Questões atuais sobre a responsabilidade civil médica: a indústria do dano contra médicos

Resumo: O presente artigo procura lançar novos olhares sobre perspectiva da responsabilidade civil dos médicos, propondo um critério diferenciado de estudo da responsabilidade destes profissionais. O plano de estudos, inicialmente, aborda a responsabilidade civil médica brasileira e os elementos caracterizadores. Em um segundo momento, iremos abordar os tópicos importantes para exclusão do dever de indenizar. Abordaremos, o aumento das demandas contra estes profissionais, as discussões sobre o tema, tendo em vista a sociedade individualista e assistencialista que nos deparamos nos dias atuais.  Em seguida, apresenta-se uma crítica a postura protecionista da jurisprudência pátria e de alguns doutrinadores que claramente se apóiam na fase intervencionista, em que multiplicam-se normas, jurisprudência e medidas contra os médico, visando apenas a proteção do consumidor. Procura-se demonstrar a necessidade de novos critérios para apuração da responsabilidade destes profissionais e novos critérios para aplicação do sistema jurídico já vigente, que vem sendo aplicado e interpretado de maneira altamente protecionista, deixando estes profissionais em desvantagem exagerada junto ao judiciário.

 Palavras-chave: responsabilidade civil dos médicos. excludentes de responsabilidade. Código de Defesa do Consumidor. aumento de demandas. protecionismo excessivo ao consumidor.

Abstract: This paper attempts to shed new insights on the perspective of civil liability of physicians, offering a differentiated criterion study of the responsibility of these professionals. The curriculum initially focuses on the Brazilian medical liability and information detailing. In a second step, we discuss the important topics to the exclusion of the duty to indemnify. We will address the increased demands against these professionals, the discussions on the subject, in view of the individualistic society and welfare we face today. It then presents a critical protectionist stance homeland jurisprudence and some scholars that clearly support the interventional phase where multiply standards, case law and action against the physician, seeking only to consumer protection. Seeks to demonstrate the need for new criteria for determining the responsibility of professionals and new criteria for application of already existing legal system, which has been interpreted and applied in a highly protectionist way, leaving these professionals at a disadvantage exaggerated by the judiciary.

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Keywords: liability of doctors. exclusive responsibility. Code of Consumer Protection. increased demands. excessive consumer protectionism.

Introdução

O presente trabalho apresenta como problema fundamental a desvantagem exagerada em que os médicos estão sendo expostos pelos tribunais e doutrinadores, nessa medida, procura lançar novos olhares sobre o referido ramo do direito, buscando um critério diferenciado para apuração da responsabilidade deste profissional.

O método utilizado é do tipo jurídico-positivo e indutivo, destinando à realização de questionamento, visando propor mudanças concretas, tanto na legislação vigente, e principalmente em sua interpretação jurisprudencial.

O plano de estudo, segue primeiramente a análise do instituto da responsabilidade civil, seus pressupostos e excludentes. Abordando, a aplicação das normas consumeristas ao tema, tratando de uma fase claramente intervencionista em que se multiplicam normas e medidas de proteção ao consumidor-paciente, porém menosprezando a realidade da relação instituída.

O segundo momento reflete o reconhecimento do aumento de demandas contra os médicos e o abuso praticado pelos pacientes e seus patronos, em demandas fadadas a improcedência mas que contam com o instituto da justiça gratuita.

Por fim, busca apresentar uma crítica à postura excessivamente protecionista e intervencionista do estado e seus juristas. Procurando demonstrar essa nova classe de danos, em que os pacientes/consumidores sujeitos de direitos, demandam o judiciário de maneira abusiva em sua maioria, utilizando o judiciário sem fundamento, ou seja, utilizando o direito constitucional e fundamental de inafastabilidade do controle jurisdicional com finalidade social divergente do que instituído pela lei e bons costumes.

Nessa medida evidencia-se a necessidade de adoção de novos critérios para aplicação das normas consumeristas e demais normas do ordenamento jurídico às atividades médicas, pois de fato, não se coadunam com a complexidade de tais relações.

1 A responsabilidade civil médica

A responsabilidade civil não é contemporânea, desde a antiguidade se buscava em um ideário de justiça a responsabilização do agente por seus atos danosos, e assim, ocorria com os médicos. Porém a responsabilidade civil passou por crescente evolução até as formas de responsabilização que conhecemos hoje.

 Para gerar o dever de reparação são necessários alguns requisitos indispensáveis, como a conduta contrária a um dever jurídico (ato ilícito) que é a causa (nexo causal) do dano (prejuízo de outrem). A responsabilidade do médico é subjetiva, ou seja, são necessários os seguintes elementos para ensejar o dever de reparação: Conduta ilícita e Culposa; Nexo causal; Dano. Elementos indispensáveis para caracterização da responsabilidade civil.

 A obrigação médica é de meio, pois o médico se obriga a atuar conforme a lex artis, zelo, prudência e cuidado, para obter o resultado/cura, mas não se obriga a obtê-lo. Mas há algumas jurisprudências tendentes a elencarem algumas especialidades médicas como obrigações de resultado.

A discussão sobre a obrigação ser de meio ou de resultado cinge-se em matéria processual, ao aspecto do ônus da prova, pois sendo obrigação de resultado, caberá ao médico a prova que seu agir foi de acordo com a literatura médica e que não houve culpa por sua parte. Porém não concordamos com esta diferenciação para algumas especialidades médicas, ora, todo o exercício da medicina está calçado das mesmas áleas da atividade, o organismo humano é por vezes imprevisível e incompreensível, sendo um fardo extremamente pesado e injusto presumir a culpa de um profissional médico.

Em razão disso, conclui a professora Hildegard:

“A nosso ver deveria ser óbvio que, quando a prestação obrigacional se desenvolvesse em um campo aleatório, sua conceituação deveria situar-se dentro da categoria de uma obrigação de meio, já que não seria razoável garantir um resultado em seara onde o fator álea estivesse presente, o que, conseqüentemente, propiciaria algo imprevisível.”[1]

Dessa forma, tendo em vista que a ciência médica ainda não conseguiu desvendar certos segredos ligados à natureza humana, ficam os profissionais da medicina impossibilitados de prometer um resultado certo e determinado ao seu paciente. Há outro aspecto a militar em favor da inserção da obrigação como de meio e não de resultado: "[…] o papel ativo do credor na execução da obrigação, que pode ser representado por sua participação ou pelo estado de dependência do devedor em relação ao credor."[2] Por essas razões, incumbe ao paciente o ônus da prova da inexecução obrigacional por parte do devedor (médico), face à conduta culposa do mesmo, culpa em "lato sensu", incluindo o dolo e culpa "strito sensu" (negligência, imprudência ou imperícia).

O Código de Defesa do Consumidor adotou a responsabilidade objetiva do fornecedor de produtos e serviços, em atenção ao protecionismo e vulnerabilidade do consumidor. Para CAVALIERI FILHO, a responsabilidade será objetiva em decorrência do dever de segurança imposto, ou seja, para a responsabilidade ser objetiva é necessário que a atividade seja habitual e que por sua natureza implicar riscos, surgindo assim o dever jurídico de segurança moral e material. A violação deste dever primário de segurança, estabelecido por lei, justifica a obrigação de reparar, sem nenhuma análise de culpa do autor, ou seja, estamos diante da responsabilidade objetiva.[3]

A doutrina não é pacifica quanto à fundamentação da responsabilidade objetiva, para BRUNO MIRAGEM, a fundamentação está na teoria do risco-proveito, pois o dono da atividade tem em mãos a justiça-distribuitiva, ou seja, pode eleger um critério eficiente de redistribuição de suas dividas com a indenização por toda a cadeia de fornecimento, podendo repassar estes custos por intermédio do sistema de preços, a todos os consumidores, que terminariam também por remunerar o fornecedor em custos com eventuais indenizações que ele venha a suportar. [4]

Com o advento do Código de Defesa do Consumidor a jurisprudência e doutrina dominante entendem que a relação médico e paciente deve ser regida pelo CDC e subsidiariamente pelo CC/02. A responsabilidade do médico continua ser subjetiva, nesse passo, para que surja aos profissionais da área de saúde o dever de reparar, pressupõe-se a existência de uma ação (ou omissão), culpa ou dolo, evento danoso e relação de causalidade entre a conduta do agente e o dano.

Para se eximir do dever de indenizar o médico deve provar causas excludentes de responsabilidade, ou seja, desqualificar um dos elementos ensejadores da responsabilidade civil.

2 Das excludentes de responsabilidade

As excludentes de responsabilidade de acordo com o CDC é ônus de prova do médico. As excludentes constituem motivo de isenção de responsabilidade, por desqualificarem um ou mais elementos ensejadores do dever de reparação civil, as excludentes isentam o agente do dever de indenizar, apesar do dano provado pela vítima.

Além das excludentes comuns em responsabilidade civil, como ato exclusivo da vítima, ato de terceiro e caso fortuito e força maior, iremos elencar algumas excludentes específicas da relação médico e paciente, que ainda são desconhecidas e pouco utilizadas pela jurisprudência e pelos operadores do direito.

2.1 O erro médico e a ausência de defeito

Assenta-se em julgados e doutrinas que o erro médico, ou seja, a conduta culposa do médico que causa dano ao paciente gera dever de indenizar, mas o que seria erro?

Como descreve Eduardo Nunes de Souza, erro é uma falha no exercício profissional, é um juízo valorativo, promovendo uma comparação entre o procedimento adotado e aquele que em tese, teria evitado o dano já conhecido, este juízo valorativo não analisa a culpa, pois não esta interessado na maior ou menor diligência de um médico diante de um determinado quadro clínico, ora, um médico absolutamente diligente, e observador da "lex artis", diante de um quadro clínico em que temos dois tipos de tratamento, pode optar por um que não cure o enfermo, sendo assim o médico errou, mas não houve culpa[5].

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O erro profissional é escusável devido a imprecisão da arte, pois a conduta médica é correta, mas a técnica empregada é incorreta. O erro profissional não é culposo, advém das incertezas da arte médica, por isso, a obrigação dos médicos é de meio, não se obrigando a curar, mas sim a empregar todos os seus conhecimentos com zelo e cuidado para obter o resultado.

Confundir erro com culpa, o que tem sido comum por boa parte dos juízes, é proceder uma objetivação velada da responsabilidade médica. Pois sempre que a conduta médica conduzir a um dano e for possível cogitar que outra conduta não causaria o dano, estaria configurada a responsabilidade do médico[6].

Para CAVALIERI o médico procede corretamente, sendo o erro imputado à limitação da profissão e da natureza humana, por isso não seria responsabilizado por erros de diagnóstico ou de tratamento[7].  E AGUIAR DIAS, ainda ressalta que o erro de técnica deve ser apreciado de forma prudente pelos tribunais, não podendo e nem devendo o julgador entrar em apreciações de ordem técnica quanto aos métodos científicos que por sua natureza sejam passiveis de dúvidas ou discussões. [8]

As Iatrogenias também estão no rol de danos que não são de responsabilidade dos médicos, ou seja, as lesões previsíveis e esperadas ou não, quando o atuar médico é correto e necessário, e causam danos, mas não há violação de dever por parte do médico.

Para José Carlos Maldonado a Iatrogenia pode ser causada pelo exercício regular do direito do médico, sendo lesões lícitas e permitidas, porém sempre com o consentimento do paciente; podendo ainda, decorrer de fatores intrínsecos individuais de cada paciente, tendo em vista que cada organismo reage de uma maneira a certos procedimentos e tratamentos, e que embora previsíveis, não tem qualquer relação de causa e efeito com a atuação do médico, atuação lícita, porém o paciente deve ser informado das possíveis consequências; e, ainda, pode decorrer da omissão de informações do pelo paciente, ocorrendo resultados danosos, estes não podem ser atribuídos ao médico[9].

Ainda, de acordo com entendimento expressado pelo CDC, não havendo defeito no serviço não haverá dever de reparação, o defeito no serviço advém do dever de segurança que o fornecedor detém, devendo zelar pela vida, saúde e propriedade do consumidor. Serviço defeituoso é aquele que não oferece a segurança que dele se podia esperar, levando em consideração o modo de seu fornecimento, a época do fornecimento e principalmente os resultados e riscos que razoavelmente se espera.

A atividade médica é uma atividade de riscos, há vários riscos que são esperados e previsíveis, desde que devidamente comunicados ao consumidor, estes riscos inerentes não são tidos como defeito no serviço, pois em sua maioria estes danos oriundos de riscos inerentes são danos iatrogênicos, ou seja, são danos advindos de uma conduta lícita dos profissionais, pois estão exercendo regularmente seu direito de realizar sua atividade profissional.

Portanto, riscos inerentes não são defeitos no serviço. Assim como danos advindos de condutas não culposa do profissional, para se falar em defeito no serviço da atividade médica é necessária que o dano seja causado por culpa do médico, não havendo culpa não há defeito, não havendo responsabilização.

2.2 Fato da técnica

Elias Kallas Filho, cita brilhantemente o fato da técnica como um dos motivos de isenção da responsabilidade médica. Esta excludente desqualifica o elemento culpa, ensejador da responsabilidade civil destes profissionais.

A caracterização desta excludente depende, portanto, da inevitabilidade do dano, mas não necessariamente de sua imprevisibilidade, ou seja, excluirá a responsabilidade do médico quando verificada que a técnica utilizada, embora predominantemente benéfica, aprovada pela comunidade cientifica e corretamente executada, ocasionou dano ao paciente. Trata-se portanto, da concretização de um potencial danoso inerente a determinada técnica. Este dano proveniente do fato da técnica só poderia ser evitado ou minorado com a evolução da própria ciência.[10]

Para o autor "o fato da técnica corresponde, portanto, à concretização do potencial danoso inerente a determinada atividade médica[11]".

Esta excludente deve ser aplicável à responsabilidade civil, uma vez que se tem ocorrido em sentido oposto pelos tribunais, responsabilizando médicos, por riscos inerentes a atividade médica, devido a influências de expedientes de objetivação de sua responsabilidade civil. Ora, estes danos decorrem de riscos próprios aos procedimentos, ainda que executados de acordo com a lex artis e com prudência e diligência exigíveis, afastando, assim, a culpa dos profissionais.

3 As dificuldades dos médicos nas demandas atuais

Ainda não conseguimos lograr êxito em promover a eficácia da responsabilidade civil, o entusiasmo de se proteger os pacientes hipossuficientes a qualquer preço, apresentando institutos contra o corporativismo médico como a gratuidade de justiça não comprovada, inversão do ônus da prova como obrigação do médico pagar a prova pericial e oferecendo maiores fomentos aos pedidos de danos morais infundados. Todos estes institutos colocam o médico em situação extremamente desfavorável ao exercício de seu mister, colocando o médico em condição desigual e confrontando com direitos fundamentais, como, o direito à dignidade humana e o direito da presunção de inocência.

O grande aumento de processos contra esses profissionais reflete a política protecionista dada aos consumidores que fomenta a indústria do dano sem fundamento. Porém, com o advento do Código Civil Brasileiro o ordenamento jurídico inovou trazendo como fundamentos basilares a eticidade e a boa-fé, devendo a jurisprudência romper seus compromissos antigos e viciados de promover leis paternalistas, aplicando os recursos que o CC/02 oferece aos julgadores para coibir excessos, e principalmente se preocupando com a dignidade, nome, intimidade e honra destes profissionais por vezes injustiçados.

Sendo assim, iremos primeiramente elencar institutos utilizados pela jurisprudência e doutrina desvirtuados da realidade atual, pois promovem apenas a proteção do consumidor sem se atentar para o Princípio da Igualdade e Eticidade e contrariando a própria Constituição, e o direito fundamental da dignidade da pessoa humana, ampla defesa, igualdade e contraditório.

3.1 Relação médico e paciente e a relação de consumo        

A relação médico e paciente não poderia ser elencada como relação de consumo. O CC/02, tipificou expressamente a responsabilidade destes profissionais, o CDC apesar de ser lei especial não se aplica a esta relação. A responsabilidade médica é subjetiva, e sua obrigação é de meio, não podendo se vincular a um resultado, não sendo então compatível com o CDC, que se baseia em responsabilidade objetiva e obrigações de resultado.

Conforme Resolução do Conselho Federal de Medicina que define o Código de Ética Médica n. 1931/2009 a relação é personalíssima. A referida resolução tipifica que a medicina não pode ser exercida como comércio, e não há em nenhum outro documento legal tipificando esta relação como de consumo. As resoluções são atos normativos que advém de uma autarquia federal com competência para edição de atos normativos para fiel execução das leis, possuindo hierarquicamente equivalência a lei, sempre que venha a complementar lacunas legais, e desde que não contrarie as leis.

O CDC define serviço como qualquer atividade fornecida no mercado de consumo mediante remuneração, ora, mas o objeto da prestação médica (saúde, vida, integridade física e moral) são bens não consumíveis.

Mesmo que se aplique o CDC deve ser feito com a devida cautela, pois não se trata de uma relação de consumo típica, pois o objeto do serviço são bens inalienáveis, sendo uma prestação de serviço "sui generis". Ao aplicar o CDC à relação médico paciente imprime-se a ela uma prestação de um serviço preciso e exato, como comparar a relação médico e paciente, com a venda de um rádio ou televisão, sendo que o objeto desta relação é um objeto impreciso e por vezes desconhecido. Ora, o CDC construiu um sistema voltado a responsabilidade objetiva, visando alcançar os fornecedores de serviço em massa, buscando o equilíbrio entre as partes, nestes casos o consumidor é claramente vulnerável, diferentemente da relação entre médico e paciente, em que o médico é um profissional liberal, pessoa física, sem tamanho poder econômico como os fornecedores do mercado de consumo.

O CDC foi pensado para fornecedores que contam com o que chamamos de justiça distributiva, que fundamenta a responsabilidade objetiva pelo proveito de sua atividade e  pelo poder de repassar/ redistribuir por toda cadeia de fornecimento o que eventualmente vier a indenizar o consumidor, ora, é notório que o médico não goza desta vantagem e prerrogativa, pois não possui mecanismos e estrutura que permita a dedução do ônus econômico e financeiro como os grandes fornecedores.

O ilustre doutrinador Eduardo Nunes de Souza declara:

“Com efeito, a transposição da lógica consumerista para a relação estritamente pessoal que caracteriza o vínculo entre cliente e profissional liberal exige cautela. Tal tendência vem ao encontro da crescente exarcebação das expectativas pendentes sobre a atuação do médico e dos profissionais liberais, como se fosse possível esperar o sucesso de seu trabalho na totalidade dos casos, ignorando-se a falibilidade natural de profissionais que podem contar exclusivamente com seu conhecimento científico, não dispondo de estrutura que permita a dissolução do ônus econômico dessa superresponsabilização no preço dos serviços por eles oferecidos.”[12]

O fundamento dessa superresponsabilização trazida pelo CDC não se coaduna com a atividade dos profissionais liberais. Não obstante, o elencado contra a responsabilidade civil do médico frente ao CDC, a jurisprudência continua colocando o médico como fornecedor de serviços, aplicando a relação o CDC de maneira geral e abstrata, ora, devemos nos atentar para as especificidades desta relação. O CDC prevê diversos institutos com o intuito de igualar a relação entre fornecedor e consumidor, visto que o consumidor está em situação desfavorável técnica e financeiramente, mas o paciente não é vulnerável nas mesmas condições de um consumidor, sendo, assim, a tutela estatal ao consumidor deve se ater ao caso concreto, em virtude dos princípios Constitucionais da Igualdade, Presunção de Inocência e Dignidade da Pessoa Humana. Porém não é o que acontece na jurisprudência atual, sendo aplicável todos os institutos previstos no código consumerista de maneira abstrata à relação médico e paciente, como o instituto da inversão do ônus da prova, tipificado no artigo 6, inciso VIII do CDC.

Para Eduardo Dantas e Marcos Coltri, a aplicabilidade do CDC à relação médico e paciente, ocorre para preencher um vazio legal, uma vez que não há lei especifica nos moldes do que ocorre com os advogados, portanto, deveria ser aprovada lei semelhante, devolvendo à medicina um regramento próprio, que venha a ser distinto do definido pelo CDC[13].

3.2 A inversão do ônus da prova e o ônus financeiro para provar sua inocência

Prova é o elemento que contribui para a formação da convicção do julgador, via de regra, aplica-se o art. 333, do Código de Processo Civil, em que prevê que caberá o ônus da prova ao autor dos fatos constitutivos de seus direito, e ao réu caberá o ônus de provar fatos modificativos, extintivos ou impeditivos do direito do autor.

O CDC  para facilitar o acesso à justiça e equilibrar a relação, estabelece que mediante requerimento do autor ou de ofício pelo juiz, este poderá inverter o ônus da prova, se comprovado os requisitos de verossimilhança das alegações do autor, e/ ou, hipossuficiência do consumidor. Ora, diante da aplicação do CDC às relações médicos e pacientes, é comum que os magistrados concedam aos pacientes tal instituto, com a concessão há um sério agravamento da responsabilidade médica, pois regra geral, caberia ao paciente demonstrar a conduta culposa do médico, o nexo causal e o dano, mas com a inversão a culpa do médico será presumida, pois caberá apenas ao médico provar que não houve culpa.

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Para Miguel Kfouri Neto, a inversão do ônus da prova contra os médicos é ilegal, pois estaria equiparando a responsabilidade em objetiva, pois o art.14, p.4, CDC é expresso ao tipificar que a responsabilidade de profissionais liberais será apurada mediante verificação de culpa. A ressalva é expressa, por isso não se coaduna tal inversão aos profissionais liberais.[14]

As causas médicas em sua maioria irão demandar como prova o laudo de perito nomeado pelo juiz. E o ônus financeiro da perícia? Em regra a perícia é onerosa, e paga pelo sucumbente, mas há vezes em que é necessário antecipar o pagamento do perito. Portanto, o honorário caberá a quem requereu o exame ou pelo autor quando requerido por ambas as partes ou pelo juiz, se não houver o pagamento a pericia restará prejudicada. Para jurisprudência a inversão do ônus da prova não se confunde com o ônus financeiro desta, pois a exceção trazida no CDC trata apenas do ônus subjetivo da prova, art. 333 do CPC, e não das normas do art. 19 e seguintes do CPC, que tratam do ônus financeiro para produção de atos processuais. Porém de acordo com entendimento jurisprudencial (STJ Resp 402.399-RJ) a parte ré poderá sofrer as consequências decorrentes da não produção destas provas no caso de antecipação de pagamento dos honorários periciais[15].

Sendo assim, resta claro, mais uma desvantagem inserida pela jurisprudência aos médicos, pois com a inversão do ônus da prova o laudo pericial mostra essencial para demonstrar que sua conduta foi correta, em acordo com a lex artis e não culposa.

3.3 Obrigação de resultado

Outro entendimento inserido pela doutrina e jurisprudência que deixa o médico em extrema desvantagem é a classificação de algumas especialidades como obrigação de resultado, como as cirurgias plásticas estéticas, anestesias, análises clínicas e etc.

Conforme brilhante ensinamento de RUY ROSADO o acerto está aos que atribuem a obrigação como de meios, pois a álea está presente em toda a intervenção cirúrgica, e imprevisível são as reações de cada organismo à agressão do ato cirúrgico. Mesmo que por ventura um cirurgião plástico venha a assegurar um resultado, isso não define a natureza de sua obrigação, não altera sua categoria jurídica, que continua sempre a prestação de um serviço que traz consigo riscos, para o autor, na verdade deveríamos examinar nestes casos apenas com mais rigor a culpa.[16]

Entender que a obrigação do médico seria de resultado, é julgá-lo como Deus, ora, responsabilizar um médico pelas reações orgânicas de um corpo humano é extremar sua responsabilidade, ignorando a falibilidade da própria medicina e do próprio profissional que pode contar exclusivamente com seu conhecimento técnico. Sendo, ainda, uma afronta ao próprio diploma do CDC, que determina que a responsabilidade do profissional liberal será apurada mediante verificação de culpa.

Todas as falhas e imperfeições devem ser aferidas com base na isonomia e dignidade da pessoa humana, a culpa presumida não se coaduna com a proteção à dignidade da pessoa humana do profissional liberal, pois reduz suas chances de defesa na lide, além do mais, a inversão do ônus da prova não pode ser automática. Sendo tal instituto descabido e ilegal frente as demandas entre médicos e pacientes.

Como mencionado por Antônio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira Souza, ao citarem Celso Antônio Bandeira de Melo, elucidando o tema sobre a perspectiva principialista, cita ser de crucial importância que na responsabilidade civil médica, diante da análise de um caso concreto, seja norteada não pela teoria do risco, não pelo CDC, não por dogmas doutrinários como a culpa presumida no caso das obrigações de resultado, mas pelos princípios Constitucionais.[17]

 Para os autores, devemos interpretar os institutos e leis em acordo com o Princípio norteador do direito, qual seja, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, devemos nos preocupar não só com a dignidade do consumidor/paciente, mas também com a dignidade do médico. A utilização adequada de princípios constitucionais como dignidade da pessoa humana, igualdade, ampla defesa, contraditório e etc, em detrimento da letra fria da lei infraconstitucional faz com que o estado juiz distribua a dignidade não só ao paciente, mas também do profissional médico sujeito de direitos, ora, responsabilizar o médico por questões que estão de alguma forma fora de seu controle agride sua dignidade humana e demais princípios constitucionais[18].

3.4 A teoria da perda de uma chance

Teoria é utilizada pela jurisprudência e doutrina. Para esta teoria, quando não é possível afirmar que o dano se deve a um ato ou omissão do médico, supõe que o prejuízo consiste na perda de uma possibilidade de chance ou de cura, mitigando o nexo causal.

Para a teoria a conduta do agente faz a vítima perder a chance de cura, via de regra, a conduta é omissa, e já está em curso o processo causal que conduz ao evento danoso, porém o omitente deixa de interromper, quando tinha esse dever jurídico, gerando assim o dever de reparar. A chance adquire o status de bem jurídico autônomo. Havendo a mitigação do nexo causal em desfavor do médico.

A teoria é estudada e aplicada pelos franceses, ora, a França vive em outros tempos, e está segundo a OMS em primeiro lugar na saúde, não há CDC e suas garantias protecionistas, não há gratuidade da justiça para quem não comprova necessidade e nem mesmo responsabilidade objetiva, institutos estes, que abarcam e propiciam uma avalanche de processos, não havendo graus comparativos. Na França há peculiaridades internas e lançam mão de recursos éticos, como esta teoria para diminuir as chances de corporativismo acentuado, a teoria é aceita em decorrência das peculiaridades que cercam os processos neste país, que é completamente diferente das peculiaridades encontradas no Brasil. No Brasil temos nosso ordenamento, ora, é ilegal e inconstitucional importar teorias que nasceram de experiências internas de uma nação completamente diferente da nossa. O CDC e o CC/02 já oferecem subsídios aos julgadores brasileiros, para implementarem institutos que possibilitam o juiz a chegar a provas difíceis dessa relação, e evitar o corporativismo danoso, como a inversão do ônus da prova, além de permitir que o julgador não fique adstrito ao laudo pericial[19].

A Teoria foi criada pelos franceses, e representa uma verdadeira antítese do que fora estudado até aqui sobre a responsabilidade médica. Os fundamentos teóricos da perda de uma chance são contraditórios e ferem o ordenamento jurídico pátrio. Já há fortes recursos protetivos na relação de consumo, perdendo força a teoria dos europeus, pois não se coadunam com a realidade brasileira.

Como ressalta ANTÔNIO FERREIRA COUTO E ALEX PEREIRA SOUZA

“Diante das leis brasileiras, em especial o Código Civil Brasileiro, os julgadores no papel de Estado- Juiz, estão aprisionados nas questões ético-brasileiras, por isso a inadequação do direito comparado, pois se por um lado, para gerar nossas legislações internas, ele se torna fonte de consulta segura e indispensável, por outro lado, uma vez definidas as nossas regras éticas, segundo nossas condições sociais, culturais, antropológicas e até fisiológicas, teremos que dispensar essa comparação, pois não mais haverá grau de comparação entre os povos; aliás, nessa direção o papel principal passa a ser do direito consuetudinário interno, sob pena de estarmos exigindo comportamento ético de forma desajustada e curiosamente descomprometida com o nosso viver brasileiro”[20].

Para os autores essa cópia poderá gerar anomalia pois não se adéqua a realidade que vivemos no Brasil. Ora, é cruel e não razoável utilizar essa limitação trazida pela teoria como instrumento de presunção de existência de nexo causal ou de substituição do efetivo dano. A utilização dessa teoria retorna aos tempos antigos, quando o médico era punido quando não lograva êxito no tratamento, já que não se levava em consideração às limitações existentes e impostas na realização de um ato médico.[21]

Para os autores se esta teoria começar a ser utilizada muito provavelmente, em poucos anos, uma série de procedimentos não mais serão realizados, pois o risco de ocorrer complicações e lesão iatrogênicas é tão grande que será preferível deixar o doente padecer do seu mal até morrer, pois irão responder por questões que estão fora de seu controle, em razão da limitação da própria ciência[22]. A grande preocupação é o alto preço que a saúde da população brasileira pagará pela adoção desta teoria, por usar ferramentas desiguais para atacar médicos éticos, pois o medo de processo levará a classe a fugir de procedimentos e tratamentos de alto risco, como hoje já acontece nos EUA.

3.5 Os danos punitivos

Outro instituto que vem sendo aplicado em nossos tribunais, é o dano punitivo, ou seja, um plus na indenização a título de pena cível.  Vale ressaltar, que o CC/02 é expresso ao tipificar que a indenização se mede pela extensão do dano, não havendo previsão legislativa para tal instituto, e seu fundamento que seria a reprovabilidade/ sanção ao agente já está intrínseco nos danos morais e matérias, sendo um "bis in idem" e usurpação da função do direito penal.

O autor KFOURI é contra o plus na indenização suportada pelos médicos pois para ele não há que se falar em função punitiva na responsabilidade médica, pois em nenhum momento o médico pretende causar danos ao paciente. O médico procurará sempre não reincidir naquela conduta, sendo desnecessário aplicar a ele a função pedagógica. Ora, tal plus teria apenas valia em coibir grandes empresas, que não se preocupam com a indenização por danos pois, para elas ainda é favorável financeiramente arcar com as indenizações.[23]

3.6 A justiça gratuita

Os mecanismos adotados para proteção do consumidor e o instituto da justiça gratuita, que é tipificado pela Lei 1060 de 1950, devem ser vistos com extrema cautela nestas lides.

A gratuidade da justiça foi estabelecida pela Lei 1060/50, porém antigamente os interessados tinham que requerer o atestado de pobreza junto a delegacia policial, tal prática, já servia como um verdadeiro filtro para coibir abusos. Porém, agora, basta a afirmação para fazer jus ao instituto, lesando a Constituição Federal de 1988, que tipifica ser necessária a comprovação. Em protecionismo flagrante do judiciário o entendimento prevalecente é que basta apenas a afirmação que não pode arcar com as custas judiciais sem prejuízo ao sustento próprio ou de sua família. Para os tribunais não se faz necessário provas da hipossuficiência financeira da parte que requerer o benefício. Com a declaração a hipossuficiência é presumida, cabendo a prova do contrário a outra parte, prova que por vezes se demonstra impossível.

Não houve ainda legislação após a CF para regulamentar o tema, sendo utilizada lei de 1950, que no entendimento de vários doutrinadores não foi recepcionada pela CF. A norma constitucional é clara ao dizer que deve haver prova, devendo, assim, o poder legislativo regulamentar tal norma constitucional com efetivos elementos e requisitos para garantir a gratuidade a quem realmente faça jus.

É notório que esse instituto aplicado nos moldes atuais, fomenta uma indústria do dano leviana em que seus percussores estão em busca de ganho fácil, alguns podem dizer que esse pensar seria menor, mas a realidade brasileira, demonstra claramente essa utilização, Miguel Kfouri em seu livro, traz a afirmação que 80% dos casos envolvendo médicos são julgados improcedentes. Portanto esses rigorosos institutos aplicados na responsabilidade civil médica demonstram que é excessiva a desvantagem na aferição de supostos erros médicos em detrimento dos profissional que necessitam ter sua dignidade auferida como o mesmo rigor, garantido pela Constituição.[24]

4 A indústria das demandas contra médicos

Muitos doutrinadores elencam várias causas para justificar o aumento de demandas contra os médicos, como descrito a seguir.

4.1 Fatores /causas justificantes do aumento

A atividade médica passou por uma grande evolução, deixou de ser um sacerdócio, magia, sendo referida por Hipócrates como ciência, medicina clínica, voltando a atenção dos médicos não para os deuses mas sim para o paciente. Após, tivemos a figura dos médicos da família, o de confiança, que o paciente entregava a ele sua vida, sendo uma relação unilateral e vertical, pois a palavra era sempre do médico, não havia discussão. Com a evolução dos direitos civis, como o direito a autonomia e liberdade, e, com a evolução dos Princípios Bioéticos, a autonomia do paciente ganhou grande destaque, tornando a relação bilateral, tendo o paciente voz ativa nas decisões sobre sua saúde, sendo ouvido e podendo até mesmo recusar tratamentos.

A autonomia do paciente pode ser tido como fator de aumento das demandas, pois com o paciente com voz ativa nas decisões pode acabar entrando em choque com o médico, a relação passa a ser dual, não havendo mais o médico da família/ relação de subordinação, sem discussão sobre o método e tratamento empregado pelo médico.

O médico de família/ Clínico Geral também perdeu destaque com a evolução da medicina e com o aumento das especialidades médicas, com a crescente dependência da medicina à tecnologias complexas, acelerou-se a tendência para a especialização e reforçou a propensão de cada médico tratar apenas partes especificas do corpo, tornando a relação médico paciente cada vez mais impessoal e distante.

Ainda, temos como fatores do aumento de demandas, a medicina altamente invasiva, porém mais eficaz. Com a tecnologia e os avanços científicos a medicina deixou de se limitar apenas a diminuir sofrimentos (menos eficaz e menos invasiva). Hoje os procedimentos sem dúvida são mais eficazes e não apenas buscam diminuir o sofrimento, ao contrário. A evolução cientifica tornou a medicina mais invasiva decorrendo, assim, maiores riscos. Os avanços trazem beneficio para toda a comunidade, mas em contrapartida traz consigo maiores riscos, por isso autores como Genival Veloso França defende a socialização do risco médico[25].

A vida social passou a ser abalada pelos modernos recursos tecnológicos, e com isso muitos riscos foram aparecendo, porém, todo aquele que se beneficia com a atividade, deve assumir a responsabilidade sobre ele, ora, a evolução da medicina e da ciência trouxeram benefícios para toda a coletividade, todos os seres humanos são beneficiados com tamanha evolução das ciências médicas. Para GENIVAL VELOSO FRANÇA, "A medicina é a profissão que mais absorve os impactos das novas concepções sociais".[26]

Há, ainda, nos dias atuais gritante a ação de marketing contra a imagem do médico, organizada em bases cada vez mais sólidas, para implementação no Brasil dos chamados "seguros de responsabilidade civil", à semelhança do que ocorre nos Estados Unidos da América[27]. Seguros estes que não se coadunam com a realidade da saúde em nosso país, e que trariam uma medicina mais cara e menos eficaz. Mas que fomentam a imprensa e a imaginação de pacientes em busca de reparação por erros médicos, com críticas e comentários, na maioria das vezes incompetentes devido ao precário conhecimento do assunto e o pré-conceito que hoje cerca esta relação.

Outro mecanismo importante que fundamenta este aumento é a mercantilização do dano moral e seu caráter mercenário. O ilustre autor Anderson Scheiber, cita que as normas sobre responsabilidade civil não acompanham as lides e aflições sociais, ora, várias violações de direitos extrapatrimoniais são solucionadas por uma lógica patrimonial e mercantilista, ou seja, houve com a Constituição abertura para se ressarcir o dano moral, porém com a mesma resposta tradicional do dano material, sendo o conteúdo estritamente patrimonial.[28]

Ainda, acrescenta que há uma inércia da comunidade e de seus legisladores em oferecer a estas vitimas de danos morais solução diferente de uma soma em dinheiro. Estimulando, assim, o sentimento mercenário. Para o autor, a redução de uma lesão extrapatrimonial em um quantia monetária é instrumento de mercantilização que tenta quantificar o que é inquantificável. Há outras formas de compensar um dano extrapatrimonial que não o dinheiro, há formas até mais eficazes para sancionar o agente ofensor. [29]

Neste estudo elencamos como fatores preponderantes, a facilidade do acesso ao judiciário, o próprio sistema jurídico criou um novo modelo de demandante, aquele que se utiliza dos institutos e proteções dadas pelo judiciário para demandar levianamente. O principal instituto fomentador desse novo modelo de autor é a justiça gratuita sem comprovação. O judiciário é visto como uma forma de auferir vantagens facilmente, e infelizmente, não há problema de demandar levianamente, pois não terá ônus mesmo se sucumbente. Assim, como, a aplicação irrestrita e abstrata do CDC em desfavor do médico, como a inversão do ônus da prova, o foro do domicílio do consumidor e demais institutos. Estes institutos facilitam o processamento do autor leviano em sua aventura jurídica.

5 A real vítima

Segundo MARCOS VINICIUS COLTRI a cada 4 médicos processados, 3 deles são processados injustamente, em verdadeiras aventuras jurídicas. Porém o resultado favorável na demanda não significa exatamente um ganho para o profissional, pois na prática 3 em cada 4 médicos processados pagam para provar sua inocência, pagam em média 25 mil reais, sem poder reaver a quantia gasta no processo, isso porque, a maioria esmagadora dos pacientes são protegidos pelos benefícios da justiça gratuita.[30]

O cenário para os profissionais da medicina não é dos melhores, os pacientes que se dizem vítimas de erros médicos percebendo a facilidade de qualquer aborrecimento se transformar em quantia monetária a título de indenização, embarcam na aventura jurídica possibilitada pelo próprio sistema, surgindo uma verdadeira epidemia de ações de indenização, violando a real intenção da garantia do acesso ao judiciário.

Alex Pereira e Antônio Couto citam Miguel Kfouri, que em seu livro Culpa Médica e o ônus da prova, informa que 80% (oitenta por cento) das ações contra médicos são julgadas improcedentes, afirmando que o entusiasmo em proteger o paciente oferecendo fomentos imensuráveis para pedidos infundados de danos morais, gerou a realidade cruel de que em 100% dos processos o médico foi réu, muitas vezes em condições desiguais e no mais alto confronto com o maior dos direitos fundamentais do cidadão brasileiro, qual seja, a dignidade da pessoa humana[31].

Com estas porcentagens é fácil chegar a conclusão de que o médico é hoje a real vítima de nosso sistema jurídico e de nossa jurisprudência. Infelizmente a jurisprudência ainda se apega na máxima que o "justo deve pagar pelo pecador", e em nome do acesso à justiça, concedem a gratuidade de justiça independente de comprovação, em flagrante desrespeito à CF e a aplicam de forma irrestrita os institutos do CDC. Estes institutos aplicados pela jurisprudência e citados pela doutrina, colocam o médico em extrema desvantagem processual e material, colocando o médico em condição desigual.

A indústria do dano contra médico, não atinge apenas a esfera patrimonial do médico, que ao contrário dos demais fornecedores de serviço, não conta com vultuoso poder econômico e nem mesmo com a justiça distributiva, ora, colocar sobre o médico o encargo financeiro de uma demanda infundada, é uma flagrante lesão a seus direitos fundamentais como a dignidade da pessoa humana, presunção de inocência, direito à vida, à intimidade ao patrimônio e etc. E como a maioria dos demandantes conta com a justiça gratuita o médico mesmo que ao final seja tido como inocente não conseguirá reaver a quantia gasta. Ora, não é justo e nem digno que o médico arque com tamanho ônus.

Portanto, merecem e devem ser relidos os institutos flagrantemente protecionistas adotados pelo judiciário, pois apesar de proteger uma classe, está diretamente lesando direitos fundamentais de outra, não merece mais destaque a máxima do justo pagar pelo pecador, haja visto, que a Constituição Federal tipifica expressamente como fundamento do estado brasileiro a Dignidade da Pessoa Humana.

Apesar de todo o desgaste financeiro estas demandas ainda trazem sérios prejuízos ao nome, honra, intimidade e etc. Em alguns casos os médicos são expostos pela imprensa sensacionalista em pré-suposições e pré-conceitos, tendo seu nome e sua fama, construído com anos de estudo jogados na lama. Além do constrangimento e da perda de clientes ao ser colocado como réu em uma ação por erro médico. Em uma pesquisa no "Google", o paciente ou futuro paciente tem em mãos livremente as informações judiciais de seu médico.

Com os institutos do CDC o médico ainda tem sua ampla defesa, contraditório e dignidade lesados, estes institutos acabam por dificultar sua defesa e sua prova de inocência em tempo hábil. Infelizmente, em sua maioria, os processos não são extintos em tempo hábil, ficando o médico a mercê de um pronunciamento jurisdicional por anos, tendo sua imagem devastada e marcada. Ora, é injusto e ilegal, que estas demandas infundadas, perpetradas por pacientes em busca de vantagens, traga tantos males a uma classe, e que fira seus direitos mais importantes.

Antes que a saúde brasileira entre em colapso, é necessário rever posicionamentos e pensamentos ultrapassados de protecionismo a qualquer custo. Ora, o CC/2002, inovou ao implementar maior responsabilidade ao Estado-Juiz, no exame e aplicação da eticidade e boa fé de todos os envolvidos no processo.

Cabendo ao judiciário desestimular as demandas infundadas de pacientes, protocoladas em verdadeiras aventuras judiciais, desprovidas de razão na tentativa de auferir vantagem financeira, rompendo com os institutos protecionistas. Tais demandas, lesam direitos dos médicos demandados, como gastos excessivos, perda de tempo, angústia, desgaste emocional e de sua reputação, devendo serem banidas e os autores responsabilizados pelo abuso de direito de demandar.[32]

Para Antônio Ferreira Couto Filho e Alex Pereira, esta indústria de danos devem ser sujeitos ao rigor da função social, da eticidade, da probidade e da boa-fé, sendo papel do judiciário inibir tais práticas, pois não há mais limites após o advento do CC/02 para que o Estado-Juiz alcance a busca da paz social.[33]

6 Conclusão

O aumento de demandas contra médicos tem como maior causa o cenário pós moderno em que vivemos, em que se busca o bem estar individualista e protecionista, em que não se vive mais por meritocracia e sim com o assistencialismo, a procura por dinheiro fácil está inserido até mesmo no cenário político brasileiro, como a implementação desvirtuada de políticas assistenciais, deixando os brasileiros em um estado imensa tranquilidade. O cenário de extremo intervencionismo estatal em busca de assegurar a todos os direitos sociais e individuais, acaba resvalando em outros ramos. Mas com o advento do CC/02 os princípios basilares de eticidade e boa-fé devem ser aplicados na busca de evitar o protecionismo exagerado e lesão a princípios constitucionais.

No cenário atual é recomendável uma releitura desses institutos consumeristas e protecionistas levando-se em conta o princípio basilar de nosso sistema a Dignidade da Pessoa Humana, e buscando delimitar a atuação do Estado nas demandas, pois sua atuação se fundamenta apenas para restabelecer a igualdade, e não para transformar a relação em desigual, deflagrando uma extrema desvantagem para a outra parte.

Os ilustres autores Antônio Ferreira e Alex Pereira ao concluírem citam de maneira magistral o dilema e a questão atual que cerca a responsabilidade do médico,

“…na busca da verdade verdadeira, sempre sob o manto da ética que emana dos Princípios Constitucionais Brasileiros e trazê-los para a realidade única e completa dos autos, cuja maior preocupação e excelência é a sua individualidade. Pelo que gratuidades desmedidas e ao arrepio da constituição (falta de comprovação), inversão do ônus da prova no início da instrução processual, valor da causa manipulando para lesar o erário e desvinculado do pedido, exatamente para dar coragem aos trabalhadores da industria das indenizações e na banalização do Dano Moral, nos pedidos milionários, culpa presumida entre questões que envolvam somente pessoas humanas, servem para mascarar o feito e afastar o Julgador do rastro e do cheiro de justiça, beneficiando infratores, oportunistas da primeira e da última hora, aventureiros e trabalhadores da industria do dano.”[34]

Os julgadores devem se atentar para os princípios Constitucionais como a Dignidade da Pessoa Humana dos profissionais, que são colocados como réus em demandas infundadas, trazendo consequências desastrosas não só para o médico mas para todo o sistema de saúde brasileiro.

Para os autores, ainda, temos que nos despedir de teorias alienígenas, presunções, cargas probatórias dinâmicas, por serem úteis, mas funcionam como verdadeiros antibióticos jurídicos, arrasando organismos inteiros com os nefastos efeitos colaterais.[35]

Sendo necessária a implementação pelo do Poder Legislativo, de nova lei que regulamente a norma constitucional que garante a justiça gratuita desde que comprovada a hipossuficiência, determinando requisitos e limites para tal direito. A apresentação apenas de uma carta judicial não filtra e nem coíbe os abusos.

Além da releitura da aplicação irrestrita de direitos protecionistas pelos Poderes Legislativo e Judiciário, ainda, há necessidade de implementação de varas especializadas, contando com especialistas da classe médica para auxiliar os juízes, facilitando o entendimento dos julgadores em momentos oportunos, como o indeferimento da petição em despacho liminar ou até mesmo em julgamento antecipado da lide, para evitar que demandas infundadas perpetuem em nosso sistema, pois o julgamento desse processo, após a instrução processual tem tornado o maior complicador da dignidade do médico brasileiro e contribuindo para prejudicar carreiras construídas com anos de estudo.

O próprio judiciário deve modificar seus procedimentos e posições, pois o que vemos é o médico sendo diferenciado por pré-suposições perpetradas por nós juristas leigos em medicina, onde foram criadas teorias de culpa presumida, e outras formas de direito descomprometido com a justiça, passando por cima de dogmas médicos, como os fortuitos, complicações e iatrogenias.[36]

Necessário, ainda, implementar punições severas para os autores destas aventuras judiciais. Estes abarcados pela má-fé e em busca de dinheiro fácil, utilizam o Poder Judiciário numa espécie de loteria jurídica, tentam uma descabida indenização, almejando ganho fácil, utilizando-se como ardil do direito à assistência judiciária gratuita. Estes processos abarrotam o poder judiciário de questões fadadas à improcedência, deixando-o ainda mais caótico e ineficaz.

Cabe salientar, que o direito de demandar não é absoluto, conforme ensinamento de PEDRO BAPTISTA MARTINS, citado por RUI STOCO,

“O exercício da demanda não é um direito absoluto, pois que se acha, também, condicionado a um motivo legítimo. Quem recorre às vias judiciais deve ter um direito a reintegrar, um interesse legítimo a proteger, ou pelo menos, como se dá nas ações declaratórias, uma razão séria para invocar a tutela jurídica. Por isso, a parte que intenta ação vexatória incorre em responsabilidade, porque abusa de seu direito”[37]

Cabendo ao Estado-Juiz coibir o abuso da fruição da garantia de acesso à Justiça, reconhecendo a litigância de má-fé e o abuso do direito de ação. Indenizando o réu pelos danos morais e materiais sofridos. Ora, é esperado de todo cidadão ao exercer seu direito de acesso ao judiciário que exerça dentro dos limites da boa-fé, ética e finalidade social, ou seja, dentro dos padrões de prudência e diligência que teria inspirado um homem atento e diligente, sendo necessários fundamentos pertinentes, fáticos e jurídicos.

Estas práticas coibindo abusos, trariam alento à classe médica vítima desse tipo de demanda. Ora, de acordo com estudos 80% dos médicos processados são sentenciados como inocentes, a máxima que o justo paga pelo pecador, em nome do acesso a justiça, deve ser banida de nosso sistema, visto que a Constituição garante a todos a dignidade da pessoa humana e o CC/02 tipifica como fundamento a boa-fé e a eticidade em todas as relações jurídicas.

Os autores Antônio Ferreira Couto e Silva e Alex Pereira Souza, no livro instituições de Direito Médico após análise de estatísticas levantadas que de cada 10 médicos 8 são julgados inocentes, ressaltam brilhantemente que,

“seria forte mas não irreal afirmar que a paz social não poderá ser alcançada, vez que estamos protegendo o embuste, a improbidade e má-fé. O Estado-Juiz se coloca em verdadeiro "xeque-mate" e distribui a paz social apenando 8 (oito) justos para tentar punir 2 (dois) pecadores.”[38]

Com os levantamentos percebemos que apenas 2 em cada 10 autores tinham compromisso com a ética e a boa-fé. Estes levantamentos e estatísticas demonstram claramente o clamor pela releitura destes institutos e pelo aperfeiçoamento de julgadores frente a estas demandas. Sendo notório que o profissional médico merece e precisa de proteção à sua dignidade assim como o consumidor. Não devendo os julgadores ficarem a mercê da indústria do dano contra médicos.

 Referências
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Notas:
[1] GIOSTRI, Hildegard Taggesell. Responsabilidade Médica: as obrigações de meio e de resultado: avaliação, uso e adequação. Curitiba: Juruá, 2004.p. 138e ss.

[2] Ibidem. p.140.

[3] CAVALIERI FILHO, Sergio. op.cit. p.221.

[4] MIRAGEM, Bruno. Curso de direito do consumidor. São Paulo: RT, 2012. p.427-428.

[5] SOUZA, Eduardo Nunes de. Do erro à culpa na responsabilidade civil do médico. Revista Eletrônica de Direito Civil. a.2.n.2.2013. Disponível em < http://civilistica.com/wp-content/uploads/2013/10/Eduardo-Nunes-de-Souza-civ.a.2.n.2.20131.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2014.p. 16-23

[6] Ibidem. p.19-20

[7] CAVALIERI FILHO, Sergio. op.cit.p.443-444.

[8] AGUIAR DIAS, José de. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

[9] CARVALHO, José Carlos Maldonado de. Iatrogenia e Erro Médico sob o enfoque da Responsabilidade Civil. rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.46.

[10] KALLAS FILHO, Elias. O Fato da Técnica: Excludente da Responsabilidade Civil do Médico. R. Dir. sanit. São Paulo, v.14, n.2, p.137-151, jul./out.2013.

[11] Ibidem. p.137-151.

[12] SOUZA, Eduardo Nunes de. Do erro à culpa na responsabilidade civil do médico. Revista Eletrônica de Direito Civil. a.2.n.2.2013. Disponível em < http://civilistica.com/wp-content/uploads/2013/10/Eduardo-Nunes-de-Souza-civ.a.2.n.2.20131.pdf>. Acesso em: 03 de abril de 2014.p. 14.

[13] DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 2ed. Rio de Janeiro: GZ ed., 2010.

[14] KFOURI NETO, Miguel. Culpa Médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: RT, 2002. p.148-157

[15] STJ, REsp. 402. 399- RJ. 3 Turma, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJU de 18/5/2005. p. 304.

[16] AGUIAR JR., Ruy Rosado. Responsabilidade Civil do Médico. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 718, 1995. p.33 a 53.

[17] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010. p.41.

[18] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.p.37-49.

[19] Ibidem. p.60-73

[20] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. op.cit.p.55

[21] Ibidem. p.52

[22] ibidem. p.52

[23] KFOURI NETO, Miguel. Responsabilidade civil do médico. São Paulo: RT, 2003.p.51

[24] KFOURI NETO, Miguel. Culpa Médica e ônus da prova: presunções, perda de uma chance, cargas probatórias dinâmicas, inversão do ônus probatório e consentimento informado: responsabilidade civil em pediatria, responsabilidade civil em gineco-obstetrícia. São Paulo: RT, 2002. p.182.

[25] FRANÇA, Genival Veloso. op. cit. p.61

[26] FRANÇA, Genival Veloso. Comentários ao Código de Ética Médica. 6 ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2010. p.61.

[27] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010.p.17

[28] Schreiber, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil. 2ed. São Paulo: Atlas.2009. p. 186 e ss.

[29] Schreiber, Anderson. op. cit. p.186 e ss.

[30] COLTRI, Marcos Vinicius. O médico e o custo para provar sua inocência. Disponível em : <http://www.ducatri.com.br/diferencial/rcp.pdf>. Acesso em: 20 de agosto de 2014.

[31] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. op.cit.. p.2.

[32]COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. op.cit . p.63

[33] Ibidem. p.62

[34] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. op.cit.. p.120

[35] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. p.41 e ss.

[36]Ibidem. p.40 e ss.

[37] STOCO, Rui. Abuso do direito de estar em juízo. Direito de reparação por má-fé processual. Disponível em : < http://www.rkladvocacia.com/arquivos/artigos/art_srt_arquivo20100919165530.pdf>. Acesso em 10 de julho de 2014.

[38] COUTO FILHO, Antonio Ferreira; SOUZA, Alex Pereira. Instituições de Direito Médico. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2010. p.70


Informações Sobre o Autor

Amanda Martins de Castro Bernardes

Especilizanda em direito médico e da saúde pela Escola Superior Verbo Jurídico Curso de Especialização em Direito Médico; Pós-Graduada em Direito Público pela Universidade Cândido Mendes; Advogada, Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Belo Horizonte/MG- Brasil.


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