Resumo: O presente artigo busca desenvolver a temática de Lei em Santo Tomás de Aquino e Francisco Suárez. Desenvolveremos um estudo na Suma Teológica do Doutor Angélico e no De Legibus de Suárez. Nosso desejo é demonstrar a compatibilidade compreensiva da normativa legal em ambos pensadores, sobretudo em sua origem e em sua finalidade. Aqui encontraremos uma gênese meta jurídica e um fim escatológico. Visto que para ambos pensadores a Lei em sua origem e destino tem bases metafísicas. Em outro sentido, isto garante a observância da norma um elemento superior à mera força coercitiva.
Abstract: This article seeks to develop the theme of law in St. Thomas Aquinas and Francisco Suárez. We develop a study on the Summa Theologica of the Angelic Doctor and De Legibus of Suarez. Our desire is to demonstrate the compatibility of comprehensive legal regulations in both thinkers, particularly in their origin and purpose. We find a legal goal genesis and an eschatological end. We find that for both thinkers the law in its origin and orientation has metaphysical bases. In another sense, compliance with the law is ensured by a superior element than mere coercive force.
1 – Introdução
Nossa pesquisa nasceu do desejo de compreender o fundamento e a finalidade da lei segundo Santo Tomás de Aquino e Francisco Suárez.[1] Embora não esteja formalmente codificado, o Cânone 7 do código latino[2] impõe a pergunta sobre a conceituação da lei, que, ao longo do tempo e principalmente da tradição canônica, foi colhido na consistente proposta do Doutor Angélico e do Doutor Jesuíta.[3] Com o desejo de oferecer uma humilde contribuição à ciência jurídica, estudamos como nossos autores compreenderam em seus magistrais trabalhos a conceituação da lei,[4] ao mesmo tempo que, usando da Ratio e da Voluntas, ofertaram um importante estatuto jurídico que por si antecede a codificação e como meta transcende a transitoriedade terrena.[5]
Para colimar esse objetivo, na primeira parte, aprofundamos o tratado da lei de Santo Tomás de Aquino, especificamente na Sumae Theologicae I – II q. 90 a 108.[6] Na segunda parte, nosso esforço foi concentrado em Francisco Suárez e em sua interpretação da lei na obra De Legibus et Deo Legislatore.[7] Assim, na terceira parte de nossa tese foi possível analisar os dois grandes tratados e responder nossa pergunta inicial sobre o fundamento e a finalidade da lei no Aquinate e no Doutor Jesuíta.
De fato, verificamos que, desde a Antiguidade, são percebidos inúmeros costumes que espontaneamente assumidos vigoravam como normas das antigas civilizações.[8] Mais tarde, com o florescimento do saber racional e a retirada do mito fronte à natureza,[9] a humanidade presenciou o surgimento de normas diligentemente elaboradas que estabeleciam e regiam as atividades da criatura humana. Assim, na Grécia é o nomos (lei) que tem como característica essencial o fato de ser escrita.[10]
2 – Santo Tomás de Aquino
A derrocada da sociedade antiga representada pela desintegração do Império Romano e a ascensão do Cristianismo podem serem compreendidos como os acontecimentos mais significativos que se processaram na história da Europa Ocidental.[11] O largo período coberto pela Idade Média, marcado pela invasão e conquistas dos povos nórdicos e pela estruturação econômica e social das relações feudais, expressará uma cultura engendrada no pensamento grego, na tradição jurídica romana e na matriz teológica cristã. A Igreja no Ocidente é a principal herdeira e mantenedora desse patrimônio.[12]
Assim, o pensamento político greco-romano, por seu imaginário naturalístico, cívico e cósmico, distingue-se da transcendência, espiritualidade e ortodoxia do pensamento político medieval.[13] Ao enumerar alguns traços característicos desse pensamento, importa destacar três momentos significativos: a) a formação do cristianismo como doutrina política e o papel dos Padres da Igreja como canais de ligação entre o mundo clássico e a cultura da Idade Média; b) os aspectos da obra de Santo Tomás de Aquino que foram extremamente importantes na construção da filosofia política medieval e c) o período de transição política e o processo de secularização do poder estatal.[14]
Durante a Idade Média, na Europa Ocidental, os cristãos nutriam uma concepção comum de mundo: as formas de saber estavam expostas nas Sagradas Escrituras e nos ensinamentos dos Padres da Igreja.[15] Tanto a filosofia política quanto as outras áreas da cultura e do conhecimento científico se entrelaçavam com a teologia.[16] Porém, é errôneo considerar que por isso a herança da Antiguidade clássica havia sido abandonada. Há nesse tempo um consistente esforço dos grandes pensadores cristãos em entender e adaptar os escritos de Platão, Aristóteles, Sêneca, Cícero, Plotino e outros.[17]
O apogeu cultural da Baixa Idade Média se efetiva no século XIII, período que corresponde ao enfraquecimento da nobreza feudal, ao crescimento da população, à expansão do comércio, ao desenvolvimento das cidades livres e das associações mercantis.[18] Em meio a tal ebulição societária, as grandes sínteses filosóficas e teológicas encontram sua gênese nas cátedras universitárias.[19]
Desse modo, a Escolástica medieval procurava colocar um fundamento filosófico sob todo o edifício da fé. Santo Tomás de Aquino, dominicano nascido na Itália, foi não só o nome mais expressivo desse período, como, sobretudo, um dos mais importantes pensadores do Ocidente.[20]
Após estudar com seu mestre Alberto Magno[21] e tornar-se professor de teologia em Paris, Santo Tomás de Aquino procurou realizar a grande síntese entre a Ratio e a Teologia.[22] Assim, por exemplo, diante do pensamento do Estagirita, Tomás de Aquino discorre sobre a natureza política do homem, sustentando uma teoria do Estado e do bem humano, forjando todo um tratado sobre a lei, analisado em nossa tese.[23]
O Aquinate rigorosamente estudou a Lei, observando nela a maneira pela qual Deus instruiu os homens.[24] Atribuindo a ela uma função pedagógica, dirige as ações boas, reservando a pena para as desvirtuadas. Com metódica ciência, nosso teólogo estudou os filósofos gregos, os juristas romanos e os pensadores cristãos que o precederam.[25]
Já de início, quando nos propomos a este estudo, nos deparamos com uma profunda articulação e admirável teoria do Estado e do Direito.[26] Acenando para o mérito da elaboração do Doutor Angélico, destacamos a valorização dada à Justiça legal e social, colocando-a num papel de excelência perante as outras virtudes, pois, na visão do Aquinate, a lei deve buscar sempre o bem comum.[27]
É importante lembrar que, para o Doutor Angélico, o nosso destino eterno não condiciona nossa vida terrena como simples meio em relação a um fim. Mas, diante de nossas atividades cotidianas, devemos buscar os fins próximos correspondentes a cada atividade em particular.[28] Todavia, a união desses fins particulares deve nos levar a um fim supremo.[29]
Assim, Santo Tomás de Aquino, articula uma filosofia política que aos poucos se clarifica sempre fundada em princípios que recorrem ao finalismo metafísico.[30] Alicerçado nas Sagradas Escrituras, incorpora um verdadeiro realismo à sua visão ética. Dentre tantas fontes, requisitadas por Santo Tomás de Aquino estão os escritos de Santo Isidoro, Graciano e, sem dúvida, Alberto Magno.[31]
Na construção do tratado da lei, mais precisamente na questão 90, existe uma definição moldada em quatro artigos. Santo Tomás de Aquino nos introduz de forma pedagógica, mostrando-nos a razão e o valor de cada elemento presente na sua concepção.[32] Para o Aquinate, a lei é racional, pois é através da Ratio que a lei ordena o homem para felicidade.[33] Essa felicidade é em conformidade com sua natureza, direcionando para a realização livre de seu fim particular.[34] Perante isso, podemos afirmar que, por causa do fim, a razão ordena os meios; é a razão que mede e regula, ela é a regra e a medida dos atos humanos.[35]
Com esses atos, o ser humano, por causa da sua liberdade, exige normas morais que o auxiliem na concretização da felicidade. Nesse caminho a Ratio assume papel de mediação, regulando e ditando leis para nossas ações. Contudo, o ordenamento da razão está sempre sujeito à primeira norma transcendente que é Deus.[36]
Assim, o justo será tudo o que conserva a felicidade inserida numa comunidade, abraçando todas as suas potencialidades e características. A lei só deve ser reconhecida e considerada quando ordenada para o bem comum.[37] Para sua realização plena, a lei positiva deverá ser conformada à lei natural.[38] A lei poderá certamente ser aplicada a fins particulares, todavia nunca poderá ferir o princípio comum, afinal, na elaboração da lei, o legislador deve ter em mente sempre a regra provinda da lei eterna.[39]
Ordenada para o bem comum, toda a comunidade tem a obrigação de assumir a norma estabelecida, pois a todos cabe a responsabilidade desse bem.[40] Perante a idéia falaciosa de uma liberdade sem limites, a ordenação ao bem comum surge como regra do agir societário.[41] Esse fato inerente ao próprio ser do homem irá significar que a busca pelo bem geral não significará um dano à autonomia individual, mas a realização de cada um em particular inserido no todo da sociedade.[42]
No aspecto das leis, que são regras extrínsecas da realidade humana, o Aquinate alerta para sua promulgação como segurança, não aceitando uma lei sem sua divulgação.[43] Santo Tomás evidencia que a promulgação é a maneira pela qual tomamos conhecimento de sua existência, sendo que, uma vez que conhecemos as regras, após a promulgação, temos o dever de segui-las.[44] Retoma, assim, a autoridade de Graciano,[45] que havia definido, em seus
escritos, a promulgação como parte integrante da lei.[46]
Dessa maneira, com as bases da razão,[47] promulgação[48] e do bem comum,[49] podemos colher a clássica definição tomista : Quaedam rationis ordinatio ad bonum comune, abe o que curam communitatis habet promulgata” (ordenação da razão para o bem comum, promulgada por quem cuida da comunidade).[50] Uma excelente definição que suporta em si os elementos da Filosofia do Direito. De fato, pois, ao dizer que é um comando da razão, revela a essência da lei como causa formal; ao dizer o bem comum, mostra-se o fim ao qual ela está ordenada, ou seja, a causa final; ao acrescentar autoridade responsável pela comunidade, aparece aqui a causa eficiente e, finalmente, exigir a promulgação faz encontrar os elementos da aplicação da lei.[51]
A formulação de Santo Tomás faz aparecer os elementos sobre os quais a tradição havia insistido: a ratio grega, o bonum commune do direito romano e o império da autoridade aberto à interpretação cristã.[52] Neste sentido a razão se exprime em ordenações normativas, orientando a vontade livre do homem.[53] A razão é, por assim dizer, a raiz da liberdade. Essa ordenação racional da lei deve visar sempre as exigências da articulação do bem em geral, contribuindo para a comunhão dos concidadãos na realização da justiça.[54]
3 – Francisco Suárez
O espaço histórico que separa o Aquinate de Francisco Suárez engloba, dentre outras coisas, o pensamento de Duns Scoto,[55] o desenvolvimento da Reforma protestante e a filosofia de Guilherme de Ockam.[56] Com seu nominalismo, Ockam abrirá as portas para uma concepção jurídica que prioriza o indivíduo sobre o coletivo, marcando as origens do voluntarismo.[57] Realiza a separação da fé e do conhecimento científico, sugerindo que a realidade, ainda que podendo ser cientificamente falsa, poderia ser teologicamente válida.[58]
Guilherme de Ockam supõe que Deus não se pode demonstrar através de meios científicos, sendo apenas uma questão de fé. Com isso, Ockam lança as sementes para a construção do contratualismo e para o jusnaturalismo antropocêntrico de Grotius,[59] Rousseau e Hobbes.[60] Porém, na fase renovatória da escolástica, o chamado século de ouro, encontramos a Escola Ibérica Renovada, com destaque para Francisco de Vitória, Domingo de Soto, Luiz de Molina, Juan de Mariana, Gabriel Vazquez e o Granadino Francisco Suárez.[61]
Francisco Suárez, jesuíta, filósofo e jurista, interpreta a lei como um ato de vontade, destacando-se como uma das principais figuras do jusnaturalismo e do direito internacional.[62] Tendo retomado os conceitos da Antiguidade grega e romana, é considerado como um dos precursores da ideia do pacto social, que mais tarde foi desenvolvido por Thomas Hobbes e John Locke e Rousseou[63] O Doutor Exímio fará também uma importante reformulação do conceito de soberania nacional, muito para além daquilo que os seus precursores haviam feito: definirá que o poder vem de Deus e é atribuido a toda a comunidade política.[64]
Dedicamos a segunda parte de nosso o estudo ao De Legibus de Suárez, verificando os conceitos da lei em geral; as relações entre moral e direito e entre o direito internacional e direito natural; os princípios fundamentais do ius gentium, considerando a origem do poder político, da obrigação política e da legitimidade da lei humana positiva; a interpretação, aplicação e revogação das leis; a sua teoria do direito eclesiástico e do direito penal; o seu entendimento a respeito da relação entre o Estado e a Igreja.[65]
Francisco Suárez se inclina mais pela interpretação de Santo Agostinho e de Cícero, que entendem a Lei como derivada de eleger.[66] A concepção eletiva, segundo Suárez, é mais
segura do que a definição tomista.[67] Julga que somente os seres racionais podem eleger e obrar livremente. A lei nesse sentido é algo próprio da natureza intelectual, que é, por sua vez, ato de vontade (Voluntas).[68] Francisco Suárez irá explorar justamente a ação operativa e obrigatória da lei. Considera que a lei move os que a ela estão sujeitos e age motivando ou proibindo. No pensar de Suárez, esse ato da lei é um próprio ato volitivo.[69]
Acrescenta, ainda, o Doutor Jesuíta, que a Lei como ato de vontade[70] deverá ser promulgada[71] com a devida prudência pela autoridade que rege a sociedade.[72] Essa lei deve ser um preceito justo.[73] É integrante da lei a razão que mensura e distingue, mas é a vontade, na concepção suareziana, que irá obrigar e operar a ação.[74] Com esses elementos, teremos a clássica definição da lei de Francisco Suárez: «Lex est commune praeceptum, justum ac stabile, sufficienter promulgatum» (A lei é um preceito comum, justo e estável, suficientemente promulgado).[75]
3 – Conclusão
Na terceira parte de nosso estudo, pudemos confrontar os dois tratados, tendo em evidência a Ratio de Santo Tomás de Aquino e a Voluntas do pensamento de Francisco Suárez.[76] Desde o início deixamos claro que nosso objetivo não era eleger uma concepção, sabendo que ambas, embora contextualmente diferentes, podem ser consideradas, no âmbito
da lei eclesiástica, complementares.[77] Nosso escopo se destina, claramente, em apresentar como Santo Tomás de Aquino e Francisco Suárez articularam o fundamento da lei e sua razão final.[78]
Foi possível compreender perante o realismo de Santo Tomás de Aquino e o pensar suareziano que em ambas concepções legislativas impera a noção teocêntrica do direito.[79] Isso significa dizer que Deus como criador (princípio) é também e necessariamente o ordenador (fim) de toda criação.[80] Assim, por exemplo, quanto ao fundamento da lei, Santo Tomás de Aquino dirá: «Lex aeterna nihil aliud est quan ratio divinae sapientiae, secundum quod este directiva monium actuum et motionum »[81] e, na mesma linha, sustenta Francisco Suárez: «legis aeternae. De causis autem eius non est quod dicamus, quia cum sit Deus ipse, nullam habet causam, sed ad summum potest habere rationem eo modo quo vel divina voluntas es ratio praecipua divina legis, ut posita est in Deo ex aeternitate»[82]
Quanto ao finalismo da lei, Santo Tomás de Aquino o entende como a condução dos homens a Deus, na visão beatífica: «Est autem ultimus finis humanae vitae felicitas vel beatitudo, ut supra habitum est. Unde oportet quod lex maxime respiciat ordinem qui est in beatitudinem.»[83] E também para Francisco Suárez, que considera o encontro com Deus como a razão final da lei, sustentando que a observância da lei justa é causa de Salvação: «Erit autem lex talis, si sit, iusta, quia observantia legis iustae, quantum est de se, proficit ad salutem »[84]
A Ratio, presente no tratado de Santo Tomás de Aquino, e a Voluntas, colhida nos escritos de Francisco Suárez, comportam, ainda que complementares no âmbito da lei eclesiástica, históricas diferenças.[85] Contudo, em ambos estudos é possível encontrar o estatuto ontológico necessário para sustentar a lei ordenada ao bem comum.[86] Bem comum que se fundamenta na razão e na vontade Divina e se ordena para a realização final da criatura humana.[87] Em outras palavras, a lei para Santo Tomás de Aquino e igualmente para Francisco Suárez tem seu fundamento na lei eterna que é o próprio Deus.[88] E em sua finalidade se ordena também para Deus,[89] regulando a realização suprema do homem, na consumação da sua existêcia, ou seja, a salvação das almas.[90]
Informações Sobre o Autor
Adriano Broleze
bacharelado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas 1998 bacharelado em Teologia pela Pontifícia Faculdade de Teologia N. Sra. Assunção 2002 Mestrado em Direito Canônico pela Pontifícia Universitas Lateranensi-Roma2008 e Doutorado em Direito pela Pontifícia Universitas Lateranensi -Roma2010. Presbitero na Arquidiocese de Campinas – SP. Tem estudos na área de Filosofia Filosofia do Direito História do Direito Etica Direito Canônico Direito Romano Antropologia e Bioética. Vigário Judicial Juiz Presidente do Tribunal Interdiocesano de Campinas e Professor na Puc – Campinas