22.

[10] CENEVIVA, Walter. Op. cit., p. 23.

[11] Idem, ibidem, p. 30.

[12] STF, Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2.891 MC / RJ. Tribunal Pleno. Relator Sepúlveda Pertence. Julgado em: 04 e junho de 2003. Publicado no DJ de 27 de junho de 2003, p. 00029. Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em: 19 abr. 2015.

[13] CENEVIVA, Walter. Op. cit., p. 06-07.

[14] SANTOS, César Augusto dos. Breve abordagem sobre o tema da desjudicialização em busca de alternativas ao descongestionamento do Poder Judiciário. In: Revista Jurídica De Jure, vol. 10, nº 17, p. 259-281. Belo Horizonte: Ministério Público do Estado de Minas Gerais / Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional / Diretoria de Produção Editorial, jul./dez. 2011. p. 270.

[15] CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 07.

[16] Um exemplo fora da seara do direito notarial e registral é a recuperação extrajudicial, que é uma forma de negociação privada entre o devedor e seus credores, instituída pelos artigos 161 a 167 da Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005, que regula a recuperação judicial, a extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, denominada de Lei de Recuperação de Empresa.

[17] Vide Seção III-A “Da Demarcação de Terrenos para Regularização Fundiária de Interesse Social”, composta pelos artigos 18-A, 18-B, 18-C, 18-D e 18-F, do Decreto-Lei nº 9.760, de 05 de setembro de 1946, incluída pela Lei nº 11.481, de 31 de maio de 2007.

[18] PAIVA, João Pedro Lamana. Novo Código de Processo Civil introduz a usucapião extrajudicial no país. Porto Alegre – RS, março de 2015. Disponível em: <http://irib.org.br/arquivos/biblioteca/Verso_correta_Artigo_Lamana_Paiva_Usucapiao_2.pdf>. Acesso em: 19 abr. 2015. p. 01.

[19] SANTOS, César Augusto dos. Op. cit., p. 270.

[20] CABULI, Ezequiel. La nueva función notarial en el mundo globalizado. In: Derecho Internacional Privado de Argentina: DIPR Argentina, 2010. Disponível em: <http://www.diprargentina.com/2008/06/la-nueva-funcion-notarial-en-el-mundo.html>. Acesso em: 19 abr. 2015. p. 01.


Informações Sobre o Autor

Ana Flávia Moutinho Ribeiro

Formada em Administração de Empresas pela FUMEC. Formada em Direito pela UFMG. Pós Graduada em Direito Empresarial pela Universidade Gama Filhos.Ex-Advogada. Ex-Delegada de Polícia Civil do Estado de Minas Gerais. Oficiala do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais com Atribuição Notarial de Vila Amanda- Comarca de Sete Lagoas em Minas Gerais


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