Resumo: O presente artigo busca estudar a criminalização do negro no Brasil, como consequência do processo de colonização e escravidão operado no Brasil à partir do Século XVI, fazendo um paralelo histórico entre o período de escravidão e o regime nazista estudado por Bauman, e a manutenção da segregação social e da seletividade operada pelo sistema penal no brasil em face dos negros, como fator derivado desta (des)construção humana. Será feito ainda um estudo estatístico sobre a seletividade das mortes por arma de fogo no Brasil, e ainda sobre a segregação dos negros nas prisões brasileiras, buscando demonstrar a seletividade das forças instituídas e paralelas em um processo que será trabalhado como uma tentativa de “branqueamento” por meio da violência na história do Brasil.
Palavras-chave: criminalização; direito penal; estigmatização; negro; preconceito.
Abstract: This article seeks to study the criminalization of black people in Brazil as a result of the colonization process and the slavery operated in Brazil for from the sixteenth century, making a historical parallel between the period of slavery and the Nazi regime studied by Bauman, and the maintenance of social segregation and selectivity operated by the criminal justice system in Brazil in the face of black people as a factor derived from this human (de)construction. Will be already done a statistical study of the selectivity of deaths by firearms in Brazil, and also on the segregation of blacks in Brazilian prisons, seeking to demonstrate the selectivity of the instituted and shear forces in a process that will be working as an attempt to “bleaching “through violence in Brazil’s history.
Keywords: criminalization; criminal law; stigmatization; black; prejudice.
Sumário: Introdução. 1. A criação do estereótipo do mal. 2. A desumanização de categorias sociais: o paralelo com a experiência do holocausto. 3. A manutenção da criminalização do negro e da periferia no Brasil hodierno. Conclusão.
INTRODUÇÃO
O presente artigo busca fazer uma reflexão acerca da criminalização do negro e das periferias do Brasil sob uma perspectiva dialética-histórica, em um estudo sobre a sociologia brasileira e a discriminação que se opera no país desde quando era colônia portuguesa. Fazendo um apanhado histórico, busca-se entender o processo de criminalização do negro no Brasil colônia, na sua instrumentalização, sua transformação em produto para o “desenvolvimento brasileiro” naquele período e as consequências históricas desta instrumentalização para o Brasil hodierno, questionando se realmente após a abolição da escravatura no Brasil se efetivaram políticas de integração, ou se os negros foram mantidos na separação clássica entre a “casa grande” e “senzala” nos dias atuais.
Fazendo um comparativo entre as zonas periféricas, favelas e as antigas senzalas, apresentaremos a visão de que pouca coisa mudou desde o Brasil colônia até os dias atuais, fazendo com que se opere na atualidade um estado de direito diferenciado entre a “casa grande” e a “senzala” permitindo com isso uma criminalização dos negros e periféricos no Brasil, questão esta que redunda em ações tanto estatais quanto de poderes paralelos que estão levando à dizimação dos negros no Brasil.
Para tanto fez-se um paralelo entre tais questionamentos e a obra de Zigmunt Bauman Modernidade e Holocausto, além de lançarmos mão de estudos antropológicos e históricos sobre a segregação racial no Brasil, mostrando-se ao final as consequências deletérias deste legado histórico para a criminalização de certas categorias de pessoas no Brasil, seja pela origem ou mesmo pela posição sócio geográfica que estas pessoas ocupem na sociedade hodierna.
1. A CRIAÇÃO DO ESTEREÓTIPO DO MAL
“Para que me pôr no tronco
Para que me aleijar
Eu juro a vosmecê
Que nunca vi Sinhá
Por que me faz tão mal
Com olhos tão azuis
Me benzo com o sinal
Da santa cruz…”[1]
Na canção de Chico Buarque, em sua voz de lamento, uma história breve é contada, que mistura a malandragem do preto da senzala com a indiferença do branco senhor da Casa Grande. Uma das tantas histórias, das tantas formas de recontar a mesma trama da estigmatização e criação do que chamaremos aqui de “negro conceitual”[2].
A história da criação da mitologia do “negro conceitual” no Brasil deve ser entendida à partir de sua descoberta e exploração como fonte de recursos pelos portugueses. Juntamente com a colonização iniciou-se no Brasil um processo exploratório da mão de obra dos escravos negros, que então eram tratados e cambiados como animais, trazidos da África à partir de meados do século XVI em longas travessias que duravam em média 30 dias. O transporte em si já era algo aterrador – nus, acorrentados uns aos outros, com comida escassa, ausência de nutrientes e condições sanitárias que causava a morte de muitos antes de chegar ao Brasil.
Os escravos eram mantidos no Brasil como propriedade, tratados e comercializados como animais, sem direito algum, sendo explorados, justiçados, mortos sem a preocupação ou intervenção de ninguém. Os negros eram tratados como qualquer outro semovente sofrendo toda a sorte de ações que sofreria qualquer animal: eram trocados, castigados, vendidos, estuprados, mortos, sem a preocupação de serem ou não vidas humanas, seres dignos de direitos.[3]
“O justiçamento de escravos era na maioria das vezes feito na própria fazenda pelo seu senhor, havendo casos de negros enterrados vivos, jogados em caldeirões de água ou azeite fervendo, castrados, deformados além de castigos corriqueiros, como os aplicados com a palmatória, o açoite, o vira-mundo, os anjinhos.”[4]
Na colônia que era o Brasil, iniciava-se a instrumentalização do ser humano e a estigmatização de uma raça em duas possibilidades conceituais que referendavam a absurda exploração do negro: uma primeira, se se considerasse à época que os negros eram humanos, de que o homem poderia ser objetificado pelo homem; uma segunda, mais bestial ainda, de que os negros não eram homens e sim algum ser “inferior” que não deveria ser considerado parte da própria humanidade. Entendo que a segunda deve ter tido mais corpo à época, o que permitia o cometimento de toda sorte de atrocidades tendo em vista que a humanidade do ofensor estaria preservada, ao considerar o ofendido como animal, propriedade, portanto possível de toda a sorte de máculas em seu “adestramento” ou mesmo pelo mero prazer do seu proprietário.
Este “negro conceitual”, jogado na senzala, nos campos de concentração brasileiros, como animais, era simples objeto, tido como “quase-homem”, um bicho a ser domado, bestializado, instrumentalizado em prol do “desenvolvimento” que o homem branco europeu trazia às terras bárbaras e desprovidas de cultura da América do Sul.
Com a saída da senzala este negro ainda não tinha conseguido status de humanidade, tinha sido retirado das senzalas e jogado nas periferias, distanciados de sua terra natal, da África, alijados de suas raízes, cultura, famílias, em uma terra em que eram considerados como animais. Viram-se assim entregues à própria sorte nas periferias, nos guetos, distantes do homem branco ocidental dos centros de desenvolvimento do Brasil.
Os guetos e periferias eram novas senzalas onde o ainda estigmatizado “negro conceitual”, socialmente tido como animal recém emancipado dos campos de concentração, amontoavam-se sedentos de todas as necessidades, vendo-se às voltas em uma sociedade que continuava a excluí-los e na qual pareciam não participar, pelo menos como humanos. Naquele bioma distinto, às vezes vivendo em periferias, as vezes ainda reclusos em quilombos, viviam em uma outra realidade social, exprimindo ainda a desconfiança dos homens brancos ocidentais, nos cidadãos sociais inseridos. Era a continuação da estigmatização na manutenção do binário maniqueísmo do “nós” e “eles” entre os seres dignos e indignos da humanidade.
Aqueles indignos negros, amontoados como animais, exprimiam agora o medo em parte da sociedade que os via como animais selvagens, o bicho que vivia na senzala, preso por grilhões, agora emancipados. Criou-se e edificou-se o mito do homem branco civilizado do “eu cidadão” e do “ele animal”. De um lado o homem branco que trouxe a civilização, o desenvolvimento para os nativos, a “ordem e progresso” imposta verticalmente de quem era detentor da sabedoria europeia necessária para o desenvolvimento dos nativos, e a extirpação de todos que fossem contra o projeto desenvolvimentista do Brasil. Do outro lado, no extremo, estava o negro, o “anti desenvolvimento” – o ser bestial, animal que sucumbe aos instintos inferiores, que pode facilmente roubar, estuprar, matar -, a antítese da ordem “branca”, o negro era o próprio caos. Não importa a história, mas o mito criado em torno dela, “o preconceito contra negros e seus descendentes é oriundo de um contexto histórico de usurpação dos seus direitos e de uma construção paulatina de subjugação a partir da sua cor.”[5]
“A escravidão foi a base a partir da qual se fundou uma civilização… E ao fazê-lo, viabilizou um projeto excludente, em que o objetivo das elites é manter a diferença com relação ao restante da população”. E para complementar, diz Luiz Felipe Alencastro: “A escravidão legou-nos uma insensibilidade, um descompromisso com a sorte da maioria que está na raiz da estratégia das classes sociais mais favorecidas, hoje, de se isolar, criar um mundo só para elas, onde a segurança está privatizada, a escola está privatizada e a saúde também.”[6]
As chacinas do branco, justificava-se, foram em prol de uma causa maior, de uma maior felicidade para um maior número de pessoas[7], de uma utilidade para própria humanidade, permitia-se então o genocídio de índios, a exploração de escravos, tudo em nome do progresso, era, portanto, justificável.
Somado a estes estigmas formaram-se ainda os estigmas culturais, em que toda religião advinda de negros seria a própria encarnação do mal. Aliás, tudo que originasse-se dos negros, já estigmatizados, símbolos da não humanidade, fora também marcado. O “negro conceitual” é um conjunto de atributos culturais, físicos, psicológicos ligados à cultura da senzala que depois tornou-se gueto, periferia.
Segundo Sérgio Buarque de Holanda[8] “os pretos e descendentes de pretos, esses continuavam relegados, ao menos em certos textos oficiais, a trabalhos de baixa reputação, os negro Jobs, que tanto degrada o indivíduo que os exerce, como sua geração”, era o trabalho do negro também estigmatizado como indignos, inclusive sendo dissuadido o casamento entre os índios e negros e entre brancos e pretos, neste sentido o autor completa “em portaria de 6 de agosto de 1771, o vice-rei do Brasil mandou dar baixa ao posto de capitão-mor a um índio porque “se mostrara de tão baixos sentimentos que casuou com uma preta, manchando seu sangue com esta aliança.” (grifo nosso). É indiscutível a categoria menor relegada à raça na herança histórica e cultural do Brasil.
No âmbito religioso, as crenças da “Mama África” eram tidas como pagãs, artes ocultas ligadas ao demônio, no imaginário popular do homem branco, o detentor e impôs(i)tor da cultura (ir)real do Brasil miscigenado. Neste Brasil que nasceu miscigenado, quem impunha a cultura queria se dizer branco, mesmo sendo mestiço, neste Brasil europeu inventado, o bem era tido como o cristão e o mal como o pagão.
O africano era tido como a essência do próprio demônio, crença fundamentada em mitos cristãos como do da “Maldição de Cam” para os negros, como dizia o Padre Antônio Vieira em seus Sermões (XI e XXVII) “a África é o inferno onde Deus se digna de retirar os condenados para, pelo purgatório da escravidão nas Américas, finalmente alcançarem o paraíso” dizendo ainda que “é melhor ser escravo no Brasil e salvar sua alma do que viver livre na África e perde-la” [9]
Cita Walter Passos[10] que a escravidão e a mitologia do “Mito de Cam” para justifica-la foi: “um processo planejado nas catedrais, nos concílios, no desejo de poder das igrejas católicas e protestantes e suas alianças com potências caucasianas, nas invasões através do mercantilismo, da escravidão, do colonialismo, do neocolonialismo, no capitalismo para roubar o continente africano e escravizar os seus filhos e filhas, atualmente tentando mantê-los desinformados e alheios da real liberdade com estigmas de amaldiçoados.”
Tudo era circundado por um interesse mercantilista, a concentração de poder por meio da instrumentalização da própria humanidade, “a economia colonial latino-americana valeu-se da maior concentração de força de trabalho até então conhecida, para tornar possível a maior concentração de riqueza com que jamais contou qualquer civilização na história mundial.”[11]
Neste Brasil colonial do bem e do mal, brotava a desigualdade, era um local onde, não diferente do que hoje acontece, “a abundância e a prosperidade eram simétricas à miséria da maioria da população, que vivia em estado de crônica desnutrição.”[12]
Assim se formou, em breves palavras, a mitologia do “mal” no Brasil. Na simplicidade de conceitos, na atração pelo reducionismo do maniqueísmo, formou-se uma classe dos inseridos socialmente, e uma classe dos excluídos.
Sócio espacialmente criou-se uma vinculação entre as periferias e regiões habitadas por seres “menos humanos”, que buscam sempre a degeneração da nação, guetos do crime, local de pessoas não comprometidas, enquanto nos centros o mito inverso, de que ali estão as pessoas “comprometidas” pelo desenvolvimento e bem estar nacional, dignas e detentoras do poder e dos direitos.
2. A DESUMANIZAÇÃO DE CATEGORIAS SOCIAIS: O PARALELO COM A EXPERIÊNCIA DO HOLOCAUSTO
Como fazer um paralelo da escravidão nas Américas com o Holocausto nazista? Existiria algum elo de ligação? Me perguntava isso e contestava a minha própria racionalidade quando lendo a obra de Zigmunt Bauman, Modernidade e Holocausto, me pegava criando paralelos entre um e outro.
Comecei a pesquisar pelos números de mortos, Bauman sobre isso disse que “embora os judeus não tenham sido a única população submetida a ‘tratamento especial’ pelo regime nazista (seis milhões de judeus estavam entre as mais de 20 milhões de pessoas aniquiladas ao mando de Hitler), só os judeus foram marcados para o extermínio, a destruição total, e não tinham lugar reservado na Nova Ordem que Hitler pretendia instaurar”.[13]
No Brasil, segundo as fontes que consegui pesquisar, no período da escravidão foram trazidos para o Brasil, entre a segunda metade do século XVI e 1850, cerca de 3,9 milhões de escravos da África. Sobre este número devemos considerar que só chegavam ao Brasil cerca de 80% dos negros que embarcavam na origem, decorrente de toda sorte de doenças que acometiam os viajantes dos navios negreiros.[14] Consideremos ainda que em 1850 a população do Brasil era de 3,5 milhões, sendo que destes 1,9 milhões eram negros, com expectativa de vida muito baixa e altas taxas de mortalidade.[15] Estima-se que só em viagens de transporte de escravos tenham morrido cerca de 2,5 milhões durante o período[16], os outros viveram um certo tipo de “morte em vida”, sendo tratados como animais nos campos de concentração chamados senzalas brasileiras, um número extremamente relevante considerando-se a densidade demográfica do Brasil à época, muito menor que a alemã do Terceiro Reich.
Evidentemente que os números são distintos, mas proporcionalmente tinham como paralelo a barbaridade, e a desumanização de pessoas tidas como objetos, seja para um projeto de regulação social, ou hegemonia racial, seja para um projeto de enriquecimento mercantil.
Em ambos os projetos de “humanidade”, de “civilização” – mesmo com consequências diversas e em momentos históricos diversos, tendo ainda motivos diferentes -, temos o que podemos expressar com as palavras de Richard L. Rubenstein[17] da seguinte forma: “Civilização significa escravidão, guerras, exploração e campos de morte. Também significa higiene médica, elevadas ideias religiosas, belas artes e requintada música. É um erro imaginar que civilização e crueldade selvagem sejam antíteses…”
Tanto no período colonial no Brasil quanto na Alemanha Nazista, tínhamos um projeto civilizatório, utilitarista que implicava a utilização de pessoas como objetos em nome de um “projeto maior”, consubstanciado por teorias religiosas, filosóficas, jurídicas que permitiram toda a sorte de crueldades sem considerar tais condutas como barbárie, pelo menos no período e para a população que perpetrava a dominação, sejam eles os alemães do Terceiro Reich, sejam para os “desbravadores” europeus do Brasil colônia, existiam causas legítimas e escusas “racionais” em diversos níveis para as atrocidades que foram cometidas.
O mesmo paralelo pode ser feito em diferente medida entre as máquinas de morte dos Judeus e as máquinas de comércio dos pretos no Brasil. Ambos foram consequências de seu tempo, representação máxima de um certo período da humanidade. Enquanto “o assassinato em massa dos judeus da Europa pelos nazistas não foi apenas realização tecnológica de uma sociedade industrial, mas também sucesso de organização de uma sociedade burocrática”[18], a instrumentalização e comercialização dos negros foi a soma da tecnologia mercantilista dos navios, oriunda da hegemonia exploratória europeia, e de uma sociedade em busca da ampliação da produção. Duas faces de um mesmo drama, separados pelo tempo mas unidas por um projeto de coisificação da humanidade.
“O inconcluso processo civilizador ainda tem que ser concluído. Se a lição do assassinato em massa [e a escravização] de fato nos ensina algo é que a prevenção de semelhantes barbaridades evidentemente ainda requer mais esforços civilizadores. Não há nada nessa lição que lance dúvidas sobre a futura eficiência de tais esforços e seus resultados últimos.”[19]
Se pensarmos, tanto na Alemanha nazista quanto no Brasil colonial, tivemos atrocidades cometidas por pessoas normais que, pensando em um projeto maior, amparadas emocionalmente e psicologicamente com uma justificativa de “modernidade” de um “bem maior social” criaram estruturas desumanizantes aberrantes. Eram pessoas “de bem”, sujeitos que pretendiam um projeto de humanidade, certamente pacífico, mesmo que motivados por fatores diferentes. Na Alemanha por uma burocracia e uma descaracterização do indivíduo pela nação, no Brasil movido por uma vontade de ganho de capital, de ampliação da riqueza – todas, contudo, instrumentalizadoras do ser humano por um projeto de humanidade, um antagonismo em níveis diversos onde se busca a humanidade pela desumanização de uma parcela dela.
Os alemães no Terceiro Reich não podem ser interpretados nas ações bárbaras que cometeram como “criminosos de nascença, sádicos, loucos, depravados sociais ou indivíduos de outra forma moralmente incompletos…”[20], da mesma forma que não podem ser vistos assim os senhores de engenho, mercadores de escravos e Capitães do Mato no Brasil. São produtos de uma racionalidade de uma época que via todos os eventos como naturais, consequências colaterais do projeto desenvolvimentista da nação.
Interessante passagem de Bauman cita a exoneração da responsabilidade pessoal no Holocausto falando que: “Para compreender como foi possível essa cegueira moral estarrecedora, ajuda pensar nos operários da fábrica de armamentos que se alegram com a “suspensão do fechamento” de sua indústria graças a novas ordens grandiosas, ao mesmo tempo que lamentam os massacres mútuos de etíopes e eriteus: ou como é possível que a “queda nos preços das commodities” pode ser universalmente aclamada como uma notícia boa ao mesmo tempo que a “fome das crianças africanas” é lamentada de forma igualmente universal e sincera.”[21]
É possível imaginar em paralelo o comerciante de escravos, sem presenciar a sorte do preto no Brasil, negociando a sua venda na África, desonerando sua consciência ao pensar na necessidade de seus ganhos para alimentar seus filhos. Ou ainda do capitão dos Navios Negreiros que deveria pensar que nada tinha com a escravidão, pois só transportava os “negros” ou mesmo dos Senhores de Engenho, que pensavam que melhor sorte tinham os negros em trabalhar que morrerem de fome nas ruas das cidades. A fragmentarização da instrumentalização permitia tal percepção, esse aumento “da distância física e/ou psíquica entre o ato e suas consequências produz mais do que a suspensão da inibição moral; anula o significado moral do ato e todo conflito entre padrão pessoal de decência moral e a imoralidade da conduta social do ato.[22]”
Como a lembrança de uma bondade de pessoas de boa vontade nos lembra John Lachs[23] que: “Sem o conhecimento direto das próprias ações, mesmo o melhor ser humano age num vazio moral: o reconhecimento abstrato do mal não é nem um guia confiável nem um motivo adequado… Não devemos [nos] surpreender com a imensa crueldade em grande parte não intencional de homens de boa vontade….”
No nazismo se formavam os guetos sociais, áreas excluídas do direito, uma área onde era possível a atuação fora do direito legitimada pelo direito, na criação das vidas indignas, em uma zona de exceção, em um local onde tudo podia ser feito às margens do direito.
O Terceiro Reich findou-se por motivos externos, o Nazismo perdeu a sua guerra, o mundo então voltou-se contra tudo que havia sido perpetrado de barbaridades e, simbolicamente em Nuremberg puniu os principais líderes do regime. Os judeus formaram o que é o atual Estado de Israel, conseguiram a sua emancipação e a sua terra prometida, e é aqui que acabam os paralelos entre os regimes.
No Brasil o regime de exploração e coisificação dos negros deu-se em decorrência da Lei Áurea, fundada em pressões externas não tão condenatórias, já que grande parte do mundo “civilizado” havia também lançado mão da escravidão. Por meio de um decreto, e tá ai os simbolismos tão opulentos de um Brasil que se fundou em meio a demagogias e discursos, criou um paradigma que teremos até os dias atuais, em que todos os problemas se resolvem com uma simples “canetada”.
Como se fosse possível criou-se uma lei que aparentemente libertaria os negros, mas eles estavam aqui escravos dos estigmas, feridas sociais que perduram até os dias atuais no Brasil. Façamos um derradeiro paralelo ao nazismo e à problemática dos judeus: “Por séculos, o judeu foi alguém que viveu num bairro separado da cidade e usava uma roupa notavelmente típica […] Relações que resistissem à formalização e à redução funcional eram de modo geral proibidas ou pelo menos desencorajadas.”[24]
E da mesma forma se operou a segregação dos negros da sociedade dita civilizada. Operou-se primeiramente de forma muito mais abrupta, sendo os negros jogados em senzalas, galpões como bichos, desumanizados, sendo vistos socialmente pelos séculos da escravidão como animais, hostis, brutalizados e irracionais. Usavam roupas típicas, restos, características que seguiriam por muito tempo. Estigmatizados à época, hoje ainda mantém uma linguagem própria do gueto, uma linguagem marginal, uma música, dança, ginga, crença, de modo geral ainda estigmatizado, basta ver o rap das favelas, o funk “proibido”, tal é hoje como era com a capoeira da senzala, as danças e as crenças, marginalizadas operando estigmas que se solidificaram e ainda permanecem.
Neste aspecto específico, Oracy Nogueira aponta que no Brasil não existe a ocorrência de preconceito relacionado à raça ou ascendência (preconceito de origem) e sim um chamado preconceito de marca, constituído, por estimas marcadores de aparência[25], sendo que no Brasil, segundo Florestam Fernandes, a cor é usada no Brasil para uma imagem figurada da raça ou um “tropo para raça”, na criação do que chamamos aqui de “o negro conceitual” no Brasil.
Tento sido desumanizados, os negros no Brasil, por meio da Lei Áurea foram jogados à própria sorte, saindo da escravidão tiveram, para sobreviver, que ingressar em um sistema de semiescravidão trabalhando por parcos salários, morando ainda em guetos, favelas, casas que pouco mais condição tinham que nas senzalas. Aboliram as correntes de ferro e mantiveram-se as correntes sociais.
Desta forma o estigma da senzala manteve-se nas periferias formadas pelos negros pós-abolição da escravatura, ali as populações carregavam o estigma social da desumanização, em sentido muito aproximado ao que acontecia na senzala, ali não se aplicava os direitos que eram comuns aos insiders, ali era uma zona de exceção onde outro direito vigia, onde havia pessoas indignas que podiam a qualquer momento ser jogadas à ferros, no que veio a se transformar nos “troncos” da modernidade: os presídios.
3. A MANUTENÇÃO DA CRIMINALIZAÇÃO DO NEGRO E DA PERIFERIA NO BRASIL HODIERNO
E por séculos seguindo as marcas, os estigmas, as cicatrizes dos grilhões da escravidão, permaneceu a ideia do “não civilizado” com a figura do negro, o marginal. Como estigma racial a cor da pele preta, como estigma sócio espacial zonas periféricas de alta concentração populacional e baixos índices de desenvolvimento humano. Nos centros das cidades continuaram as “Casas Grandes” e nas margens as “Senzalas”, e em cada lugar continuaram alocadas, salvas exceções, as mesmas pessoas de outrora. “No senso comum, cidadãos negros são percebidos como potenciais perturbadores da ordem social, apesar da existência de estudos questionando a suposta maior contribuição dos negros para a criminalidade.”[26]
As agências estatais do processo penal funcionam atualmente seguindo modelo estigmatizante, pressionadas por fatores históricos e culturais que levam a esta preconcepção falaciosa de que os pretos e periféricos são os que mais trazem riscos à sociedade. Há um efeito de suspensão do direito quando da atuação das agências responsáveis pela persecução penal quando atuando nas “senzalas modernas” ou quando diante do “negro conceitual”. Com relação à estas pessoas estigmatizadas há uma seletividade de tratamento fora do âmbito dos direitos humanos na tentativa de conter, simbolicamente a criminalidade, no processo penal do espetáculo, com ferramentas como “…intimidação policial, as sanções punitivas e a maior severidade no tratamento dispensado àqueles que se encontram sob tutela e guarda nas prisões recaem preferencialmente sobre “os mais jovens, os mais pobres e os mais negros”.[27]
Em decorrência de tais práticas, os negros continuam a morrer, continuam a ser presos, continuam a ser jogados à ferros. Mesmo com os constantes investimentos em segurança, parece que o benefício destes mantém-se apenas a beneficiar a “Casa Grande”. Segundo pesquisas entre 2002 e 2008 o número de brancos assassinados no Brasil caiu 22,3%, tendo crescido a morte de negros em 20%. Em locais como Paraíba, são mortos 1.083% mais negros que brancos e na Bahia 439,8% mais negros que brancos.[28]
O crescimento também do suicídio por pessoas pretas supera da mesma forma o suicídio em pessoas brancas, tendo aumentado no mesmo período em 51,3% enquanto para brancos houve um aumento de 8,6%.
Mantém-se exatamente a mesma “racionalidade” do sistema social brasileiro que vigia desde o Brasil colônia ainda operante, mesmo que sub-repticiamente na atualidade, os negros ainda são segregados e os “habitantes da senzala” ainda não gozam do mesmo universo de direitos e garantias do morador da “Casa Grande”.
Sendo o foco do sistema penal, da atuação estatal, da violência punitiva, os “negros conceituais” que hoje abarcam não só os pretos, mas também os pardos que habitem as zonas de exclusão do direito penal, mantem-se o mito do “negro conceitual” como sendo uma pessoa, sob a ótica lombrosiana, voltada para a prática criminosa, e digo um mito exatamente por não haver sequer um estudo que mostre uma maior propensão do “negro conceitual” para o cometimento de crimes em relação ao branco.
“Ao contrário, desde fins da década de 1920, alguns estudos americanos já haviam demonstrado o quanto preconceitos sociais e culturais, em particular o racismo, comprometiam a neutralidade dos julgamentos e a universalidade na aplicação das leis penais. Um dos estudos clássicos é o de Sellin (1928), que demonstrou a preferência seletiva das sanções penais para negros.”[29]
Ou seja, o sistema retroalimenta o próprio mito, sendo que os estigmas históricos ligados ao “negro conceitual” fazem com que as ações estatais sejam seletivamente voltadas para estas pessoas e a aplicação da lei penal tenha uma tendência, conforme Sellin a ser aplicada de forma mais dura para pessoas com determinadas características sócio raciais: uma seletividade na aplicação de leis mais duras e na redução das garantias individuais para determinado tipo de pessoas de determinadas regiões geográficas.
Esta retroalimentação deste “negro conceitual” como o criminoso é feito punindo-se mais duramente negros, com ações estatais mais duras em periferias e consequentemente a divulgação na grande mídia destes casos criando a ideia de que, graças à esta superexposição midiática, o negro é o grande algoz da sociedade, o criminoso, uma ligação imaginária entre o “negro conceitual” e o criminoso no Brasil.
Segundo dados o “negro conceitual[30]” é o maior alvo do sistema penal brasileiro, ocupando em 2012, quando a população carcerária brasileira era de mais de 515 mil presos, um percentual de 60,8% nos presídios[31]. A constatação que o relatório do Mapa do Encarceramento no Brasil chegou é que a crescente população carcerária brasileira segue em paralelo com o crescente encarceramento dos negros, a estigmatização continua, uma forma de excluir os negros da sociedade, em um processo de branqueamento social, a política republicada pós-colônia, a exclusão da condição de escravidão do negro, não mudou efetivamente a política de atuação (ou não atuação) do Estado com esta parcela da sociedade, na verdade: “a política republicana reforçou os esquemas de dominação herdados do período colonial. Diante disso, os negros tiveram dificuldade de se organizar na nova situação “a falta de preparação para a sua libertação a fim de que a assumisse com dignidade, apenas, trouxe-lhes consequências inexequíveis tais como: sua marginalização, seu descrédito, sua despersonalização, levando-o a ter vergonha de si próprio”[32]
Na atualidade, com os números expressivos de vítimas de homicídio por arma de fogo que chegam no último relatório do Mapa da Violência a um número assustador de 42.416 mortes por arma de fogo só no ano de 2012. Destes 24.882 eram jovens de 15 a 29 anos (um percentual de mais de 58%). Interessante agora colocar cor sobre os números. Os negros foram as maiores vítimas em decorrência de arma, representando um universo de 72,9% das vítimas ou como conclui o próprio relatório: “a vitimização negra foi de 142%, nesse ano; morreram proporcionalmente e por AF 142% mais negros que brancos: duas vezes e meia mais.” Importante salientar que das mortes por arma de fogo de negros, entre as categorias de acidente, homicídio, suicídio e indeterminado, 95,56% das mortes foram registradas como homicídios, um sistemático extermínio de negros que permanece no Brasil desde os tempos da escravidão. Com relação às vítimas jovens o quadro não difere, dentre os jovens vítimas de homicídios por arma de fogo os negros ocupam 76,72% das vítimas.
A conclusão numérica reafirma o embasamento histórico deste trabalho: permanece um sistema de higienização da raça negra no Brasil um sistema paralelo no tratamento com o negro, há mais violência contra uma determinada cor de pele, há um estigma de raça que permanece no Brasil hodierno.
CONCLUSÃO
O que se demonstra, por todo o exposto, é que permanece no tempo uma tentativa operada pelo sistema oficial, paralelo e social de “branqueamento” social, fatores complexos históricos e culturais que permitem que o negro seja o maior alvo dos crimes, vitimado, e seja o maior alvo do sistema penal. São os negros os que mais ocupam os presídios e as valas dos cemitérios, os que mais ocupam os guetos, os de menor poder aquisitivo e os que habitam as regiões periféricas, senzalas modernas, em que se opera um direito diferente, muito distante do direito positivado em nossa Constituição. O que existe ainda no Brasil, e precisa ser escancarado, debatido, retirado da cortina de fumaça, é um operante sistema estigmatizatório de preconceito contra os negros, que são vítimas tanto do crime quanto do sistema penal, e que podem ser considerados hoje ainda instrumentos, seja para o espetáculo que não raras vezes vira o nosso processo penal, ou pra o justiçamento de poderes paralelos nas periferias sociais. Negligenciar tais números, fatos e história é permitir a continuidade de um sistema de extermínio histórico operado sistemicamente tanto pelo poder constituído quanto pelos poderes paralelos em nosso Brasil.
É mais do que passada a hora de enfrentar este problema de frente, escancarar estas chagas sociais e talvez assim, combatendo de frente o que está escondido, possamos iniciar um processo de mudança e eliminar de vez as senzalas e os troncos de nosso Brasil.
Informações Sobre o Autor
Enio Walcácer de Oliveira Filho
Mestre em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos pela Universidade Federal do Tocantins – UFT, especialista em Ciências Criminais e também em Direito Administrativo pela UFT, graduado em Direito e em Comunicação Social pela UFT. Membro do Conselho Editorial da Revista Vertentes do Direito da UFT. Professor titular de Direito Processual Penal na FASEC e Coordenador de Iniciação Científica, Extensão e Pós-Graduação na mesma instituição