A recente aprovação da Lei n. 12.690, de 19 de julho de 2012 cria, finalmente, um marco regulatório para as cooperativas de trabalho, talvez, abrindo um novo tempo para esse setor da economia solidária. A pretensão é a de que, através de tal regulação, se possa claramente demarcar as verdadeiras cooperativas das situações de fraude, que não merecem ser denominadas como trabalho cooperativo.
De fato, a existência das chamadas “fraude-cooperativas” representa, hoje, o principal fator de entrave do desenvolvimento do cooperativismo nas relações de trabalho. A erradicação das cooperativas “de fachada” é fundamental para que, separado o joio do trigo, o cooperativismo passa a ter o mesmo prestígio que goza em outros países e ocupe o espaço que lhe reserva a própria Constituição Federal.
O propósito explícito da nova normatividade é justamente o de “criar as condições jurídicas para proporcionar o adequado funcionamento das cooperativas, de maneira a melhorar a condição econômica e as condições gerais de trabalho de seus sócios” (Exposição de Motivos). Através da lei, cria-se um instrumento jurídico importante de afirmação dos princípios e valores do cooperativismo, pelos quais se evidencia a inteira compatibilidade das cooperativas de trabalho com a legislação trabalhista protetiva, bem como se rechaça a utilização das cooperativas de trabalho como meio de precarização laboral.
Certamente, no debate sobre a nova lei, renovam-se antigas polêmicas a respeito do tema, expressando certo preconceito com o cooperativismo tanto pela simples negação da possibilidade de existência de uma cooperativismo de trabalho[1] como pela inconveniência de que se regulamentem as cooperativas de trabalho, apresentadas como mero aspecto do quadro geral de precarização laboral que assola o mundo do trabalho.
Ainda é bastante cedo para afirmar o quanto a nova lei contribuirá para o aperfeiçoamento das relações de trabalho cooperativo, mas há de se saudar seu surgimento como um passo adiante no caminho certo, talvez gerando uma discussão mais profícua quanto às imensas possibilidades sociais e econômicas abertas pelo cooperativismo.
O cooperativismo como movimento de dimensão mundial
As cooperativas são sociedades de pessoas, de natureza civil, sem fins lucrativos, baseadas na ajuda mútua que, através da auto-organização dos próprios trabalhadores, exercem atividade econômica buscando a melhoria de suas condições econômicas e sociais.
O cooperativismo representa, hoje, um movimento mundial que agrega cerca de um bilhão de trabalhadores em mais de cem países, baseado nos valores da auto-ajuda, da responsabilidade pessoal, da democracia, da igualdade, da equidade, da solidariedade e de uma ética fundada na honestidade, transparência, responsabilidade social e interesse solidário. Em 2010, as 300 maiores cooperativas do mundo tiveram uma movimentação econômico-financeira de US$ 1,6 trilhão.[2] No Brasil, o número de cooperativados passou de 10 milhões em 2011, o que representa um crescimento de 11% em relação ao ano ,anterior, quando foram contabilizados cerca de 9 milhões. [3]
Internacionalmente, o movimento cooperativo se articula através da Aliança Cooperativa Internacional (ACI), entidade não-governamental, que reúne cooperativas de quase 90 países, representando aproximadamente 800 milhões de pessoas associadas. Pode-se afirmar que se trata da maior organização não-governamental do mundo.[4]
A Organização Internacional do Trabalho, em sua 90a Conferência (2002), adotou a Recomendação 193, em que se reconhece “a importância das cooperativas na criação de emprego, mobilização de recursos, geração de investimentos e de sua contribuição para a economia” e que elas, “em suas várias formas, promovem a mais plena participação no desenvolvimento econômico e social de todos os povos”.[5]
Em tal documento, definiu-se cooperativa como “associação autônoma de pessoas unidas voluntariamente para satisfazer suas necessidades e aspirações econômicas, sociais e culturais em comum através de uma propriedade conjunta e de gestão democrática”.[6] Conforme a OIT, a promoção das cooperativas, guiada por valores e princípios do movimento cooperativista, deveria ser considerada “um dos pilares do desenvolvimento econômico e social, nacional e internacional” e que os governos “deveriam estabelecer uma política e um marco jurídico favoráveis às cooperativas e compatíveis com sua natureza e função”.[7] Nesse sentido, as cooperativas deveriam beneficiar-se de condições legais e práticas não menos favoráveis às concedidas às empresas e outras organizações sociais. Além disso, as cooperativas deveriam ser apoiadas por políticas públicas, em especial em projetos de promoções do emprego e na redução de desigualdades regionais.[8]
A origem do cooperativismo no movimento de resistência dos trabalhadores.
As primeiras idéias cooperativistas, segundo alguns autores, inspiraram-se no pensamento socialista utópico de Robert Owen e Charles Fourier e no comunista de Karl Marx.
Embora muitos autores entendam que o cooperativismo tem raízes na antiguidade[9], as primeiras experiências do moderno cooperativismo se situam no início no século XIX, na França, Itália e Inglaterra.[10] Basicamente, tratou-se de um movimento urbano operário que buscava resistir à exploração e à deterioração das condições de vida dos trabalhadores que marcaram os primórdios da Revolução Industrial.
Já a matriz teórica do cooperativismo de trabalho parece se encontrar em Philippe Buchez e Louis Blanc, socialistas franceses da primeira metade do século XIX. Buchez idealizou um projeto em que grupos de trabalhadores realizariam a produção por sua conta, desfrutando dos benefícios reservados aos empresários particulares, eliminando a intermediação e adotando como princípios basilares a organização democrática e a distribuição dos excedentes em função do trabalho realizado por cada sócio. Blanc pensou tal projeto aplicado à grande indústria, configurando as chamadas “oficinas sociais”, com forte apoio público.[11]
Desde então, nesses 150 anos, o cooperativismo sempre baseou-se na idéia da solidariedade entre as pessoas e, através dela, tem logrado um notável crescimento tanto em países desenvolvidos como não-desenvolvidos, transformando o corporativismo numa das maiores forças sociais e econômicas a nível mundial.
O cooperativismo mundial tem princípios e valores que orientam as cooperativas em todo os países. Conforme a Declaração de Manchester[12], princípios que, em boa medida, repetem os mesmos ideais de Rochdale:
“a) princípio da adesão voluntária e aberta;
b) princípio do controle (gestão) democrática por parte dos associados;
c) princípio da participação econômica dos associados;
d) princípio da autonomia e da independência;
e) princípio da educação, formação e informação;
f) princípio da cooperação entre cooperativas;
g) princípio do interesse pela comunidade”.
Ressalte-se, entre tais princípios, os da “gestão democrática por parte do associado”, da “participação econômica dos associados” e da “autonomia e da independência”.
Em relação ao primeiro, diga-se que não existe cooperativa em que o associado não possa desempenhar plenamente seus direitos democráticos participativos. Tem-se como um desvirtuamento inaceitável do cooperativismo a transformação das cooperativas como se empresas fossem, passando a ter “donos” que passam a adotar todas as decisões relevantes, que são homologadas, sem real discussão, pela Assembléia-Geral da cooperativa. O princípio da gestão democrática exige que todas as decisões, especialmente as que deliberam pela adesão a contratos com repercussão econômica, seja adotadas por todos os sócios. Também não é possível a discriminação entre sócios, de forma que alguns tenham acesso a todas as informações e a direitos diferenciados, relegando-se os demais associados a condição de “sócios de segunda classe”. Finalmente, não é compatível com tal princípio a diferenciação remuneratória abusiva a criar graves distorções dentro do quadro social, em geral com diretores com remuneração privilegiada e que contrastam fortemente com a insuficiente remuneração dos demais sócios. Tais práticas que ferem gravemente os valores da igualdade e da solidariedade são fatores decisivos quando se trata de separar as verdadeiras cooperativas das cooperativas fraudulentas.
Já o princípio da participação econômica do associado tem um desenvolvimento no conceito de que, no real cooperativismo, em geral, as condições econômicas do cooperado são melhores do que a dos demais trabalhadores, sendo que uma cooperativa que não alcança tal suficiência econômica não está cumprindo o papel social que lhe cabe na melhoria da condições de vida de seus sócios. Assim, o associado tem direito a uma “remuneração pessoal diferenciada”, pela qual se confirma a adesão do trabalhador à cooperativa como um opção pela ascensão econômica – e não como uma submissão à uma atividade mal-remunerada por falta de melhores alternativas.
Por fim, não há verdadeira cooperativa se esta não é independente e autônoma, tanto em relação aos empresários, mas também em relação ao próprio governo. Nada mais afastado dos princípios do cooperativismo do que a criação de cooperativas de trabalho destituídas de autonomia e independência, muitas vezes a partir das empresas, numa transformação de setores inteiros do quadro de empregados em “associados cooperativados”, numa manobra em que se pretende apenas a redução de custos e que somente ao próprio empresário beneficia. Da mesma forma, não são reais cooperativas as que são formadas a partir da administração pública com o propósito encoberto de burlar as normas que vedam o ingresso sem concurso no serviço público, com manifesto propósito eleitoreiro.
As cooperativas são um patrimônio dos trabalhadores, expressam sua auto-organização democrática por melhores condições de vida e tem, na independência e autonomia, seus valores fundantes.
A base legal das cooperativas de trabalho
As primeiras leis sobre cooperativismo no Brasil datam de 1907 (Lei n. 1.637), sendo de se citar, ainda, o Decreto n. 22.239/32 (que conceitua a sociedade cooperativa como uma forma jurídica “sui generis”, entre as sociedades civil e comercial).
A principal regulamentação está contida na Lei n. 5.764/71, regulamentação que se aplica a cooperativas que tem por objeto “qualquer gênero de serviço, operação ou atividade”.[13]
A Constituição Federal de 1988 incluiu a autonomia das cooperativas no elenco dos direitos e garantias individuais previstos no Capítulo I (art. 5o, XVIII[14]), bem como, no Capitulo da Ordem Econômica e Financeira, expressamente determinou que as cooperativas gozem de “adequado tratamento tributário” (art. 146, III, “c”[15]) e que a lei apóie e estimule o cooperativismo (art. 174, parágrafo 2o[16]).
A nova lei se insere neste contexto de fomento e apoio ao cooperativismo indicado na Constituição Federal.
Conforme ALMEIDA[17], as cooperativas podem assumir as mais diversas atividades, como produção agrícola ou industrial, de beneficiamento de produtos, de compras em comum, de vendas em comum, de consumo, de abastecimento, de crédito, de seguros, habitacionais e de trabalho.
Entre os principais tipos de cooperativas podemos citar:
a) Cooperativas de produção agrícola ou industrial: os associados detém os meios de produção e se organizam de modo a realizar, de forma autogestionária, todas as etapas do processo produtivo, assumindo os riscos da atividade econômica e repartindo os resultados obtidos pela comercialização do produto realizado. Este tipo de cooperativa está expressamente previsto na nova lei, denominada como cooperativa de produção.
b) De consumo: destinam-se a ajuda a economia doméstica de seus associados, de forma que estes possam adquirir variados artigos de consumo, da forma mais direta possível, com melhor qualidade e melhor preço.
c) De crédito: objetivam propiciar crédito a seus associados em melhores condições de mercado;
d) Cooperativas de trabalho: são constituídas com o objetivo de viabilizar que seus associados tenham acesso ao trabalho, dispensando a intervenção de um patrão, podendo realizar obras, tarefas ou serviços públicos ou particular.”
Estas últimas são as que “agrupam trabalhadores de uma determinada profissão ou ofício ou de diferentes profissões que se propõem a colocar em comum as suas atividades produtivas ou profissões, com o objetivo de se auto-proporcionar ocupação estável, executar trabalhos ou funções, sem a intervenção de patrão ou empresário”.[18]
Conforme a nova lei, as cooperativas de trabalho podem ser de produção e de serviço. As cooperativas de trabalho “de produção”, por definição legal, são aquelas em que os associados contribuem, com seu trabalho, para produção de bens e a cooperativa detém, a qualquer título, os meios de produção. O exemplo típico parece ser o das cooperativas de coleta de material reciclável, onde os “meios de produção” estão à disposição da cooperativa e os associados contribuem com seu trabalho.
Já as cooperativas de trabalho “de serviço”[19] se organizam de modo a facilitar que os associados encontrem postos de trabalho, captando-os e distribuindo-os entre os cooperados, eliminando intermediários. Quando tais postos de trabalho encontram-se em determinada profissão específica, poderíamos enquadrá-las em um subgrupo (cooperativas profissionais). Quando tais postos de trabalho se encontram em varias atividades funcionais/profissionais, poderíamos enquadrá-la em outro subgrupo (“cooperativas multifuncionais). Em muitos casos, é através das cooperativa de trabalho “de serviço” que os trabalhadores se organizam como empreendimento econômico que passa a competir, no mercado, com as empresas prestadoras de serviço.
Este último grupo é o mais comum e, certamente, é o móvel da inovação regulatória do legislador. Por certo, tais cooperativas de serviço, ao se inserirem no mercado dos serviços terceirizados, são alvo de críticas de parte dos que censuram a terceirização. Porém, a admitir-se a inevitabilidade da terceirização no atual estágio das relações de trabalho, não parece coerente que se pretenda vedar o acesso das cooperativas de trabalho ao mercado das terceirizações, alijando justamente as entidades de economia solidária, o que somente beneficiaria as empresas de prestação de serviços.
O desvirtuamento do cooperativismo através da fraude
Se há uma constatação inequívoca a ser feita na análise da experiência das cooperativas de trabalho nos últimos anos é a de que proliferaram as cooperativas de trabalho fraudulentas, ou seja, aquelas que, a par de não melhorarem as condições de trabalho de seus associados (objetivo primordial das cooperativas), não passam de arapucas jurídicas para o estabelecimento de condições de trabalho bem inferiores as de um trabalhador celetista, mera externalização de riscos e custos empresariais.
Ademais, tais falsas cooperativas se organizam, em geral, de forma bastante afastada dos ideais de gestão democrática por parte dos sócios, não sendo exagerado dizer-se que, em muitas delas, os diretores tornam-se “donos” da cooperativa e seus principais beneficiários. Ainda pior: estas pseudo-cooperativas tornaram-se instrumentos de precarização do trabalho, a mercê de empresas inescrupulosas e de administradores públicos irresponsáveis.
Na prática, tal onda de falsas cooperativas de trabalho se formou a partir da modificação do art. 442 da CLT pela Lei n. 8.943/94, que introduziu um parágrafo único, no qual se explicita que não existe vínculo entre cooperativa e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviço.[20]
Na realidade, a inserção de tal disposição normativa era absolutamente desnecessária ante a clareza do art. 90 da Lei n. 5.764/71[21], sendo claro que este se aplica, evidentemente, apenas nos casos de verdadeiras cooperativas. Da mesma forma, a inexistência de vínculo entre trabalhador terceirizado e o tomador dos serviços é elemento estrutural da própria relação terceirizada, algo que, por óbvio, se aplica somente aos casos de terceirização lícita. Assim, a modificação normativa produzida pela alteração do art. 442 foi completamente desnecessária, já que apenas repetiu o que já estava contido em outros dispositivos legais.
Porém, apenas da inocuidade da norma, operou-se um efeito sociológico negativo, pelo qual passou-se a interpretar como se houvesse produzido uma autorização legal para a intermediação de mão-de-obra através das cooperativas de trabalho, em afronta direta às normas celetistas e a jurisprudência pacífica da Súmula 331, I do TST.
Em uma interpretação reducionista e assistemática, passou-se a entender tal modificação legislativa como uma salvaguarda de toda e qualquer relação de trabalho cooperativada dos riscos de reconhecimento do vínculo empregatício, pretendendo-se afastar tais hipóteses do crivo previsto nos artigos 2o e 3o da CLT. Assim, por tal interpretação, bastaria o simples rótulo de “trabalho cooperativo” para afastar a possibilidade de enquadramento como relação empregatícia, abrindo-se a porta para todo tipo de fraude e de sonegação aos direitos trabalhistas.
Na verdade, o sistema de proteção ao trabalho consagrado pela CLT se destina, fundamentalmente, ao trabalhador assalariado e, portanto, um dos pilares de tal sistema se assenta justamente na possibilidade de desconstituição de situações fraudulentas e no seu reconhecimento como relações empregatícias, assegurando-se ao trabalhador todos os direitos previstos em lei para os empregados (art. 9o CLT).
Assim, numa interpretação mais rigorosa do parágrafo único do art. 442, temos que não se criou uma “imunidade jurídica” à aplicação do art. 9o da CLT. Tal artigo limitou-se a repisar o que a própria legislação sobre as cooperativas já previa, ou seja, a inexistência de vínculo empregatícios entre as cooperativas e seus associados.
Entretanto, a ambigüidade da redação da norma em questão foi utilizada para a “subtração de direitos trabalhistas, provocando em conseqüência uma enxurrada de ação na já assaz congestionada Justiça do Trabalho”.[22] De forma pouco crítica, parte da doutrina e da jurisprudência admitiram a modificação legislativa como uma ampliação sem precedentes das possibilidades de contratação de trabalhadores a margem da CLT. Chegou-se, mesmo, a entender a inexistência de qualquer óbice legal à contratação de trabalhadores cooperativados em relações de terceirização da atividade-fim do tomador dos serviços[23], vulnerando-se à limitação à atividade-meio prevista no Enunciado 331 do TST.
Quanto à inexistência de relação empregatícia entre o cooperado e o tomador dos serviços, por interpretação sistemática, a resposta passa, como em qualquer outra situação de trabalho, pela análise concreta à luz das normas celetistas.
Na esteira da conhecida precarização laboral através da terceirização, a multiplicação das formas cooperativadas de trabalho[24], infelizmente, se deveu mais ao interesse empresarial de redução de custos do que a um verdadeiro movimento em direção a formas autogestionárias de trabalho.
Conforme PAUL SINGER, as próprias empresas
“criavam cooperativas de trabalho, com seus estatutos e demais apanágios legais, as registram devidamente e depois mandam seus empregados se tornarem membros delas, sob pena de ficar sem trabalho. Os empregados são demitidos, muitas vezes de forma regular, e continuam a trabalhar como antes, ganhando o mesmo salário direto, mas sem o usufruto dos demais direitos trabalhistas. Estas são as falsas cooperativas também conhecidas como cooperfraudes e outros epítetos. São cooperativas apenas no nome, arapucas especialmente criadas para espoliar os trabalhadores forçados a se inscrever nelas”.[25]
Com inteira razão, a reação a tais novas formas de precarização surgiram por parte da doutrina, de Auditores-Fiscais do Trabalho, de Procuradores do Trabalho e, também, por parte do Judiciário do Trabalho. Numa ofensiva contra a precarização laboral, o Ministério Público do Trabalho, em inúmeros casos, através de Termos de Ajustamento de Conduta, inviabilizou a continuidade das operações de falsas Cooperativas de Trabalho e a Justiça do Trabalho, em tantos outros casos, reconheceu o vínculo empregatício dos trabalhadores associados de falsas cooperativas diretamente com o tomador dos serviços.
Em relação à pseudo-cooperativas contratadas pela administração pública, a Justiça do Trabalho – provavelmente para evitar os efeitos da Súmula n. 363[26] – tem adotado critério duvidoso de reconhecer o vínculo empregatício diretamente com a falsa Cooperativa e o ente público subsidiariamente. Ainda que se compreenda que tal tipo de decisão logre assegurar aos trabalhadores todos os direitos previstos em lei – escapando do reconhecimento da contratação nula que, segundo a jurisprudência do TST, reduz tais direitos aos salários pactuados e o FGTS -, não se pode deixar de observar a impropriedade técnica de tais decisões, já que, em tais casos – como, de resto, em todos os casos de terceirização ilícita -, o real empregador é o ente público.
Embora plenamente compreensível tal reação contra o falso cooperativismo, não se pode deixar de apontar os excessos e os exageros a que se chegou; tanto na prática, ao pretender apontar todo e qualquer trabalho cooperativado como fraude à legislação celetista; como na doutrina, ao se negar até mesmo a possibilidade de existência das cooperativas de trabalho.
Não há contradição entre o verdadeiro movimento cooperativo e a luta contra a precarização laboral. Na realidade, a eliminação das fraude-cooperativas se constitui hoje no ponto central para a emersão das reais cooperativas de trabalho, seguidoras dos princípios do movimento cooperativo internacional, baseado nos valores do trabalho decente, da solidariedade e na participação democrática.
A questão central que se coloca não é a da compatibilidade das cooperativas de trabalho com o ordenamento jurídico nacional, mas sim, a possibilidade concreta de que cooperativas de trabalho atinjam suas próprias finalidades, em especial a da melhoria das condições de vida e de trabalho de seus associados.
Trabalho cooperativado e trabalho subordinado
Como já se mencionou anteriormente, para a discriminação do verdadeiro trabalho cooperativo das situações de fraude é essencial a verificação da existência ou não dos requisitos típicos do trabalho assalariado.
Trata-se de indagar, em cada situação concreta, a eventual vinculação empregatícia do trabalhador com o tomador dos serviços, particularmente se há ou não subordinação direta entre o trabalhador dito cooperativado e os prepostos do tomador do serviço.
A situação é rigorosamente a mesma de outros casos de terceirização ilícita, nos quais, pela existência de pessoalidade e de subordinação direta entre trabalhador e tomador dos serviços, se reconhece a existência da relação de emprego (Enunciado 331 do TST).
Se o caso envolve falsas cooperativas de trabalho, estamos diante de uma intermediação de mão-de-obra que, em essência, em nada difere de outros casos em que estão envolvidas, não cooperativas de trabalho, mas empresas prestadoras de serviço. A solução é exatamente a mesma, ou seja, a caracterização da terceirização como ilícita e o reconhecimento do vínculo empregatício com o tomador dos serviços.
A polêmica ocorre em casos de trabalho cooperativo em terceirizações lícitas, que são precisamente aqueles em que as cooperativas de trabalho concorrem diretamente com as empresas prestadoras de serviço.
Em terceirizações lícitas, não há subordinação direta e pessoalidade entre trabalhadores terceirizados (sejam estes empregados da empresa prestadora de serviço, sejam trabalhadores cooperativados) e o tomador dos serviços. Porém, no caso do trabalho cooperativado, muitos autores questionam a própria possibilidade deste tipo de trabalho em situações de terceirização lícita, já que sempre existe a subordinação inerente ao próprio serviço a que submetem os trabalhadores no exercício de sua atividade produtiva. Segundo muitos, tal subordinação implicaria necessariamente no reconhecimento do vínculo empregatício entre o trabalhador terceirizado e o fornecedor dos serviços.[27]
Aqui encontra-se o cerne de uma das maiores controvérsias em relação ao trabalho cooperativo. Conforme pensamento bastante difundido na doutrina, o trabalho cooperativo é inteiramente incompatível com qualquer tipo de subordinação, independentemente de tratar-se da subordinação jurídica típica da relação empregatícia ou aquela denominada subordinação técnica, inerente a qualquer prestação laboral coletiva
Por essa visão[28], a cooperativa de trabalho se resumiria aos casos de associação de trabalhadores autônomos (médicos, por exemplo), normalmente trabalho individual, restringindo-se bastante as hipóteses de trabalho coletivo, pois este, em geral, envolve algum tipo de subordinação, ainda que meramente técnica. É um fato que, praticamente toda a atividade humana coletiva exige esforços coordenados que, em maior ou menor medida, não prescinde de algum tipo de comando e de hierarquia para a consecução dos objetivos comuns. É o exemplo típico de um time de futebol que elege um “capitão” para a tarefa de comandar a equipe dentro de campo, o que envolve algum grau de hierarquia e de submissão a orientações técnicas. O mesmo ocorre quando a prestação de trabalho é feita em equipe por trabalhadores autônomos. Nesse último caso, a presença de um “trabalhador líder”, na maioria dos casos, é indispensável para a realização do serviço. Constando-se a presença, em tais atividades, de elementos de “subordinação”, há de se caracterizar a mesma como meramente técnica – e não jurídica. Por isso mesmo, a par dos inegáveis elementos de comando existentes, não seria incorreto reconhecer que, em tal atividade, está mais presente o elemento de “coordenação” do que o da “subordinação”.
Ao definir a subordinação típica como elemento estrutural da relação empregatícia, Délio Maranhão a conceitua como uma “situação jurídica” que revela uma dependência hierárquica, bastante distinta da dependência econômica ou da subordinação técnica. Esta última comporta também uma direção a dar aos trabalhadores em suas tarefas, mas se distingue da subordinação jurídica, porque se trata da direção meramente especializada.[29]
Portanto, nas hipóteses de terceirização lícita, a simples presença da subordinação técnica entre o trabalhador e os prepostos da Cooperativa encarregados de dirigir o trabalho não deveria fazer supor a inexistência de autonomia dos trabalhadores cooperativados. Estes, na verdade, detém uma dupla condição: a primeira, é a condição de trabalhadores que, no desempenho das tarefas laborais contratadas, subordinam-se tecnicamente (ou submetem-se à atividade coordenada), acatando as ordens e as determinações necessárias para a consecução de tais tarefas e, assim, na verdade, subordinam-se, em última instância, às determinações que emanam da própria assembléia geral da Cooperativa que deliberou pela adesão ao contrato de prestação de serviços; a segunda, é a condição de trabalhadores autônomos que deliberam, em assembléia geral, de acordo com seus próprios interesses, e, assim, são também eles agentes dos processos de fiscalização, controle e comando das tarefas necessárias ao cumprimento do contrato de prestação de serviços.[30]
Portanto, a simples presença da subordinação técnica não empurra a relação para o vínculo empregatício e, assim, não implica o reconhecimento da relação de emprego entre o trabalhador e a própria Cooperativa (que, numa operação de verdadeira alquimia jurídica passaria a ser enquadrada como “empresa empregadora”). A negativa da existência de uma subordinação técnica distinta da típica subordinação jurídica característica da relação de emprego teria conseqüência última a negação, pura e simples, do próprio “ato cooperativo”[31] e, em um raciocínio maximalista, na “celetização” de toda atividade humana coletiva.
Não se questiona, aqui, as boas intenções dos que acreditam estar “protegendo” os trabalhadores por meio de tal argumentação, mas há de se apontar claramente que, através dela, erra-se inteiramente o alvo, desviando-se o foco do principal beneficiário com as terceirizações ilícitas (o empregador que ilicitamente terceiriza) e, nas terceirizações lícitas, atingindo-se mortalmente o autêntico cooperativismo, como vítima colateral.
Procura-se legitimar tais idéias como parte de uma saudável resistência coletiva à terceirização precarizadora, centrada na concepção de que o trabalho assalariado representa sempre o melhor instrumento de elevação das condições de vida dos trabalhadores.
Entretanto, sem cair nos equívocos do “triunfalismo empreendendorista” que polui os debates atuais sobre novas formas de trabalho, há de se reconhecer no trabalho cooperativo uma tradicional proposta obreira, não apenas de emancipação do trabalho, mas também de elevação das condições materiais dos trabalhadores – inclusive e, principalmente, em relação ao próprio trabalho assalariado.
Algumas vantagens do trabalho cooperativado em relação ao trabalho assalariado
A análise das propostas originais de trabalho cooperativado nos remete aos ideais históricos de autogestão e de emancipação do trabalho humano. No centro do ideário cooperativista está justamente a idéia de “contrariar as formas de trabalho impostas ao trabalhador na economia capitalista” e, através do trabalho auto-gestionário, resgatar a subjetividade do trabalhador, escapando da alienação do valor de seu trabalho.[32]
Pode-se estabelecer alguma similitude na lógica que engendrou o modelo de trabalho avulso, típico das operações portuárias. Nesse modelo, os sindicatos de trabalhadores controlam a oferta de mão-de-obra através da obrigatoriedade (ou preferência) da contratação de sindicalizados para as operações portuárias, de forma que, ao regular o ingresso de trabalhadores aos quadros associativos, os trabalhadores através de seus sindicatos provocam a melhoria de suas condições de trabalho, a elevação de seus ganhos e uma melhor distribuição dos incrementos de produtividade. Além disso, no modelo avulso, são os próprios trabalhadores que se encarregam da execução das tarefas portuárias, o que assegura o controle obreiro sobre todos os aspectos do trabalhado realizado. A divisão dos trabalhadores em estivadores (trabalhadores operacionais) e conferentes (trabalhadores com funções de controle) – e, evidentemente a submissão objetiva de todos às normas inerentes a todo o processo – não desnatura o controle obreiro, nem torna a relação avulsa em “empregatícia” pelo fenômeno do reconhecimento da “subordinação técnica”. Por fim, a possibilidade de controle dos trabalhadores sobre a ponta da oferta do mercado laboral implica em estabilidade prática, afastando justamente o fantasma da demissão, fator de insegurança e de desestabilização da relação de trabalho assalariada.
Baseado na mesma idéia de tomar as rédeas no processo econômico que determina a dinâmica da oferta de mão-de-obra, o trabalho cooperativo, através das cooperativas de trabalho, pretendem assegurar a seus associados melhoria das condições de trabalho em relação ao trabalho assalariado, a estabilidade econômica decorrente de garantia de uma fonte permanente de renda e um maior controle sobre seu próprio trabalho aproximando-se dos ideais emancipacionistas.
Com base nos exemplos internacionais[33], pode-se afirmar, com segurança, que o modelo cooperativista de trabalho, em geral, oferece aos trabalhadores condições de trabalho e de renda bem superiores ao trabalho assalariado.
Economicamente, é possível pensar que a racionalidade do sistema cooperativista e sua intrínseca finalidade não-lucrativa[34] permitem que as cooperativas compitam com vantagem com as empresas privadas, inclusive assegurando, em relação às cooperativas de trabalho, melhores condições laborais aos seus associados em comparação com as empresas privadas.[35]
Do ponto de vista individual, o trabalhador cooperativado, como todo autônomo, decide quando vai trabalhar, sem que a ausência implique qualquer punição. Do ponto de vista coletivo, tem voz ativa sobre para quem, como e por quanto irá trabalhar. De fato, através da cooperativa, o trabalhador, através do voto nas assembléias gerais, passa a ter decisiva influência nos destinos do empreendimento econômico que lhe assegura a fonte de renda. Tal poder de influência é incomparavelmente superior a de um trabalhador de uma empresa privada, em que, historicamente, o maior avanço registrado é o da co-gestão, em que a democratização se limita à eleição de um diretor representante dos trabalhadores. Sobre outra perspectiva, ainda que se compare o sócio-cooperativista ao sócio minoritário de uma sociedade anônima, podemos entender que a legislação cooperativista assegura aos sócios-cooperativistas um poder de decisão ainda mais efetivo, pois baseado na regulamentação da participação democrática do sócio, conforme previsto na Lei das Cooperativas.[36]
Há de se analisar, ainda, que a cooperativa é uma forma histórica de coalizão dos trabalhadores, cumprindo um papel relevante de assistência social, o que a aproxima bastante de outras formas de auto-organização, como os sindicatos e as caixas de socorro mútuo. Da mesma forma, as cooperativas, por sua própria natureza, se dedicam permanentemente à elevação das capacitação profissional de seus associados, já que esta se constitui em patrimônio da própria Cooperativa. Representa, também, uma importante instrumento para integração de coletivos de trabalhadores com pouca instrução, sem experiência profissional ou com deficiência física[37], que, em função da inclemente competição existente no mercado laboral, tenderiam a ficar marginalizados.[38] Por fim, o ideal cooperativista se insere na luta política pela construção de um espaço econômico alternativo solidário, baseado nos ideais de cooperação e fraternidade.
A nova lei, intenções e possibilidades.
O propósito da nova lei é explícito, qual seja, a de assegurar aos sócios das cooperativas de trabalho -, autônomos por definição – direitos trabalhistas que são assegurados pelas empresários a seus empregados, em especial aqueles previstos no art. 7o da Constituição Federal. Não é demais lembrar que tal norma constitucional enumera uma série de direitos e garantias que se destinam “aos trabalhadores”, não se podendo excluir de tal definição os trabalhadores autônomos, mesmo por que, a leitura do próprio caput do referida norma constitucional não admite interpretação diversa.[39]
Com base em tal entendimento – o de que o trabalho cooperativado não exclui os direitos trabalhistas previstos no art. 7o da Constituição Federal, a 3a. Turma do TRT da 4a. Região, em ação civil pública proposta pelo MPT, deferiu pedido sucessivo, determinando que “a cooperativa-ré, a partir de tal data, somente contratasse a prestação de serviços para os seus associados quando assegurasse a satisfação dos direitos previstos no artigo 7º da Constituição Federal, incisos III, IV, V, VI, VII, VIII, IX, XIII, XIV, XV, XVI, XVII, XXII, XXIII, XXVIII, (…) concedendo prazo de 180 dias para adequação dos contratos existentes ao comando do acórdão”.[40]
Sem dúvida, o estabelecimento para as cooperativas de trabalho de um conjunto de obrigações equivalente ao exigido para as empresas empregadoras representa uma “reinterpretação” do conceito de cooperativa de trabalho e aproxima o ordenamento jurídico brasileiro às leis de garantia que se adotam em outros países, em especial na Europa.[41]
Dessa forma, pela significativa ampliação dos direitos dos sócios dos cooperativas de trabalho e, consequentemente, pela elevação dos seus patamares remuneratórios, pretende-se reduzir as “vantagens competitivas” oferecidas aos empresários por cooperativas que, por meio da sonegação de direitos trabalhistas básicos, se apresentem no mercado com preços de contratação muito inferiores ao que é oferecido pelas empresas de prestação de serviço. Remanescem íntegras, no entanto, as grandes vantagens comparativas das cooperativas de trabalho que são a inexistência de lucro e as maiores qualidade e produtividade que o trabalho autônomo permite em relação ao trabalho assalariado.[42]
Aqui, dois pontos necessitam de ponderação.
A desejável aproximação do preço cobrado ao mercado por cooperativas de trabalho e empresas prestadoras de serviço se destina a lograr uma forma de equiparação entre trabalhadores empregados e autônomos – e não é um fim em si mesmo. Não faz sentido, assim, falar-se em equiparar cooperativas de trabalho e empresas prestadoras de serviço em matéria tributária, por exemplo. O incentivo e apoio ao cooperativismo está prevista na Constituição Federal, o que justifica um tratamento distinto para as cooperativas de trabalho.[43] Assim, de nenhuma forma pode ser estranho ao nosso sistema jurídico o estabelecimento de vantagens institucionais para a adoção do trabalho cooperativo em cotejo com as empresas privadas, da mesma forma como não é estranha, mas rigorosamente constitucional, a adoção de mecanismos de favorecimento às pequenas empresas ou à produção agrícola familiar. Somente não é razoável, como acontece também em relação aos mencionados outros dois setores econômicos, que o favorecimento à competitividade das cooperativas de trabalho se faça a custa dos direitos dos cooperativados.
Em um trabalho por conta própria (autônomo), bem remunerado e em um ambiente de gestão democrática e participativa – inerente às verdadeiras cooperativas de trabalho-, as expectativas de melhor qualidade do trabalho oferecido e de maiores ganhos de produtividade representam uma considerável vantagem competitiva em relação às empresas privadas.
O segundo ponto a ser ponderado – e, sem dúvida, é um dos pontos centrais da nova lei – é o de que nenhum empreendimento econômico nasce grande e forte, sendo crucial um razoavelmente longo e muitas vezes difícil período de crescimento e maturação, até alcançar um patamar seguro de auto-suficiência. Muitas vezes, a necessidade de um forte apoio público, que assume as mais diversas formas (crédito subsidiado, isenções fiscais, assistência técnica, dispensa de exigências burocráticas, políticas de formação de mão-de-obra, favorecimento em compras públicas, etc.) é fator preponderante para a sobrevivência de novos empreendimentos econômicos, o que não é diferente em relação às cooperativas de trabalho. Nesse sentido, é preciso que a plena equiparação dos direitos do trabalhador cooperativado e o trabalhador empregado se faça paulatinamente, de forma a permitir a formação dos fundos sociais obrigatórios[44] que suportem a elevação dos custos. Assim, o art. 28 da nova lei prevê um prazo de 12 meses a partir da publicação da lei para assegurar aos sócios as garantias nela previstas.
Como outros dos acertos da nova lei, podemos apontar a conceituação de cooperativa de trabalho como sendo “a sociedade constituída por trabalhadores para o exercício de atividades laborativas ou profissionais com proveito comum, autonomia e autogestão para obterem melhor qualificação, renda, situação socioeconômica e condições gerais de trabalho”. Desta forma, a independência e a democracia interna são especificadas como elementos estruturais do funcionamento das cooperativas de trabalho, traço diferenciador em relação às cooperativas fraudulentas. A lei exige a inclusão, nos Estatutos Sociais ou Regimentos Internos das cooperativas, “incentivos à participação efetiva dos sócios” – inclusive eventuais sanções em caso de ausências injustificadas (art. 11, parágrafo 2o). Além disso, uma série de exigências de quoruns mínimos e de procedimentos obrigatórios para as Assembléias-Gerais buscam assegurar que os associados das cooperativas de trabalho detenham real poder deliberatório e que, efetivamente, exerçam tal direito democrático.
Esclarece a lei que autonomia deve ser exercida “de forma coletiva e coordenada, mediante a fixação, em Assembléia Geral, das regras de funcionamento da Cooperativa e da forma de execução dos trabalhos” (art. 2o, parágrafo primeiro). Já a autogestão é o “processo democrático no qual a Assembléia Geral define as diretrizes para o funcionamento da cooperativa e da forma de execução dos trabalhos, nos termos da lei” (art. 2o, parágrafo segundo). Como princípios e valores elencados como norteadores das reais cooperativas de trabalho estão a adesão voluntária e livre; a gestão democrática; a participação econômica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação; interesse pela comunidade; preservação dos direitos sociais, do valor social do trabalho e da livre iniciativa; não precarização do trabalho; respeito às decisões de assembléia, observado o disposto na lei; participação na gestão em todos os níveis de decisão de acordo com o previsto em lei e no Estatuto Social (art. 3o).
Tal conceituação de cooperativa atinge plenamente o objetivo de inserir a cooperativa no modelo internacional de uma entidade centrada nos princípios do verdadeiro cooperativismo, em especial os da autonomia, da independência, da gestão democrática por parte dos associados e da participação econômica dos associados. Fica claro que o objetivo fundamental das cooperativas de trabalho é a melhoria das condições de vida dos associados, seja através da renda, da qualificação profissional e das condições socioeconômicas e de trabalho. Consagra-se, assim, o entendimento jurisprudencial que elege a melhoria das condições de trabalho do cooperativado (ou critério da “retribuição pessoal diferenciada”[45]) como critério delimitador entre as verdadeiras e falsas cooperativas.
Para tanto, importante conectar tal princípio com o contido no art. 10 parágrafo 3o da nova lei. Ali, fica claro que a admissão de novos sócios atenderá as “possibilidades de reunião, abrangência das operações controle e prestação de serviços e congruente com o objeto estatuído” – entre os quais, obviamente, a possibilidade de que a cooperativa efetivamente assegure a cada associado uma retribuição pessoal diferenciada – somente possível pela limitação do número de associados às possibilidades do mercado laboral.
O mesmo se pode dizer em relação ao princípio de não-precarização do trabalho, erigida como princípio no inciso IX do art. 3o da nova lei. Além da menção ali contida, o art. 18 da lei estabelece a responsabilização penal, cível e administrativa dos responsáveis pelas cooperativas que fraudarem deliberadamente a legislação trabalhista e previdenciária.
O artigo 4o da lei deixa bastante claro que as cooperativas de trabalho podem ser de produção (quando detém, a qualquer título, os meios de produção e, assim, os associados contribuem com seu trabalho para a criação de um produto, que passa a ser propriedade da cooperativa), mas também podem ser de serviço (quando o produto da cooperativa é exatamente o trabalho de seus associados que é oferecido para terceiros). Mais: no artigo 10 fica autorizada a adoção por objeto social da cooperativa de “qualquer gênero de serviço, operação ou atividade”, desde que previsto nos Estatutos Sociais.
Ainda que observadas as restrições à aplicação da lei às hipóteses elencadas nos incisos I a IV do parágrafo único do art. 1o (cooperativas de assistência à saúde, cooperativas de transporte em que os associados detenham os meios de trabalho, cooperativas de profissionais liberais e cooperativas de médicos cujos honorários são pagos por procedimento), fica definitivamente resolvida a polêmica a respeito da possibilidade de cooperativas de trabalho para prestação de serviços diversos, multifuncionais, agregando diversas atividades laborais, ainda que em serviços não-especializados, que, até então, parte da jurisprudência trabalhista entendia como interditada para cooperativas de trabalho.
Assim, pela nova lei, nada obsta que a cooperativa de trabalho ofereça os mesmos serviços que, normalmente, são preenchidos por empresas prestadoras de serviço em atividades terceirizadas de empresas tomadoras. Por definição legal, a prestação de serviço, desde que realizadas por autênticas cooperativas de trabalho, será feita “sem os pressupostos da relação de emprego” (art. 4o, II), ou seja, sem subordinação ou pessoalidade. Recorde-se, mais uma vez, tratar-se de terceirizações lícitas, até mesmo porque a própria lei, em seu artigo 5o, veda a utilização das cooperativas de trabalho para intermediação de mão-de-obra subordinada. Assim, cumpridos os requisitos da lei, em especial os das Leis 5.764/71 e 12.690/2012, estar-se-á diante de uma terceirização admitida em lei, ainda que prestada por cooperativa de trabalho por trabalhadores autônomos – e não por empresas de prestação de serviço por meio de empregados. Em qualquer dos casos, a licitude decorre de inexistir subordinação e pessoalidade dos trabalhadores com o tomador dos serviços, bem como de não se prestarem serviços ligados à atividade-fim deste.
Num esforço de melhor formatação de um modelo de trabalho autônomo dentro de atividades em que inerente a já referida subordinação técnica, o art. 7o prevê que, nos casos de prestação de serviços “fora do estabelecimento das cooperativas” (em geral, prestação de serviços terceirizados), as atividades “deverão ser submetidas a uma coordenação com mandato nunca superior a 1 (um) ano ou ao prazo estipulado para a realização destas atividades, eleita em reunião específica pelos sócios que se disponham a realizá-las, em que serão expostos os requisitos para sua consecução, os valores contratados e a retribuição pecuniária de cada sócio partícipe”.
Aqui se evidencia a preocupação do legislador em mencionar a palavra “subordinação” – ainda que meramente técnica, optando pelo vocábulo “coordenação”. Mais que isso, a lei pretende afastar o mais possível o comando de tais “coordenadores” da figura dos “supervisores” ou “chefes de setor” quando a atividade é realizada sob o modelo assalariado, estabelecendo o mandato de um ano para tais coordenadores, eleitos em assembléia específica, explicitando que a submissão (mais uma vez, subordinação técnica) de tais coordenadores (e, de resto, também dos coordenados) é à assembléia-geral da cooperativa. Tais coordenadores terão mandato no prazo estipulado para a realização dos serviços e não poderá ser superior a um ano. A assembléia específica deverá deliberar a respeito dos requisitos para consecução dos serviços, os valores contratados e a retribuição pecuniária de cada participante. Por fim, deixando claro a relevância que o legislador reserva para tais procedimentos democráticos como critério diferenciador das situações de fraude, o art. 17 parágrafo 2o cria a presunção de que as cooperativas que os desatendam serão entendidas como “intermediação de mão-de-obra” e, portanto, estarão sujeitas às penas da lei.
Direitos trabalhistas previstos na nova lei:
Para a consecução do objetivo de aproximação jurídica entre trabalho autônomo cooperativado e trabalho assalariado a lei estabelece, no art. 7o, os seguintes direitos, além de outros que sejam criados pela assembléia-geral:
a) retiradas não inferiores ao piso da categoria profissional ou, pelo menos, ao salário mínimo.
A norma se direciona para um equiparação entre os ganhos mensais do trabalhador, na medida que fixa como paradigma o piso da categoria profissional ou o salário mínimo. Entretanto, admite que o trabalhador receba remuneração inferior caso trabalhe em jornada reduzida, que deve ser proporcional às horas trabalhadas (como prevê a OJ n. 385 TST). No caso dos cooperativados, é de se lembrar que a quantidade de horas trabalhadas pelo trabalhador depende, não apenas do exercício da vontade deste (como autônomo), mas também das possibilidades da cooperativa em angariar trabalho para seus associados e das determinações da assembléia-geral, mormente a de manter certa quantidade de cooperativados em seu quadro social. Tal como acontece entre os avulsos, o número de associados representa uma das principais formas de regulação do mercado laboral e, assim de preservação do valor da remuneração do trabalho.[46]
No caso específico das terceirizações, há uma conexão evidente de tal norma com o entendimento contido na OJ 383 TST, que, pelo princípio da isonomia e pela aplicação analógica do art. 12, “a” da Lei n. 6.019/74, assegura aos trabalhadores terceirizados as mesmas verbas trabalhistas legais e normativas dos empregados do tomador dos serviços, desde que presente a igualdade de funções.
b) limitação da duração do trabalho não superior a 8 horas diárias e 44 horas semanais, admitida a compensação.
Embora o texto não mencione o direito ao pagamento de horas extras, tal conseqüência se extraí da própria texto legal, sem a qual tratar-se-ia de norma vazia. A Constituição Federal prevê o pagamento das horas extras com adicional não inferior a 50¨%, embora esse percentual deva ser superior se assim constar de norma coletiva da categoria profissional.
c) repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos;
A remuneração do repouso implica, na prática, uma elevação proporcional de 1/6 na retribuição de cada associado pelo trabalho prestado.
Quanto à preferência aos domingos, dada as características do trabalho autônomo, basicamente voluntário, na prática, implicará na interdição do trabalho do cooperativado que já tiver laborado seis dias na semana ou no pagamento excepcional de remuneração dobrado, caso não houve outros associados que queiram trabalhar nesse dia.
d) Repouso anual remunerado.
Também aqui a regulação de tal direito deve atender às peculiaridades do trabalho cooperativado. Assim, o direito à férias tem também a dimensão de uma “obrigação a tirar férias”, já que o cooperativado, tal como o empregado, deve gozar de um repouso mensal dentro de um período concessivo de doze meses após um ano de prestação de trabalho. Fica garantido ao trabalhador a percepção da média mensal das retiradas no período aquisitivo. Embora o texto nada fale a respeito, sistemicamente, deve interpretar o direito do trabalhador a que a remuneração das férias seja acrescida do adicional de um terço, tal como acontece com os empregados.
e) retirada para o trabalho noturno superior à do diurno.
Mais uma vez, reconhecimento de os trabalhadores cooperativados são trabalhadores com os mesmos direitos constitucionais dos demais trabalhadores. Na prática, o trabalho noturno será aquele prestado entre 22h e 5h, será remunerado com adicional não inferior a 20% e terá a mesma redução legal prevista para os demais trabalhadores.
f) adicional sobre a retirada para as atividades insalubres ou perigosas.
Depreende-se da leitura conjunta com o art. 8o,[47] que os trabalhadores cooperativados terão direito ao adicional de insalubridade e ao direito de periculosidade, tal como os demais trabalhadores.
Relativamente às normas de saúde e de segurança, o art. 9o estabelece uma responsabilidade solidária entre a cooperativa e o tomador dos serviços, quando estes forem prestados no estabelecimento deste ou em local por ele determinado.
g) seguro de acidente de trabalho.
Como prevê o art. 7o, XXVIII da Constituição Federal, é garantido aos trabalhadores um seguro contra acidentes do trabalho, sem excluir eventual indenização em caso de culpa ou dolo. A Constituição menciona que tal seguro deve ficar a cargo “do empregador”. No caso das cooperativas, estas deverão providenciar tal seguro, que poderá ser incluído no preço a ser cobrado dos clientes da cooperativa.
Insuficiências da lei.
Entretanto, apesar das melhores intenções da lei e dos inegáveis avanços nela contidos, há de se reconhecer que, em muitos pontos, a nova lei é insuficiente, ao menos para aqueles que nela põem as esperanças na construção de um tempo novo para as cooperativas de trabalho no Brasil.
Em primeiro lugar, a lei não revoga o art. 442 parágrafo único da CLT que, embora inócuo, como já referido anteriormente, tem causado enorme polêmica na doutrina e jurisprudência, certamente causando mais confusão do que esclarecimento. Perdeu-se, assim, a oportunidade de extirpar tal equívoco de nosso ordenamento jurídico
Outro ponto criticável é a possibilidade de que a Assembléia-Geral da Cooperativa estabeleça um prazo de carência para a fruição dos direitos previstos no art. 7o, incisos I (retiradas não inferiores ao piso salarial) e VII (seguro de acidente de trabalho).[48] Ainda que fosse admissível delegar à Assembléia-Geral o adiamento da efetivação de tais direitos, não é razoável que o legislador não tenha estabelecido um prazo máximo para tal adiamento (por exemplo, seis meses além do prazo já contido no art. 28). Assim, uma norma que deveria ser uma disposição transitória cria uma condição definitiva para negação de direitos aos cooperativados.
Polêmico o art. 7o, parágrafo 1o. que exclui a percepção de repouso semanal remunerado e de repouso anual remunerado – exceto por decisão em contrário pela Assembléia-Geral – nos casos de “operações eventuais”. Parece que a melhor interpretação de tal dispositivo seja o de que o trabalhador que não labore todos os dias da semana não faça jus ao repouso semanal, assim como de que não tenha direito à férias o trabalhador que não tenha laborado um período mínimo de meses – o que, provavelmente, deverá ser decidido pela Assembléia-Geral.[49] Não parece correto, assim, pensar que o legislador tenha criado um novo tipo de cooperativado (o “cooperado eventual”[50]), com direitos inferiores aos demais associados. Na realidade, o legislador pretendeu se referir aos associados que, usando a prerrogativa que lhes assegura o trabalho autônomo, deixam, voluntariamente, de participar de trabalho em todos os dias da semana ou em todos os meses do ano.
Por fim, a lei perde oportunidade de clarificar a situação peculiar dos cooperativados em relação a seus direitos sindicais, em especial a determinação a que categoria profissional pertencem. Ainda que a lógica indique que as cooperativas de trabalho devem integrar categoria econômica e, por reciprocidade, admitir-se a organização dos trabalhadores cooperativados em um sindicato profissional, a matéria está longe de ser pacífica e, certamente, será um dos pontos mais polêmicos na aplicação concreta da nova lei.
A título de conclusão.
Pode-se dizer, como resumo que a Lei n. 12.690/2012 cria, enfim, um marco jurídico sólido para o funcionamento do verdadeiro cooperativismo de trabalho, constituindo-se em uma valiosa ferramenta para diferenciar as verdadeiras cooperativas das fraude-cooperativas.
A nova lei consolida o entendimento de que o trabalho realizado nas cooperativas de trabalho é autônomo e exclui as hipóteses de mera intermediação de mão-de-obra, que nada mais são do que fraude à legislação laboral. Para a análise concreto de cada caso, a identificação da existência ou não de relação empregatícia se fará pelo crivo dos artigos 2o e 3o da CLT, em especial pela presença dos requisitos de pessoalidade e subordinação. Porém esta última não há de ser confundida com a “subordinação meramente técnica” ou “coordenação” , como expressamente prevê a nova lei. Como nos demais casos de terceirização, é expressamente vedada em lei a contratação de prestação de serviços por cooperativa de trabalho em atividades-fim da empresa tomadora,
Por expressa definição legal, a existência de cooperativas de trabalho multifuncionais está expressamente autorizada, não podendo ser mais objeto de dúvidas sua compatibilidade com o sistema legal vigente.
O verdadeiro cooperativismo de trabalho exige a prática de respeito aos princípios a ele inerentes, contidos tanto na normatividade internacional como no ordenamento jurídico pátrio. Haverá de se verificar, no caso concreto das cooperativas de trabalho, a presença de atos cooperativos de acordo com a lei em vigor, em especial a Lei n. 5.764/71 e a Lei n. 12.690/2012, sob pena de declaração de tais cooperativas como inidôneas e da descaracterização do trabalho cooperativo com a conseqüente atração ao caso concreto da legislação celetista.
A ascensão do verdadeiro cooperativismo ao lugar que lhe reserva a Constituição Federal deve ser saudada como um passo importante para o estabelecimento de espaços democráticos na produção, para a criação de melhores condições de trabalho e renda para os trabalhadores em geral e para a maior integração daqueles menos favorecidos.
Informações Sobre o Autor
Luiz Alberto de Vargas
Desembargador do Trabalho do TRT 4ª. Região