Resenha da obra Direitos Fundamentais Sociais de Cristina Queiroz

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Resumo: A presente resenha examina a problemática dos direitos fundamentais sociais no direito constitucional português com base na obra “Direitos Fundamentais Sociais” de Cristina Queiroz. Os direitos fundamentais sociais são caracterizados como dotados de dimensão subjetiva e objetiva. A necessidade de uma reforma conceitual a respeito dos direitos fundamentais é defendida tendo por base o princípio da sociabilidade, numa teoria constitucional complexa formadora do Estado dos Direitos Fundamentais.


Palavras–chave: direitos fundamentais sociais, controle judicial e prestações positivas.


Abstract: This review examines the problematic of fundamental social rights in Portugal constitutional law from  the book “Direitos Fundamentais Sociais” by Cristina Queiroz. The fundamental social rights are characterized as having subjective and objective dimensions. The need for a conceptual reform concerning fundamental rights is advocated based on the principle of sociability, forming a complex constitutional theory of Fundamental Rights’ State.


Keywords: fundamental social rights, judicial control and positive social benefits.


Sumário: Introdução, 1. Desenvolvimento da obra “Direitos Fundamentais Sociaise Considerações finais.


Resenha da obra: QUEIROZ, Cristina. Direitos Fundamentais Sociais: funções, âmbito, conteúdo, questões interpretativas e problemas de justiciabilidade, Coimbra: Coimbra Editora, 2006.


Introdução


A evolução da compreensão sobre a vinculação dos direitos fundamentais sociais até o constitucionalismo contemporâneo integra diferentes tarefas constitucionais que representam uma compreensão institucional do Estado Social. Tal compreensão institucional do Estado Social define os direitos fundamentais sociais como deveres objetivos. O destinatário de alguns dos direitos fundamentais sociais não é unicamente o Estado, mas a generalidade dos cidadãos. Hoje, a cidadania não consiste unicamente em proteger uma esfera de liberdade face ao Estado e se encontra intimamente ligada ao controle do poder público. Esse controle deve ser garantido através de mecanismos de participação, segurança e independência, isto é, a não dominação. Essas premissas são expostas por Cristina Queiroz ao defender a necessidade de uma reforma conceitual a respeito dos direitos fundamentais, sob a base do princípio da sociabilidade, numa teoria constitucional complexa formadora do Estado dos Direitos Fundamentais.


A prof. Drª Cristiana Queiroz da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (FDUP) de Portugal pesquisa na área do direito constitucional, com ênfase especial nos direitos fundamentais sociais. Sua obra “Direitos Fundamentais Sociais” tem como âmbito de análise o direito constitucional português e adota como parâmetro de diálogo doutrinário e jurisprudencial o direito constitucional alemão. A estrutura do livro está dividida em introdução, cinco capítulos e conclusão. Na parte introdutória, são apresentadas as três problemáticas basilares a serem desenvolvidas. São elas: 1º) o dualismo dos regimes jurídicos de direitos fundamentais no direito constitucional português e a  interpretação e aplicação dos direitos fundamentais sociais para uma maior efetividade (CP/76[1], art. 17) e desenvolvimento do direito; 2º) falta de um parâmetro (solução de divergência ou convergência) sobre a margem de ação do legislador e o direito judicial de controle e 3°) divisão dos direitos fundamentais sociais em três classes: “direitos fundamentais de proteção”, “direitos fundamentais sociais propriamente ditos” e “direitos fundamentais de organização e procedimento”.


1. Desenvolvimento da obra “Direitos Fundamentais Sociais


Inicia-se o desenvolvimento da obra pela discussão da estrutura dos direitos fundamentais sociais. A  terminologia de Canotilho é utilizada nesta sistematização constitucional, bem como comparada com a teoria dos status de Jellinek. Desta comparação, extrai-se a compreensão dos direitos fundamentais sociais como “direitos originários” que implicam uma mudança de significado na concepção desses direitos e pretensões no seu conjunto, o que destaca o problema de sua efetividade. A relação entre função e situação social dos direitos relativiza a separação entre Estado e a sociedade, como a diferenciação entre o Estado e o cidadão ou a relação entre cidadãos. Ambos são co-responsáveis pela coordenação dos fins constitucionais comunitários. Essa leitura e interpretação do estatuto da cidadania exige que o indivíduo assuma determinados deveres que vão além do mero respeito pelos direitos dos outros. Ela implica que se assuma um compromisso em relação aos interesses fundamentais da sociedadde no seu conjunto. Nesse sentido, o estatuto de cidadania pode expressar uma teoria geral de bem-estar social que torne possível tanto a liberdade individual como a coletiva, mas que acaba por relativizar a separação liberal entre a esfera pública e a esfera privada. Afinal, o que distingue o conceito republicano de liberdade é a ausência de dependência (ou dominação), não a ausência de interferência por parte dos poderes públicos. Sob esta perspectiva a interferência por parte dos poderes públicos, necessariamente não viola a liberdade.


A interferência deve mostrar-se justificada e terá de ser justa, com exposição de motivos razoáveis, e não arbitrária, pois, para que o indivíduo possa exercer a sua autonomia como cidadão não pode ser colocado em posição de vunerabilidade face ao poder do Estado. O Estado que se encontra obrigado a atuar para dar satisfação ao direito social (obrigação positiva), ao cumprir suas tarefas constitucionais, transforma sua obrigação em negativa e passa a ser obrigado a abster-se de atentar contra a realização dada ao direito social. Em rigor, a garantia de uma proteção efetiva não é criada a partir da legislação, antes corresponde ao âmbito deproteção que resulta garantido através da aplicação dessa legislação pela administração pública e pelo poder judiciário.


 Os direitos fundamentais sociais garantem a liberdade fática. O objeto típico dos direitos fundamentais sociais vem constituído pelo chamado mínimo existencial material como medida do menor grau de proteção (ex. educação, serviços de saúde). O conceito de dignidade da pessoa humana necessita de uma definição concreta do mínimo social ou standard mínimo, compreendido como mínimo existencial que corresponda à proteção do Estado, conforme o direito fundamental de liberdade. O teor de tal conceituação deve ser, principalmente, positivo, não interpretado de forma restritiva, mas sim progressivamente fixado e desenvolvido numa perspectiva aberta e casuística. É um conceito valorativo, um valor constitucional, que se apresenta como fundamento e base da ordem jurídico-constitucional. Entretanto, a problemática do conceito do mínimo existencial provoca  a necessidade de redefinição dos direitos que estabeleçam uma nova síntese, onde a dimensão negativa e a positiva dos direitos fundamentais estejam no mesmo plano, ou, se se quiser numa outra terminologia, que ligue a liberdade negativa à positiva.


O argumento metodológico dos hard cases de Ronald Dworkin é aplicado pela autora ao afirmar a impossibilidade do recurso ao silogismo jurídico para alcançar os mencionados fins constitucionais e a necessidade de se adotar um modelo alternativo de regras/princípios também é demonstrada. Um consenso constitucional requer algum grau de acordo sobre questões de substância. Assim, justiça ou equidade procedimental depende, em parte, da justiça procedimental. Considera-se que a distinção entre os conceitos de justiça procedimental e justiça substantiva é expressada unicamente com uma questão de grau.


No segundo capítulo, a diversidade do estatuto dos direitos fundamentais sociais é o tópico examinado. Os direitos fundamentais sociais vêm caracterizados segundo diferentes estratégias, métodos ou técnicas de positivação: tarefas legislativas, determinações dos fins do Estado, tarefas constitucionais, princípios diretivos e mandatos de otimização. Como normas constitucionais apresentam-se como parâmetro de controle judicial quando estão em causa a apreciação de medidas legais ou regulamentares que os restrinjam ou contradigam. Eles referem-se as tarefas e finalidades ou responsabilidades do Estado, sem especificar se os cidadãos gozam de um direito à proteção de determinados interesses. Esta é uma nova concepção de direitos que estabelece uma nova síntese entre a constituição do passado e a constituição do futuro.


Contudo, o Tribunal Constitucional de Portugal não goza de precedência na determinação e atuação do direito constitucionalmente garantido, mesmo admitindo que não existe no nosso ordenamento jurídico o recurso individual constitucional direto. O controle levado a cabo pelo juiz constitucional incide sobre as leis existentes e não sobre a ausência destas. Em caso de omissão legislativa, o Tribunal Constitucional (TC) limita-se a verificar a sua ocorrência e a dar conhecimento ao órgão legislativo competente, esgotando-se aí a intervenção do controle judicial. A jurisprudência do TC indica que o âmbito e conteúdo dos direitos fundamentais sociais devem ser configurados pelo legislador na ausência de caracterização constitucional dos mesmos pela norma constitucional. Assim, não é possível precisar juridicamente a formulação dos direitos fundamentais sociais de forma que os cidadãos possam neles fundar pretensões diretamente exigíveis.


A técnica de positivação e constitucionalização dos direitos fundamentais sociais, que associa o reconhecimento de direitos à implementação de políticas públicas de concretização desses direitos e garantias fundamentais, permite certo grau de jusiticiabilidade dos direitos. A justiciabilidade possível encontra-se na medida que respeita às circunstâncias dos Estados, particularmente os mais pobres, pois não podem realizar esses direitos de uma só vez. Todavia, uma idéia permanece como denominador comum: a de que os benefícios sociais se mostram centrais para o exercício da liberdade ou de uma cidadania solidária e responsável.  Portanto, uma norma só será declarada inconstitucional se não servir nenhum interesse ou fim legítimo, isto é,  mostrar-se manifestamente irrazoável.


Na terceira seção, a garantia dos direitos fundamentais sociais através de normas jurídicas vinculantes torna-se o objeto de estudo. A premissa assumida é que os direitos fundamentais sociais devem ser compreendidos, na sua função, como expressão de um sistema ou ordem concreta de valores com todas as conseqüências daí advenientes.  Desse modo, a distinção operada entre os conceitos de constituição como ordem quadro e ordem fundamental não é absoluta, mas relativa. A ordem do quadro corresponde ao que está ordenado e ao que está proibido. O que se confia à discricionariedade do legislador é o que não está ordenando nem proibido, isto é, aquilo que se encontra autorizado no interior do quadro. A discricionariedade define a margem de ação do legislador e essa é do tipo estrutural. Uma constituição como ordem fundamental em sentido quantitativo, não permite a discricionariedade do legislador, isto é, para tudo há previsão de um mandato ou uma proibição. Consequentemente, é impossível que uma constituição seja ao mesmo tempo uma ordem fundamental no sentido quantitativo de uma ordem quadro.


Os direitos sociais podem ser configurados como direitos fundamentais sociais e reconhecidos por normas constitucionais, além de igualmente poderem ser constituídos como direitos subjetivos. Mas haverá dois níveis, porque tal como ocorre com os direitos de defesa, os direitos fundamentais sociais podem ser qualificados como regras ou princípios. No campo dos direitos fundamentais sociais, a efetividade se apresenta como condição da existência do próprio direito. A concretização de tais direitos exige uma política de distribuição dos recursos disponíveis acompanhada das respectivas políticas setoriais. Cabe ao poder judiciário, portanto, fiscalizar o sistema de prioridades concretamente fixado pelo legislador, cujos fins correspondem aos valores constitucionais. O que se afirma não é que os tribunais devam concretizar direitos, mas apenas que esses direitos devem ser reconhecidos num determinado nível de justiciabilidade e não apenas em situações mínimas de extrema necessidade.


No quarto capítulo, as formas de proteção e limites da intervenção do poder judicial são examinadas conforme as três margens da ação estrutural de Robert Alexy: 1) margem para a determinação de fins, 2) margem para a escolha de meios e 3) margem para a ponderação. A própria Constituição determina a medida da realização dos fins. A ausência de reserva de lei significa que ao legislador não compete uma liberdade de ação ou configuração. Além disso, o direito infra-constitucional deve garantir, no seu conjunto, uma proteção eficiente.


A determinação pelo poder judiciário ocorre nos casos difíceis ou nos casos em que o legislador político democrático não interveio, por não ter sido possível prever essa necessidade ou contingência de regulamentação jurídica. O limite da proteção dos direitos fundamentais não é fixo, bem como os direitos sociais podem não dizer respeito a todos os indivíduos da mesma forma. Dessa maneira, o que se procura prover é uma igualdade de oportunidades, não uma igualdade de condições.


Na quinta seção da obra, os limites da interpretação constitucional são o centro de proposta de estudo. Parte-se do pressuposto que os direitos não estam apenas entre o fato e o valor, mas ainda entre o direito e a política. Os direitos fundamentais se concebem hoje muito mais como uma questão de justiça do que como uma questão política. O reconhecimento pleno dos direitos fundamentais sociais implica numa mudança conceitual que transforma o Estado num Estado de Direitos Fundamentais. As cláusulas constitucionais reconhecedoras dos direitos fundamentais sociais não resultam protegidas de modo absoluto, mas relativo. Elas estam sujeitas à ponderação dos recursos disponíveis, interpretados como reserva do possível.


Considerações finais


A conclusão geral da autora é que os direitos fundamentais sociais reconhecidos na Constituição impõem que seja dada atenção democrática aos interesses humanos fundamentais. Tal questão só poderá ser resolvida por uma teoria político-normativa que possa representar e definir uma concepção particular da democracia constitucional.


A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 contém também todas as problemáticas desenvolvidas pela prof.ª Cristina Queiroz em relação à Constituição de Portugal, embora em condições jurídicas diferentes. A obra Direitos Fundamentais Sociais contém fundamentações jurisprudenciais e teóricas organizadas sobre a temática dos direitos sociais. O debate sobre a complexidade dos direitos sociais atravessa fronteiras, mas sua extensão jurídica assume as proporções constitucionais que lhes são permitidas pelos poderes executivo, legislativo e judiciário de cada país. Problematizar a aplicação dos referidos direitos é a base primária de qualquer nação que tenha entre suas pretensões a democracia constitucional no formato do Estado Social.   


 


Nota:

[1] CP/76 = Constituição Portuguesa de 1976.


Informações Sobre o Autor

Nelise Dias Vieira

Especialista em Direito Público pela PUCRS (2007), Mestre em Direito pela PUCRS (2010)