Resumo: A prática permite que apliquemos os institutos do direito sem conhecermos as raízes filosóficas e a base que fundamentou a sua criação. Entretanto, ao aprofundarmos nossos estudos e destrincharmos os assuntos que aplicamos, verificamos a conexão dos diversos tópicos e passamos a aplicá-los com mais coerência. O artigo traz apontamentos acerca das origens da responsabilidade civil e a influência que o princípio do neminem laedere, ou alterum non laedere, exerce nas legislações vigentes e na jurisprudência atual. O dever geral de não lesar a outrem, pensado por filósofos gregos e absorvido por Roma ao conquistá-la, é a base e o objetivo do direito, servindo como fundamento ao dever secundário de indenizar os prejuízos causados pela ofensa.
Palavras-chave: neminem laedere. Responsabilidade civil. Dever de não lesar.
Sumário: 1. Aspectos históricos. 2. Princípios correlatos. 3. O objetivo e a função da responsabilidade civil. 4. A responsabilização em alguns momentos históricos. 5. O princípio do neminem laedere na legislação brasileira. 6. O neminem laedere e o abuso no exercício de direitos. 7. A aplicação jurisprudencial do princípio do neminem laedere. 8.Conclusão
1. Aspectos históricos.
A responsabilidade civil é o instituto por meio do qual se busca penalizar aquele que transgride um dever e com isso causa lesão – ou ameaça lesionar – o direito alheio. As origens da responsabilidade remontam aos ensinamentos gregos, absorvidos por Roma ao conquistá-la em 146 a.c.
Isto fica expresso no Código de Justiniano, Digesto, 1, 1, 10, 1, onde constam os fundamentos para uma vida justa expostos por Ulpiano e que se resumem em: (i) honeste vivere (viver honestamente), (ii) alterum non laedere (a ninguém lesar) e (iii) suum cuique tribuere (dar a cada um o que é devido).
O segundo, alterum non laedere, é visto como a raiz histórica da responsabilidade civil. Há, pelo direito, um compromisso dos membros da sociedade de não se prejudicarem, com o objetivo de manutenção da convivência pacífica e harmoniosa.
2. Princípios correlatos.
Por meio deste princípio três outros são abrangidos: o da precaução, o da prevenção e o da reparação. A definição e abrangência desses subprincípios varia entre os doutrinadores. Para Sirvinskas, prevenção é gênero e precaução é espécie. Prevenir-se implica em antecipar-se ao fato, enquanto a precaução é a ação ou cuidado para se evitar danos, ou seja, é mais específico do que o primeiro.
Na Conferência do Rio/92 surge, pelo princípio 15 que:
“Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.”
O termo prevenção aparece ligado a dois outros aspectos: ameaça de danos graves ou irreversíveis e ausência de certeza científica absoluta sobre a extensão dos danos. Com base nisso que parte da doutrina passou a entender prevenção, ou seja, adota-se o princípio da prevenção diante de uma situação fática em que não haja suficiência científica comprovada sobre a possível extensão dos danos, que podem ser graves ou irreversíveis.
Já na Lei 11.105/2005 extrai-se o princípio da precaução no artigo 1º:
“Art. 1o Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente.”
O princípio da precaução, então, aplica-se em uma situação que exige mais estudos científicos, sem os quais não será aceitável a continuação da atividade econômica.
Por fim, o princípio da reparação significa que, causado o dano, o ofensor será obrigado a repará-lo.
Estes três subprincípios são fundamentos pelo neminem laedere uma vez que buscam evitar a lesão, ou, em razão desse dever genérico que impede lesionar os outros, impor uma reparação à vítima.
3. O objetivo e a função da responsabilidade civil.
San Tiago Dantas lecionava que os principais objetivos da ordem jurídica são a proteção ao lícito e repressão ao ilícito e para atingi-los há a fixação de deveres positivos (dar, fazer) e negativos (não fazer, tolerar, onde se insere o neminem laedere, não porque se limite a determinar as pessoas que “não lesem” outras, já que também obriga, ao determinar o não lesar, que comportamentos comissivos sejam realizados, mas porque insere uma ideia negativa: dever geral de não prejudicar a ninguém).
O princípio, portanto, determina um “não fazer” para prevenir conflitos sociais. Mas, uma vez desobedecido esse comando geral, a consequência é responsabilizar o ofensor e amenizar o prejuízo da vítima.
Vale esclarecer que, enquanto o neminem laedere é um dever geral, originário, a responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo. A reparação do dano só existe como dever porque outro dever foi transgredido, que o dever geral de não lesar.
A responsabilidade é, então, o dever de reparar o prejuízo decorrente da violação de outro dever jurídico. Essa violação é denominada de fato ilícito, inserido na parte geral do Código Civil pelos pandectistas alemães no século XIX e que passou a ser o fundamento científico da teoria da responsabilidade.
Foi a Alemanha a primeira a abandonar a tradicional classificação romana de delitos e quase-delitos, em que exigia-se a tipicidade para configuração da ilicitude (delitos), sem a qual o fato era visto como um quase-delito.
Saliente-se que os romanos não criaram a ideia abstrata de ilícito civil e tampouco separavam com a clareza das codificações atuais a responsabilidade civil da responsabilidade penal.
Assim, o ilícito passa a ser visto, como expõe De Page, através de um perfil em que há o caráter antijurídico da conduta e seu resultado danoso, com o acréscimo da culpa, em sentido amplo, entendido como qualquer comportamento contrário ao direito.
A raiz latina do termo responsabilidade é spondeo, fórmula romana segundo a qual o devedor se ligava solenemente ao credor nos contratos verbais. A responsabilidade era uma garantia, não existia de forma independente, mas como termo complementar de um dever, cuja origem é, afinal, o dever geral de não lesar, insculpido pelo princípio do neminem laedere.
Não há interesse em analisar a responsabilidade se houve cumprimento do dever, pois a satisfação dos interesses tutelados exauria o tema. Mas, em caso de descumprimento, surge a responsabilidade como garantidora do “cumprimento forçado”.
Só se afasta a responsabilidade se o agente não possui a obrigação exigida pelo credor, ou não tiver ele cometido o ato que ocasionou o inadimplemento, ou, ainda, se praticou o ato, não é ele violador do dever em razão de uma escusa legal, ou, por fim, se inexistia discernimento no devedor para cumprir ou não o dever geral.
Ademais, a responsabilidade só aparece se, violado o dever geral, afigura-se presente um dano.
Alguns doutrinadores sustentaram que quanto maior a evolução da sociedade mais casos de imputação de responsabilidade haverá. Georges Ripert, entretanto, discorda dessa posição e entende ser isso ilusório, afinal, a responsabilidade é apenas e meramente normas que limitam a atividade humana, e não a busca por justiça ou progresso.
Seja como for, o princípio do neminem laedere está sempre presente, eternamente jovem e de valor incorruptível, como expunha José de Aguiar Dias. O decurso do tempo e as evoluções sociais criam a necessidade de ajustar as regras ao que se enfrenta naquele momento.
O sentimento de justiça não é aprimorado pela responsabilidade civil, como colocam alguns autores, mas há repetições constantes de situações que exigem a manifestação reiterada e intervenção multiplicada da responsabilização civil.
Os conflitos de interesse têm se intensificados porque as relações sociais se tornam cada vez mais complexas, exigindo um aprofundamento na interpretação das restrições das atividades jurídicas de cada indivíduo.
A aplicação da responsabilidade tem voltado os olhos para o atendimento da justiça distributiva, em função das alterações do dinamismo social. Entretanto, os princípios da boa-fé, da fidelidade, da lealdade e da proibição do dolo, da fraude e da torpeza permanecem presentes e cuja raiz é o dever geral que proíbe a lesão aos demais.
4. A responsabilização em alguns momentos históricos.
Historicamente, vale destacar certos comportamentos que levaram a sintetização do dever de não lesar. Ao viver em grupos, a ofensa feita pelo membro de um grupo contra o membro de outro grupo refletia em uma reação desproporcional, pois a ofensa era vista não como dirigida pelo ofensor à vítima, mas por um clã contra o outro, o que motivava incontáveis guerras.
A lei de talião passou a exigir a proporcionalidade entre ação e reação e resume-se na expressão “olho por olho, dente por dente”, ou seja, tal qual foi a ofensa deve ser a represália: se foi danificado um olho, deverá o olho e apenas o olho do agressor ser também danificado.
A imposição da pena era incumbência da própria vítima, pois só a ela interessava. Posteriormente, a autoridade assumiu esse poder ao perceber que a manutenção da ordem era interesse geral.
Mas foi a lei das doze tábuas (450 a.c.) que apresentou uma melhoria em relação à composição da vítima e não apenas à satisfação do sentimento de vingança. Claro, porque ter o olho ferido gerava na vítima o desejo de ver seu ofensor ferido, mas, satisfeita a vingança o que restava eram dois homens sem olho e nenhuma reparação real.
Na lei das doze tábuas surge, na Tábua VIII, a obrigação de reparar o dano pelo prejuízo causado: “Pelo prejuízo causado por um cavalo, deve-se reparar o dano ou abandonar o animal”, “Se o prejuízo é causado por acidente, que seja reparado”.
Mas foi a Lei Aquília (286 a.c.) que melhor sistematizou a matéria e trouxe princípio geral para regular a reparação do dano, pois previa que o autor do dano deveria ser obrigado ao pagamento de uma pena pecuniária para a vítima.
O primeiro Código Civil, Code Napoleón (1804), vigente na França até os tempos atuais, traz em seu artigo 1.382 e seguintes o tratamento a ser conferido por aquele que causa dano a outrem e determina a sua responsabilização, se tiver agido com culpa.
Em Portugal, o Código visigótico não diferenciava a responsabilidade civil da criminal e, no Brasil, as Ordenações Filipinas misturavam reparação pena e multa. Com o advento do Código Criminal de 1830 surge a possibilidade de “satisfação do mal causado”:
“Art. 10. Tambem não se julgarão criminosos:
1º Os menores de quatorze annos.
2º Os loucos de todo o genero, salvo se tiverem lucidos intervallos, e nelles commetterem o crime.
3º Os que commetterem crimes violentados por força, ou por medo irresistiveis.
4º Os que commetterem crimes casualmente no exercicio, ou pratica de qualquer acto licito, feito com a tenção ordinaria.
Art. 11. Posto que os mencionados no artigo antecedente não possam ser punidos, os seus bens comtudo serão sujeitos á satisfação do mal causado.”
E havia um capítulo próprio que tratava da satisfação, a partir do artigo 21 e exigia que ela fosse “sempre a mais completa” possível (artigo 22). Também tratava a lei de restituição da própria coisa (artigo 23), ou seja, a reparação in natura, ou seu equivalente (indenização, artigo 25). São, todos, fundamentados no dever de não lesar.
5. O princípio do neminem laedere na legislação brasileira.
Na legislação vigente no Brasil são incontáveis os dispositivos que se espelham no dever geral de não lesar. Exemplificativamente, na Constituição Federal, o artigo 5º traz diversas disposições:
“V- é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;”
A proporcionalidade da resposta à agressão relembra à lei de talião e a imposição do dever de indenizar reflete a reparação que o ordenamento busca para a vítima, em represália ao ofensor, como meio de dar voz ao dever de não lesar.
“X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;”
Colocar certos direitos (da personalidade) como invioláveis significa impedir, com maior afinco, que haja a lesão a tais direitos. É sedimentar que o dever de não lesar é forte em relação a esses direitos e um maior cuidado deve ser conferido ao analisar situações que buscam legitimar atos ofensivos a esses direitos.
“XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;”
A ameaça de causar lesão ao direito alheio é repelido pelo ordenamento e a Constituição assegura o direito de ação àqueles que se encontrarem em tal situação.
O artigo 216 também reitera essa proteção:
“§ 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.”
Ademais, a dignidade da pessoa humana, a solidariedade, a função social e econômica dos direitos, a busca do “bem comum” (Lei de Introdução, artigo 5º) também se baseiam no dever geral de não causar prejuízo a outrem.
Na legislação civil e consumerista vemos a aplicação desse princípio em conjunto com a boa-fé, equidade, equilíbrio e proporção. Prevenir danos é o objetivo do direito, repará-los é uma medida secundária. A prevenção pode ser vista na cominação de multa diária ou estipulação de cláusula penal.
6. O neminem laedere e o abuso no exercício de direitos.
Tal princípio (neminem laedere) ganha uma interessante roupagem se analisado em conjunto com a teoria do abuso do direito. Por esta última, em síntese, é considerado ilícito o exercício irregular de posição jurídica e no atual Código Civil de 2002, consoante artigo 187, temos os seguintes parâmetros para considerar irregular o exercício: se tiver sido praticado em desconformidade com à boa-fé, os bons costumes ou os fins sociais e econômicos do direito.
Assim, o exercício dos direitos não mais é visto de forma ilimitada e absoluta, como outrora, mas que deve obedecer limites a fim de não lesar a outrem. Tais limites podem ser trazidos expressamente pelo ordenamento jurídico, como optou a lei civil vigente, ou se basearem nos princípios gerais do direito, norteadores da criação e aplicação dessa ciência.
Em concorrência com o princípio neminem laedere (alterum non laedere), o abuso do direito é o limitador natural para impedir abusos e exercícios irregulares dos direitos previstos no ordenamento, sempre, como dito, com o escopo de obstar lesões aos demais membros da comunidade.
É assente na jurisprudência que a agência bancária pode instalar portas giratórias em seus estabelecimentos, a fim de impedirem a entrada de pessoas portando armas, que poderiam lesionar seus funcionários, clientes e seus bens.
Trata-se, portanto, do exercício regular de um direito, ainda que isso venha a causar danos a outrem, como, por exemplo, no caso de a porta detectar excesso de metais, apitar e isso constranger o indivíduo, que terá as atenções chamadas para si.
Foi assim que decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo na Apelação nº 4006519-06.2013.8.26.0506, de relatoria do Desembargador Alexandre Marcondes, cujo julgamento ocorreu na data de 17.6.2015:
“Ementa: DANO MORAL. Responsabilidade civil. Travamento de porta giratória quando do ingresso em agência bancária. Indenização. Mecanismo de segurança que goza de fundamento legal. Ordem judicial determinando a apresentação das imagens do circuito de interno de segurança da agência. Descumprimento pelo réu que implica na veracidade dos fatos alegados pelo autor, nos termos do artigo 359, I do CPC. Inexistência, no entanto, de ilícito a ser reparado. Exercício regular do direito do banco. Inexistência de abuso por parte dos prepostos da instituição financeira. Ação improcedente. RECURSO DESPROVIDO.”
Portanto, a agência bancária, ao instalar a mencionada porta giratória, exerce um direito reconhecido por lei e, conseguintemente, ainda que isso cause danos, não será, via de regra, fato apto a ensejar responsabilidade civil.
Entretanto, o exercício irregular desse direito, implicando em abuso por contrariar a boa-fé, os bons costumes ou o fim econômico ou social do direito, ensejará a reclassificação do fato em ilícito e possibilitar a responsabilização da agência, conforme decidiu o mesmo Tribunal no julgamento da Apelação nº 0040513-82.2010.8.26.0576, de relatoria do Desembargador Guilherme Santini Teodoro, cujo julgamento ocorreu na data de 3.6.2014:
“Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL. Danos morais. Proibição de ingresso em agência bancária. Sucessivos travamentos de porta giratória e observância de procedimentos de segurança. Inexistência de qualquer risco. Situação vexatória prolongada não resolvida mesmo com a chegada da Polícia Militar, que pediu que o ingresso fosse autorizado. Proibição infundada e desproporcional. Abuso de direito reconhecido. Danos morais configurados. Arbitramento correto. Proporcionalidade e razoabilidade. Correção de ofício do termo inicial dos juros moratórios. Honorários advocatícios sucumbenciais mantidos. Recursos desprovidos com observação.”
Inexiste contrariedade entre os dois posicionamentos adotados. O que há é a diferença de situações fáticas: enquanto no primeiro não ficou caracterizado irregularidades no exercício do direito, no segundo houve, por extravasar os limites legais impostos para o exercício dos direitos subjetivos. Diante dessa diferença, a solução foi igualmente diferente: responsabilizar a agência no segundo caso, mas não no primeiro.
Portanto, impedir que se lesione outra pessoa não significa que o ordenamento jurídico imponha a todos o exercício dos direitos apenas e tão somente nos casos em que não forem impactar na esfera jurídica do outro.
É possível que o exercício regular de direitos cause lesão, sem que isso implique no dever de indenizar. Mas, o exercício irregular, como ocorre no abuso do direito, altera a situação fática e, aí sim, por aplicação do princípio geral do neminem laedere em conjunto com a teoria do abuso do direito, haverá o dever de indenizar.
7. A aplicação jurisprudencial do princípio do neminem laedere.
Entretanto, a aplicação do princípio ganha maior relevância nas situações em que o fato apresentado não se subsume perfeitamente às hipóteses de fato previstas em lei, mas, ainda assim, é patente a sua contrariedade ao sistema jurídico.
Um caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 2011 demonstra isso. Um sujeito (A), portando documentos de outros (B), celebrou, como se fosse B, contrato com C por meio do qual adquiria um veículo, cujo pagamento seria efetuado por financiamento, garantido por meio de alienação fiduciária do bem.
B faleceu e A deixou de efetuar o pagamento das prestações do financiamento. Saliente-se que A era genro de B e com ele vivia, por isso que quando C moveu ação de busca e apreensão localizou o carro no endereço de B.
Entretanto, no entendimento do juízo de primeiro grau, em razão da falsificação, o negócio jurídico referente ao financiamento, com alienação fiduciária em garantia, era inexistente. Como consequência, C não tinha crédito a receber e deveria devolver o veículo apreendido.
Levada a questão para segunda instância, o Tribunal se baseou no princípio do neminem laedere para reformar a sentença neste ponto. A despeito da falsificação, e, conseguintemente, da inexistência do contrato de financiamento, a manutenção do veículo no patrimônio de A implicaria em lesão à C.
Efetivamente, é cristalino aos olhos de qualquer pessoa que, ainda que não exista “contrato de financiamento”, não seria correto, justo, aceitável que o carro adquirido com recursos desse contrato inexistente permanecesse no poderio de quem não o adquiriu (A), o que lesaria C, pois foi ele quem disponibilizou os recursos financeiros para o pagamento do veículo.
Ou seja, com a inexistência do contrato declarada pelo juiz, uma parte nada poderia exigir da outra. Mas, fosse isso, C ficaria prejudicado, enquanto A se sairia beneficiado por lesar C.
Correto, portanto, o entendimento do Tribunal ao, aplicando o princípio do neminem laedere, determinar que o veículo permanecesse com C, com o que ninguém sairia lesado pelo contrato inexistente.
Conclusão
Apesar de o princípio do neminem laedere ter sido pensado em um momento histórico bem afastado do atual e cuja realidade era bastante diversa da que vivemos no século XXI, sua aplicação se mostra cada vez mais presente e necessária, especialmente dentro de um sistema jurídico que se pretenda fechado, mas com conceitos jurídicos abertos, diante da impossibilidade de previsão de todos os fatos possíveis e suas consequências.
O dever geral de não lesar a outrem se mostra como norte para a geração presente e se coaduna com os princípios da boa-fé, da eticidade e da solidariedade. Trata-se de princípio que, apesar da obviedade, não pode ser esquecido pelos operadores do direito e todas as pessoas em geral.
Informações Sobre o Autor
Deborah Fonseca Fernandes
Advogada formada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo aluna do Mestrado na mesma instituição para obtenção do título de Mestre em Direito Civil Comparado