Soberania x Direito Internacional

A soberania é una e indivisível,
não se delega a soberania, a soberania é irrevogável, a soberania é perpetua, a
soberania é um poder supremo, ei os principais pontos
de caracterização com que Bodin fez da soberania no
século XVII um elemento essencial do Estado
” (BONAVIDES, Paulo. Ciência
Política. 10ª ed. São Paulo: Editora Malheiros. 1996, p.
126).

Com esta passagem ilustrando o
pensamento de um dos grandes juristas da monarquia francesa, iniciamos estas
breves linhas que tem por objetivo tecer algumas considerações sobre este
espinhoso tema que põe em posição de choque a questão da soberania interna em
relação ao direito internacional e, conseqüentemente, a relativização daquela
em prol de um ordenamento jurídico internacional.

A soberania, que no passado esteve
umbilicalmente jungida à figura do monarca, o qual por sua vez encarnava o
caráter da divindade, hoje se apresenta de uma forma bastante diversa. Sob o
prisma da democracia, ainda abordando questões históricas, podemos dividir a
doutrina da soberania em soberania popular e soberania nacional. A primeira,
mais democrática, difundia a soberania a todos os membros da comunidade, sendo,
por conseqüência, cada um deles titular de uma parcela da mesma, de modo que
todos fossem iguais politicamente. A soberania nacional, de outro lado, ao
invés de pulverizar a soberania, absorve-a e delega a um único ente, qual seja,
a Nação. A diferença básica entre ambas as doutrinas reside na legitimidade
para o sufrágio popular: uma restringe tal legitimidade e a outra concede-a a todos os cidadãos.

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Por óbvio que a questão da soberania
não adstringe-se apenas às citadas características
doutrinárias e históricas, de modo que atualmente seu conceito é bastante
abrangente, sendo utilizado em inúmeras situações para justificar vários atos
do Poder Público, e, por que não dizer, dos entes privados. Apenas para citar
alguns exemplos da positivização deste conceito, a
nossa Constituição Federal declara que o Brasil constitui-se em um Estado Democrático
de Direito, tem como fundamento a soberania (art. 1º, I) e rege-se
nas suas relações internacionais pelo princípio da independência nacional (art.
4º, I).

O Brasil, que tem no processo de
democratização das instituições políticas e da sociedade um fato bastante
recente, vê-se hodiernamente situado em uma posição delicada, que é a de
decidir sobre a preservação total de sua soberania, na sua feição interna, ou
paulatinamente delegar uma parcela da mesma em prol do direito internacional,
mais especificamente ao Mercosul.

Como dissemos, o nosso pais tem na
democracia, e, por conseqüência, no Estado Democrático de Direito, uma figura
relativamente nova, de maneira que a questão da delegação da soberania interna
a terceiros ainda causa arrepios. Para melhor delinear tal situação, mister que
façamos uma análise de como tal fato ocorreu na Comunidade Européia, a qual,
como hoje sabemos, funda-se sob as bases da supranacionalidade,
o que demanda que os seus Estados membros delegam uma parcela de sua soberania
interna a um sujeito internacional.

O processo de integração europeu, até
alcançar um patamar de supranacionalidade, não
ocorreu de uma hora para outra, mas sim começou a cerca de 50 anos atrás, com
Tratado de Paris, que constituiu a Comunidade do Carvão e do Aço (CECA),
inicialmente composta por seis Estados. Este tratado estabeleceu instituições
independentes dos respectivos Estados membros que passaram a ser responsáveis
pela gerência do carvão e do aço dos mesmos. Outro passo importante foi dado em
1957, com o Tratado de Roma, que criou a Comunidade Européia de Energia Atômica
(CEEA ou EURATOM) e a Comunidade Econômica Européia (CEE). Assim, com o
desenvolvimento das relações entre os Estados e com as semelhanças dos
dirigentes destas três comunidades, em 1992, assinou-se o Tratado de Maastricht, que criou a União Européia.

Um dos pontos de grande relevância e
que com certeza contribuiu para o fortalecimento da Comunidade Européia é o
fato de a mesma contar com diversos órgãos, todos com funções
bem delimitadas, e, principalmente, com um Tribunal de Justiça, localizado
em Luxemburgo, responsável pela interpretação Direito Comunitário. Todavia,
para chegar-se a tal ponto, fora necessário uma mudança de visão, seja da
população seja dos mandatários políticos, e, sobretudo, uma mudança na
Constituição de cada Estado.

Isto porque uma das principais
conseqüências da submissão às normas comunitárias é a sujeição a chamada doutrina do efeito direito. Tal dialética parte do
pressuposto de que as normas comunitárias que forem claras e auto-suficientes
deverão se consideradas como normas internas de cada Estado membro. Portanto,
sendo lei interna, as normas comunitárias podem ser invocadas perante o
Judiciário dos respectivos Estados. Intrinsecamente ligada a
doutrina do efeito direto e lhe dando sustentação, surge o entendimento de que
também era necessário que o direito comunitário tivesse força hierárquica superior
ao direito interno dos Estados. Esta primazia não nasceu de qualquer norma ou
tratado, mas sim de uma interpretação do Tribunal de Justiça, eis que os
tratados constituintes da Comunidade silenciavam sobre o assunto. Deste modo,
entendeu o Tribunal que se as normas comunitárias pudessem ser anuladas por
qualquer norma de direto interno, a construção de uma Europa unida estaria
comprometida, sendo necessário que as mesmas tivessem uma aplicação
uniformizada, conferindo-se primazia as normas comunitárias em relação ao
direito interno dos Estado membros.

Tendo então as normas comunitárias
efeito direito, incorporando-se imediatamente aos ordenamentos internos, sem a
necessidade de qualquer processo de internalização, e
hierarquia frente a quaisquer outras normas dos Estados membros, resta saber: o
direito comunitário tem primazia sobre a Constituição de cada Estado? Questão
tão polêmica quanto confrontar a soberania de uma Estado frente as normas de direto internacional é saber se uma norma de
direito internacional (neste caso de direito comunitário) pode sobrepor-se a
Constituição (que não deixa de ser uma forma de externar a soberania de um
país). Tal celeuma ocorreu internamente em vários Estados
comunitários, tendo inúmeros destes inicialmente refutado a
idéia de delegar funções outrora privativas e soberanas a uma entidade de
caráter internacional. Todavia, posteriormente, embuídos
de um ideal maior, qual seja, a construção de uma Europa sem fronteiras, os
Estados cederam, e, inclusive, fizeram modificações nas respectivas
Constituições visando transferir competências anteriormente internas a um
sujeito externo, como, para citar, foi o caso da Alemanha e França.

Feitos estes comentários que nos
pareciam obrigatórios para melhor situar o tema, cabe volver a nossa realidade,
ao nosso conceito de soberania e a possibilidade restrição da
mesmo em proveito de um sujeito de direito internacional, que em nosso
caso seria (ou poderia ser) o Mercosul.

A questão da soberania, aqui
interpretada no sentido de delegação de competências internas a um ente
exterior, está intimamente associada à possibilidade de admitir-se que normas
de direito internacional possam ser hierarquicamente superiores às normas
constitucionais. Tenhamos como exemplo o art. 21, VII, da CF, que assegura
competência exclusiva da União para emitir moeda. Esta é uma questão de
soberania nacional, pois apenas o Banco Central está legitimado a imitir o
Real, a moeda oficial do nosso país. Agora imagine-se
que tal atribuição fosse delegada, em caráter privativo ou concorrente, a um
órgão monetário a ser formado no âmbito do Mercosul, nos moldes do Banco
Central Europeu, com competência para emitir a moeda oficial do bloco, que
passaria também a ser aceita em todas as transações realizadas dentro do
Brasil, com mesma “força” do Real. Haveria assim uma delegação de soberania,
pois um órgão internacional poderia emitir moeda a ser aceita com mesma
oficialidade da moeda nacional, e haveria ainda a necessidade das normas de
política monetária instituídas por este hipotético sujeito internacional (agora
de caráter supranacional) serem observadas diretamente no país, mesmo que
colidissem com a Constituição. O que fazer? Mudar a Constituição ou
simplesmente admitir a supremacia deste direito internacional?

A Constituição Federal, no parágrafo
único do art. 4º, declara que “a República Federativa do Brasil buscará a
integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
visando a formação de uma comunidade latino-americana
de nações”. Deste modo, vê-se que o Brasil confere preponderância à integração
de todos os países da América Latina, muito embora atualmente o nosso processo integracionista esteja adstrito ao Mercosul.

Sendo então o Mercosul a nossa
realidade em termos de integração internacional (inobstante
a tensão vivenciada em razão da grave crise econômica que enfrenta a
Argentina), percebe-se, como não poderia deixar de ser, as inúmeras diferenças
com o bloco comunitário europeu. Uma das principais concerne às bases
supranacionais sob as quais está formatada a CE, o que dá outra dimensão
jurídica, política e social a uma união de nações, ao contrário do Mercosul,
que trabalha sobre estruturas intergovernamentais,
isto para não dizer-se ainda que o nosso bloco preocupa-se preponderantemente
com os temas econômicos, relegando a segundo plano
outras questões de caráter social.

A problemática da eventual cessão de
uma parcela da soberania interna que goza o Brasil, a nosso ver, é apenas uma
questão de tempo (muito embora também admitimos que
este tempo possa vir a ser bastante dilatado). Num mundo extremamente
globalizado, onde a informação não tem mais dono e as tecnologias avançam e
disseminam-se (guardadas as devidas exceções) numa velocidade impressionante, o
Brasil, como umas das maiores economias do planeta (não olvidando a gravidade
dos problemas sociais existentes), fatalmente irá aderir a um modelo que vise a formação de uma comunidade de nações, não apenas em sua
faceta econômica, como criticamente podemos dizer ser o caso do Mercosul.
Todavia, o grande empecilho que surge para tanto, e este não é de ordem
jurídica e sim econômica, é a fragilidade da economia latino-americana. E
quando diz-se economia leia-se também saúde, educação,
enfim, questões estruturais nas quais nós todos (inclusive o Brasil, com uma
pequena vantagem) estamos atrasados. Assim, até que não haja harmonia interna
dentro dos países é realmente difícil a consolidação
do Mercosul, e mais ainda a construção de uma comunidade latino-americana.

Por tais razões, muito embora a
temática aqui a ser discutida era de ordem jurídica,
não há como olvidarmos quando falamos em integração regional ou cessão de
soberania a um órgão externo, de questões de cunho social e econômico, eis que
as mesmas refletem diretamente nas questões jurídicas. Portanto, até que
tenhamos uma solidez interna, de modo que não seja necessário a cada crise
econômica ter-se que tomar medidas (unilaterais) protetoras da economia
interna, em prejuízo dos demais países que formam um bloco integracionista,
ficará muito difícil, para não dizer quase impossível, formar-se uma comunidade
de Estados onde todos, não apenas o Brasil, delegam
parcela de sua soberania a um órgão internacional, inobstante
acreditarmos ser este um rumo natural.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Carlezzo

Advogado. Consultor Jurídico da M. Stortti Business Consulting Group. Assessor Jurídico do Sport Club Internacional. MBA em Direito da Economia e da Empresa pela Fundação Getúlio Vargas. Pós-graduando em MBA em Finanças Empresariais pela Fundação Getúlio Vargas. Vice-Presidente e membro do Conselho Consultivo do Instituto Gaúcho de Direito Desportivo. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo, International Association of Sports Law, Instituto Brasileiro de Direito Societário e Instituto Brasileiro de Governança Corporativa.


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